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De A Fonte da Donzela a Bela Vingança: as contradições do rape and revenge

De A Fonte da Donzela a Bela Vingança: as contradições do rape and revenge

O rape and revenge (em tradução livre, estupro e vingança) é um subgênero do horror marcado por contradições. Embora a sua data de surgimento seja incerta, ele existe desde os anos 1950, e, até meados dos anos 2000, tais histórias eram majoritariamente contadas por homens, salvo exceções como O Mundo É o Culpado (Outrage, 1950), de Ida Lupino. Contudo, mesmo os títulos assinados por mulheres eram repletos de incongruências nesse contexto.

Em um primeiro momento, os filmes seguiam a seguinte estrutura: uma mulher era brutalizada e morta. Então, o seu pai ou marido tentava encontrar uma forma de sobreviver à tragédia enquanto começava a tramar a sua vingança. Por fim, ele encontrava os culpados pelo crime para o acerto de contas. Logo, as mulheres eram mero acessório para avançar a trama dos personagens masculinos, um tipo de tropo narrativo que se tornou conhecido como Mulher na Geladeira após a publicação da HQ #54 do Lanterna Verde, de 1994.

Isso deixa claro que o estupro era visto como uma mácula na honra do homem. Essa noção, ainda que indiretamente, vinculava o valor feminino à conduta sexual e à virgindade. Além disso, como as mulheres morriam no primeiro ato, os filmes se dedicavam a mostrar os reflexos da violência na vida de outras pessoas, algo que pode ser visto em A Fonte da Donzela (Jungfrukallan, 1960). Nesse longa, Tore (Max von Sydow) é o agente da vingança porque se torna consumido pela culpa de ter enviado a filha, Karin (Birgitta Pettersson), à igreja e feito com que ela cruzasse o caminho dos estupradores. Ingmar Bergman, o diretor, tenta estabelecer um laço de empatia entre o público e Karin usando a ideia de violação da inocência, principalmente através da criação de um contraste entre a donzela e a serva da família, Mareta (Birgitta Valberg), o que deixa implícita a ideia de que algumas mulheres merecem ser violadas.

É importante pontuar que algumas dessas contradições começaram a desaparecer a partir da década de 1970, contexto no qual o rape and revenge passou a ser associado ao cinema exploitation. O exemplo mais popular é A Vingança de Jennifer (I Spit on Your Grave, 1978), que serve tanto para apresentar uma nova forma de contar histórias quanto para expor outros problemas, todos causados pela perspectiva masculina. Nesse filme, Jennifer (Camille Keaton) é uma escritora que se isola em uma casa na floresta durante as suas férias. Desde a sua chegada, ela passa a ser observada por um grupo de homens que, posteriormente, a estupra, espanca e abandona para morrer. Porém, contrariando as expectativas, Jennifer sobrevive e começa a tramar a sua vingança.

Ao mesmo tempo em que a personagem passa a ter o poder de decidir como deseja conduzir a narrativa, o male gaze está mais presente do que nunca. Existe fetichismo na forma como a violência é filmada, sempre explorando o corpo de Jennifer e as suas reações. Em um texto do site de Roger Ebert, o crítico conta como foi assistir ao longa no cinema em 1980, e este relato serve para ilustrar os problemas presentes em A Vingança de Jennifer. De acordo com ele, embora a plateia não fosse tão grande, ela era perturbadora e extremamente verbal a respeito das suas impressões. Para Ebert, caso eles realmente acreditassem nas coisas que diziam, seriam criminosos sexuais. Como ilustração, ele cita um homem de meia-idade que, após a última cena de estupro do longa, disse que já tinha visto algumas boas, mas aquela era a melhor. Além disso, em uma sequência na qual três dos estupradores incentivam o quarto a atacar Jennifer, houve muitas risadas na plateia.

Em certa medida, esse tipo de reação aconteceu porque A Vingança de Jennifer não tem qualquer cuidado com a construção dos personagens. Eles são apenas quatro homens e uma mulher envolvidos em ataques brutais, o que leva o termo exploitation ao pé da letra. Tudo é sensacionalista e tem como único objetivo o choque – ou, como ilustrou Roger Ebert, o gozo. Além disso, é importante ressaltar que, enquanto Meir Zarchi não tem o menor problema em mostrar as violações sofridas por Jennifer, quando a vingança assume o primeiro plano e os homens passam a ocupar a posição de vítimas, a barbárie ganha contornos mais sutis. Logo, é possível concluir que o estupro surge em tela como um espetáculo visual grotesco e quase glorificado.

Apesar dos problemas evidentes, é interessante destacar que algumas estudiosas, como Carol J. Clover, autora de Men, Women and Chainsaws: Gender in Modern Horror Film, defendem que tecer análises condenatórias do rape and revenge não é algo proveitoso. Ainda que este seja um estilo que presenteia o público com numerosas inconsistências, elas são provocadas pelo olhar masculino e não pelo formato em si, algo que se prova verdadeiro quando filmes mais recentes são observados.

Atualmente, esse subgênero tem sido retomado por diretoras, o que não apaga os problemas passados, mas serve para escrever uma trajetória diferente, em especial no sentido de não explorar o sofrimento de maneira fetichizada. O primeiro título feminino do rape and revenge moderno é o francês Baise-moi (Baise-moi, 2000), de Virginie Despentes e Coralie Trinh Thi, um longa brutal que retrata duas garotas marginalizadas buscando acertar as contas contra a sociedade que as violou e humilhou. Entretanto, existem produções com direção feminina que acabam tendo mais a dizer a respeito da violência contra a mulher e da cultura do estupro, como Vingança (Revenge, 2019) e Bela Vingança (Promising Young Woman, 2021). 

Esteticamente, Vingança se aproxima bastante de filmes como Planeta Terror (Planet Terror, 2007) e Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015). Isso significa que existe pouca preocupação com o realismo. Essa escolha serve à narrativa na medida em que Jen (Matilda Lutz) não tem tempo para planejar uma retaliação porque a sobrevivência se mistura à vingança nos atos finais do longa. Portanto, ela não escolhe ir atrás dos responsáveis pelo estupro, mas sim precisa caçá-los para não ser caçada graças ao isolamento geográfico local em que está. Assim, Coralie Fargeat, a diretora, transforma a personagem quase em uma heroína de videogames, o que é divertido de assistir e contribui para que o público torça pela protagonista de Vingança. Essa escolha também representa uma quebra na forma como Jen foi construída durante a primeira meia hora do filme.

Isso porque nós a conhecemos como a amante de um milionário que foi levada por ele para um retiro de caça. Nesse primeiro momento, ela é propositalmente retratada como alguém frívolo e um pouco irritante, o que parece querer desafiar a empatia do público. É como se Matilda Lutz e Coralie Fargeat quisessem testar até onde quem assiste consegue ir sem acreditar que Jen mereceu ser estuprada. Um aspecto que ajuda a reforçar essa ideia é o fato de que a dupla abre mão por completo da ideia de violação da inocência ao optar por criar uma personagem que conhece bem a sua sexualidade e as formas de usá-la a seu favor. Então, quando o abuso acontece, ao mesmo tempo em que Vingança parece querer dizer que isso era esperado, o longa lança mão de outros recursos para nos colocar ao lado de Jen. O principal deles é a escolha de nos deixar ouvir mais do que ver durante a sequência de estupro. Assim, quando a câmera da diretora abandona o quarto para mostrar o que outro personagem masculino está fazendo, o espectador o vê aumentando o volume da televisão e se sentando para assistir, algo que serve para reforçar o pacto silencioso entre os homens quando o assunto é o estupro.

Então, embora Vingança seja um filme extremamente estilizado e gráfico, ele não é explorador. Na verdade, Coralie Fargeat chega a brincar com essa ideia porque o único personagem que aparece nu durante toda a projeção é Richard (Kevin Janssens), o namorado de Jen. E isso acontece depois que a protagonista conseguiu matar Stan (Vincent Colombe) e Dimitri (Guillaume Bouchède), a dupla de amigos convidada para o retiro de caça. Ou seja, Jen e o seu amante estão sozinhos em um campo de batalha nivelado. Além disso, Richard está coberto de sangue e sendo perseguido de forma implacável, algo que remete à forma como Jennifer foi caçada em boa parte do segundo ato de A Vingança de Jennifer. Logo, trata-se de uma subversão bem-vinda e de um longa que realmente devolve algum poder para as mulheres.

Sobre essa retomada, Bela Vingança propõe algumas reflexões ousadas. Na cena de abertura, vemos Cassie (Carey Mulligan) bêbada em uma boate e ela é abordada por um homem “preocupado com a sua segurança”, Jerry (Adam Brody). Ele lhe oferece uma carona para casa e no meio do caminho propõe que eles mudem a rota e vão até o apartamento dele. Quando Cassie pede para se deitar, Jerry aproveita para beijá-la forçadamente e para começar a tirar a sua roupa. O tempo todo, nós tememos pelo que vai acontecer, e, quando a protagonista “acorda” completamente sóbria para questionar o que Jerry está fazendo, somos surpreendidos. Aos poucos, descobrimos que essa encenação faz parte de um plano de vingança maior e que Cassie vem executando-o pacientemente todas as noites desde que Nina, a sua melhor amiga, tirou a própria vida depois de ser estuprada por um colega de sala.

Inicialmente, a vingança de Cassie não é algo direcionado. Ela sequer conhece os homens com quem sai à noite. Na verdade, o seu objetivo é atacar algo que está no coração da cultura do estupro: a certeza da impunidade. Então, quando ela fica magicamente sóbria e assiste a esses caras tentando defender a sua conduta ou mesmo quando planta na cabeça deles a dúvida sobre existirem outras mulheres que adotam a mesma prática, nós entendemos que a justiça que ela deseja não é somente para Nina, mas sim para qualquer mulher que se veja exposta a esses tipos de homem, especialmente àqueles que insistem em se definir como “caras legais”. O adjetivo, entretanto, parece querer dizer somente que eles não são esquisitões em um beco escuro, mas sim rapazes bonitos que abordam mulheres por se importar com o que aconteceria caso elas permanecessem vulneráveis em um espaço hostil.

Algo bastante acertado para fazer com que o público perceba que um estuprador não tem um rosto definido foi escalar atores conhecidos por interpretar “caras legais” em produtos da cultura pop recente. Por exemplo, Adam Brody se tornou querido nos anos 2000 por dar vida a Seth Cohen em The O.C; Christopher Mintz-Plasse interpretou o desajeitado McLovin de Superbad – É Hoje (Superbad, 2008); e, por fim, Max Greenfield era o adorável Schmidt, de New Girl. Todos esses personagens são marcantes o suficiente para que os seus intérpretes sejam automaticamente associados a pessoas inofensivas e de boa índole. De certa forma, isso se conecta com a ideia presente no título original do filme, que em tradução livre significa jovem promissora. Segundo Emerald Fennell, a diretora e roteirista de Bela Vingança, quando ela estava escrevendo o roteiro, a ideia de dar este nome para o filme surgiu a partir de uma manchete de jornal que se referia aos homens que cometeram um estupro como “promising young men”. Ou seja, eles eram rapazes brilhantes que teriam a vida interrompida por um “erro” caso fossem condenados. Em momento algum a matéria se perguntava a respeito da vítima, e, dessa forma, Fennell construiu toda a narrativa do filme para não deixar que nós olhássemos para outra coisa.

Ainda que Nina comece a história morta, ela é o motor da trama e tudo acontece por causa dela. Desse modo, embora algumas pessoas tenham criticado o fato de que a vingança de Cassie se torna pessoal nos atos finais do longa, na verdade, é exatamente aí que Emerald Fennell encontra espaço para deixar o seu ponto de vista claro. Para além da cena da despedida de solteiro, existem dois passos no plano de Cassie que são brutais, mas extremamente necessários por não focarem nos homens e sim nas mulheres que contribuem para que a estrutura nos transforme em vítimas diariamente.

O primeiro desses passos é o seu encontro com Madison (Alison Brie), uma amiga da faculdade que sabia que Nina estava falando a verdade, mas escolheu ignorar e não testemunhou a seu favor quando os fatos cercando o estupro foram apurados. Inclusive, durante o encontro com Cassie, Madison volta a dizer que provavelmente nada aconteceu e Nina precisava chamar a atenção por ter se arrependido do que fez na festa. Então, quando vemos essa personagem, agora bêbada e vulnerável, sendo levada para um quarto de hotel por um homem e depois assistimos à protagonista recusando as suas ligações por dias a fio, nós entendemos exatamente o que Cassie pretendia ao armar essa situação. Na verdade, pouco importa o que aconteceu entre Madison e o homem, porque o episódio é traumático pela incerteza e, claro, por tudo o que naturalmente faria com que a credibilidade feminina fosse questionada. Inclusive, é curioso como Madison parece menos propensa a confiar na índole de um homem a partir do momento que ela se torna uma vítima em potencial.

O segundo episódio está ligado à visita que Cassie fez à reitora da faculdade na qual ela, Nina e o estuprador estudaram. Primeiramente, ela finge interesse em retomar os estudos e a partir disso introduz o que aconteceu com a amiga na conversa. Então, a reitora tenta se eximir da responsabilidade pela injustiça afirmando que casos como esse precisam ser verificados com cautela para que o futuro dos rapazes não seja arruinado. Novamente, Cassie lança mão da ideia de que a dor só é compreendida quando bate à porta e mente sobre ter deixado a filha adolescente da reitora no mesmo dormitório em que Nina foi estuprada. Imediatamente, a ideia de dar o benefício da dúvida aos homens desmorona, dando lugar ao desespero para manter a menina em segurança.

Embora tudo isso possa parecer implacável, ao mesmo tempo, é compreensível. Nina tentou justiça por todas as vias legais. De um lado, encontrou advogados dispostos a destruir o seu caráter com base em fotos postadas nas redes sociais. Do outro, encontrou a indiferença da universidade pelo caso, algo que é bastante comum na realidade estadunidense e já foi abordado no documentário The Hunting Ground (2015), uma produção que não desvia os olhos de assuntos desconfortáveis, como a predisposição das instituições de ensino para acobertar casos de estupro somente para conservar a sua reputação. Portanto, em uma sociedade na qual a vítima é a última coisa na cabeça de qualquer pessoa em uma posição de poder, resta a Cassie recorrer ao terror psicológico para conseguir mostrar o óbvio.

É por isso que o desfecho de Bela Vingança, apesar do amargor, é o único final possível para um filme que quer discutir o papel da certeza da impunidade na criação de contextos que possibilitam estupros. Ainda que algumas pessoas não gostem do tom pessimista, na verdade, não existe um cenário em que uma história como essa poderia terminar bem e Cassie sabia disso desde o momento que decidiu entrar naquela cabana – daí todos os arranjos feitos pela protagonista antes de seguir adiante com o seu plano. Então, por mais que às vezes ela se pareça com uma vingadora impiedosa, na verdade, Cassie é somente uma mulher quebrada lidando com o luto e a raiva gerada por ele de uma forma extrema. Portanto, era óbvio que ela não tinha preparo para se expor àquela situação e conseguir escapar ilesa. Todos os arranjos que ela faz antes de seguir viagem para o local em que o estuprador está dando uma festa são pensados justamente porque ela sabe que existe a chance de que a história acabe ali, com mais uma mulher pagando a conta para que homens continuem vivendo as suas vidas em liberdade.

Embora filmes como Vingança e Bela Vingança adicionem novas camadas de complexidade ao rape and revenge, afastando definitivamente o subgênero do sensacionalismo das décadas anteriores, eles deixam evidente algo bastante incômodo: as mulheres só são capazes de acertar as contas através do justiçamento. Mesmo que este recurso seja muito mais cinematográfico e catártico, ele também serve para expor o fato de que o estupro é o crime perfeito porque o que está em julgamento não é uma ação que lesa outra pessoa, mas sim a conduta da vítima. Quando se fala sobre atribuir culpa e punição, casos dessa natureza se importam pouco com fatos e provas. Na verdade, o que vale é criar uma narrativa que continue servindo à ideia de que mulheres provocam e homens são incapazes de se controlar. E ainda que a tal “vítima perfeita” realmente existisse, em alguma medida ela precisaria estar preparada para ter o seu caráter arrastado na lama se quisesse fazer justiça por meio de dispositivos legais – algo que também é mostrado de modo eficaz pelo cinema em Acusados (The Accused, 1988), em Elle (Elle, 2016) e em séries como Law and Order: SVU.

Logo, o rape and revenge atualmente é um subgênero que serve para deixar claro o quanto as mulheres ainda estão vulneráveis e têm a sua liberdade cerceada por uma sociedade que insiste em tratá-las como seres de segunda classe. Portanto, apesar do seu histórico contraditório e de alguns exemplos que continuam investindo em uma violência extrema e desproposital, trata-se de um estilo de cinema com potencial para dizer muito a respeito do mundo em que vivemos e da forma como, apesar de todos os avanços, ele continua pronto para transformar mulheres em vítimas diariamente, o que, mais uma vez, confirma a fala de Carol J. Clover a respeito de não tecer análises condenatórias. Isso não significa ignorar problemas, mas sim aprender a observar criticamente produtos culturais, bem como entender que o passado das coisas pode nos dizer muito sobre o lugar que estamos atualmente.

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Amanda Guimarães – Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), atua há mais de 10 anos como corretora de textos e redatora e escreve sobre cultura em vários sites pela internet afora desde 2012. Obcecada por cinema de horror, gatos e música dos anos 90, curte viajar para festivais e ficar em casa rodeada de suas gatas.

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Domingo, 13 de agosto de 2013, 20h30 – lua minguante

Domingo, 13 de agosto de 2013, 20h30 – lua minguante

Escrevo em diário desde os 13 anos de idade, quando tudo já era intenso e eu sempre ansiosa por me expressar. Desde criança sou curiosa, comunicativa, alegre e “justiceira” – daquelas que protegia as pessoas oprimidas, inclusive eu mesma, sentando o sarrafo em quem fazia bullying comigo. Sorrio ao me lembrar disso. Trouxe essas características sobre mim para dizer que, por tudo isso, ao meu redor sempre tive pessoas para compartilhar, falar e ouvir, as experiências da vida, alguns pensamentos, impressões. Mas, em algum momento, eu entendi que tinha coisas particulares minhas que só cabiam num caderno e que ninguém pudesse saber, inclusive alguns poemas que comecei a escrever ainda bem jovem, e parei quando adulta… A vida tem dessas coisas…

Nesta Coluna/Diário, obviamente, escreverei sobre mim e meu ofício de editar livros escritos por mulheres e fazer dessa prática minha contribuição na luta feminista para mudar o mundo. Sim, é isso que as feministas, todas, queremos, mudar o mundo.

Hoje tenho 37 anos, guardo mais de 50 cadernos (além do inacabado atual) onde escrevi somente para mim mesma – hoje bem menos que ao longo dos primeiros 15 anos de escrita em diário –, escolhi fazer graduação em Letras para estudar Literatura e tomei para mim, como ofício e práxis feminista, editar livros. Sim, me tornei EDITORA. Mas não somente uma editora, me tornei uma ativista feminista no fazer editorial (outro dia escrevo sobre as especificidades disso, que inclusive é meu tema de mestrado). Fundei, em 2019, a Editora Luas, que tem um projeto editorial feminista de publicar exclusivamente textos escritos por mulheres, de trabalhar prioritariamente com elas, de, assim, contribuir para a circulação de livros contemporâneos de literatura; livros antigos, de nossas antepassadas (reeditá-los); livros de não ficção que discutem temáticas feministas; e livros para as infâncias.

Fiz toda essa apresentação, porque sei que é um diário aberto, público, e sempre preciso (e adoro!) contextualizar rs.

Mas, o que quero “desabafar” mesmo aqui, neste espaço, é um certo cansaço… Cansaço acumulado diante de tantos afazeres por ser uma editora que tem uma equipe de duas pessoas – eu e minha irmã maravilhosamente incrível, Dani, que é responsável pela parte que sou desesperadamente ignorante: administrativo, financeiro, comercial, estoque e criação das artes de divulgação. Cansaço por enfrentar solitariamente, sabendo que muitas mulheres editoras estão como eu, as dificuldades de ser uma editora independente, pequena, mas que sonha grande grande. Cansaço por ansiar tantas publicações e ter limitação de caixa, e por isso ter de adiar ou mesmo abrir mão de algum projeto ou publicação incrível. Cansaço por estar num contexto econômico tão desfavorável para vivermos minimamente bem – nós, trabalhadoras/es de modo geral, mas destaco aqui as trabalhadoras do livro – e para nossos projetos editoriais serem autossustentáveis.

Me sinto muito muito cansada… de ter de cuidar da Luas em tantas frentes sozinha e pegar muitos freelas, prestar serviço para outras editoras, porque a Luas não se sustenta ainda, muito menos a mim… Outro dia escrevo aqui tudo que faço… hoje me sinto tão cansada que só de lembrar já cansei mais…

Ao mesmo tempo, ainda tenho muitos sonhos dentro de mim… parafraseando o poeta meu irmão gemini, o Pessoa… E sou uma eterna entusiasta de que devemos executar nossos sonhos, desejos, por mais difícil que pareça. Acho mesmo que toda pessoa que queira fazer livros, abrir uma editora, deva fazer, principalmente se for uma mulher…

Li algo muito bonito e forte hoje, da María Lugones, e vou reproduzir aqui – hoje escreverei pouco, outro dia, em que estiver menos cansada, escrevo mais – para finalizar o dia de hoje com esperança:

“Não se resiste sozinha à colonialidade do gênero. Resiste-se a ela desde dentro, de uma forma de compreender o mundo e de viver nele que é compartilhada e que pode compreender os atos de alguém, permitindo assim o reconhecimento. Comunidades, mais que indivíduos, tornam possível o fazer; alguém faz com mais alguém, não em isolamento individualista. O passar de boca em boca, de mão em mão práticas, valores, crenças, ontologias, tempoespaços e cosmologias vividas constituem uma pessoa” (Lugones, María. Rumo a um feminismo descolonial).

Um dia de cada vez, sempre e todo dia. Continuarei. Continuemos.

Avante, hermanas!

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   Cecília Castro – Fundadora e diretora editorial da Editora Luas. Nasceu no norte de Minas, é feminista, ativista, apaixonada por livros, poesia e literatura.

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Driblando o preconceito

Driblando o preconceito

O esporte é uma das instituições mais poderosas. Os clubes, as federações, confederações possuem um forte instrumento a seu favor: o marketing esportivo. Fortunas são movimentas no mundo, e sua estreita relação com o universo do ilícito é pouco comentado. No Brasil, o sonho em tornar-se um jogador de futebol da seleção é alimentado desde tenra idade nos meninos, graças ao marketing esportivo, de tempos em tempos são criados ídolos, independente de suas competências técnicas ou mesmo características morais. O importante é existir um ídolo, um símbolo onde se apegar para alimentar a crença de que o amanhã poderá ser melhor. Muitos destes grandes nomes do futebol brasileiro estiveram envolvidos em escândalos com drogas, pedofilia e estupro de vulneráveis.

O esporte de rendimento é uma das instituições onde o preconceito sexual é enraizado. Apesar do fanatismo nacionalista pelo futebol, quando podemos ter o privilégio de ver uma partida feminina dos clubes brasileiros? O futebol é um ótimo exemplo para fomentarmos uma discussão sobre as mulheres cisgênero nos esportes. Vale lembrar dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, quando a seleção feminina fez sua estreia. Foi um arraso, vitória após vitória, as atletas do Brasil conseguiram chegar à quarta colocação. Mesmo assim, fica a pergunta: o que aconteceu com aquelas jogadoras depois de uma estreia que as deixou perto das melhores do mundo? Suas histórias terminaram de um modo bem diferente daquela dos ídolos masculinos. Muitas nem sequer tiveram seus contratos refeitos nos clubes nacionais. A grande surpresa foi que clubes “famosos”, como Fluminense, Grêmio e Corinthians, seguiram as recomendações do projeto de Marketing do Saad (clube de futebol feminino de São Paulo), que dizia que, além de competência técnica, é necessário ter beleza para entrar em campo. Como o conceito de beleza para os homens (cis/hétero) é bastante questionável, podemos imaginar qual foi o destino das nossas craques lésbicas e de todas aquelas que fogem ao padrão heteronormativo.

Podemos dizer que isso faz parte de uma tradição de vigilância sobre o corpo e o comportamento das mulheres, de um imaginário coletivo no qual a passividade, o sacrifício, a submissão e a maternidade seriam dons privilegiados das mulheres. As duas primeiras publicações da Escola Militar de Educação Física (1930 e 1932) do Rio de Janeiro, sobre as mulheres na educação física, eram muito claras neste sentido: as mulheres têm a missão de fortalecimento nacional através da procriação, por isso não deveriam realizar atividade de força, pois as atividades físicas deveriam, sim, trabalhar a “bacia” e fazer a “correção das formas”, no popular, hoje, deixá-las “gostosas”. É interessante observar, por exemplo, que a dança (vista no senso comum como atividade feminina) era indicada com sérias restrições nestas publicações, pois poderia mobilizar “paixões, energia sexual, impulsos eróticos e a lascívia”.

Ignorância e preconceito à parte, as mulheres persistiram, mas veio a legislação. Em 1941, o Conselho Nacional de Desportos (CND) cria o decreto Lei 3.199, que no artigo nº 54 dizia que as mulheres não poderiam praticar esportes incompatíveis com sua natureza e, na deliberação 7, dizia que não seria permitida a prática de futebol, futsal, futebol de praia, pólo, halterofilismo, baseball e lutas de qualquer natureza. Essa aberração vigorou até 1975 e teve uma revisão insignificante em 1965, quando definiu o que poderia e o que não poderia ser jogado.

Enquanto isso, as escolas alemãs de educação física para Mulheres, em 1930, tinham o seguinte lema: “Uma garota para cada esporte e um esporte para cada garota”, elas já brigavam com as americanas que pregavam o jogo pelo jogo. Do outro lado do mundo, no Japão, em 1926, já se realizava a primeira Conferência da Kodokan (primeiro dojô, ginásio para prática de judô, inaugurado em 1882) de Judô Feminino. E, muito antes disso, as mulheres das famílias de samurais estudavam o Nagitana (luta com espada) e o Kyudo (arco e flecha), bem como mulheres que se desenvolveram na tradição do Jujitsu (no popular Jiu Jitsu). Podemos ainda tomar como exemplo Rusty Kanokogi, pioneira no judô feminino, cujo esforço se deve o primeiro campeonato Mundial de Judô para mulheres em Nova York, em 1980. Sua história marca as dificuldades pelas quais muitas mulheres atletas tiveram que superar. Em 1955, a muito custo, ela conseguiu entrar no dojô local e teve que treinar com 40 homens, muitos dos quais tombaram no tatame. Ela entrou para a história do judô, dentre muitos feitos, por participar de campeonatos contra homens e sair vitoriosa. Incansável, Kanokogi processou o Comite Olímpico do EUA e o USJudô Inc., por excluir as mulheres do Nacional Sports Festival em 1981, alegando discriminação sexual.

A questão é que os argumentos machistas sempre foram contraditórios, tentaram excluir as mulheres em função de uma suposta fragilidade física, intolerância à dor e dom da procriação, sem pensar que o próprio ato de parir envolve força, coragem e muita dor. Mas o importante é que as mulheres resistiram, tiveram seus nomes marcados nos momentos de maior alegria para quem realmente gosta de esportes, afinal quem não se lembra do quarteto que arrebentou corações, Marta, Paula, Janete e Hortência, esta que até recebeu o título de rainha do basquete? Em 1994, no Mundial de Basquete da Austrália, a seleção feminina nos proporcionou a alegria de vê-las desfilar em nossas cidades brasileiras carregando no peito uma medalha de ouro. Hortência, que com apenas 1,74 de altura, muita garra, tendo de 10 a 12 horas de treino diário, permaneceu imune aos podres jogos da instituição desportiva, de domínio, ainda, quase exclusivamente masculino.

Poderia ainda falar das Ligas e Federações de Juízes, da qual fiz parte e, como muitas companheiras, tive que trabalhar completamente só num universo dominado por homens, quando aos 20 anos de idade fui aprovada no concurso da Liga Pelotense de Futsal, em Pelotas R.S., assumindo a cadeira e o peso de estar entre as primeiras mulheres a ingressar nessa instituição. Como muitas companheiras, compartilho a ideia de que a distribuição de jogos, de categorias e de trabalho em campo é desigual, injusta e acarreta uma diferença salarial substancial. Assim é com o Comitê Olímpico Internacional, com os “grandes clubes”, com as Confederações.

Em 2010, realizei uma pesquisa documental na Biblioteca Nacional (BN) do Rio de Janeiro e encontrei matérias sobre os testes de sexo, realizados pelo Comite Olímpico Internacional. Eram testes obrigatórios para as mulheres poderem participar dos jogos e garantirem a sua “carteira rosa”, ou seja, a prova definitiva de que eram mulheres. Os testes começaram nos jogos de 1968 e se prolongaram por oito edições, até os anos 2000. Eram testes invasivos, nos quais uma comitiva de médicos, todos homens, vasculhavam e fotografaram as genitálias das atletas. Encontrei matérias que relatam que algumas fotos vazaram na imprensa e levaram muitas atletas a desistirem da carreira após tamanha humilhação pública. Um dos textos sobre a pesquisa pode ser encontrado na Revista de História da BN e também no meu site: https://patricialessa.com.br/artigos/.

Em 2023, tivemos, pela primeira vez no Brasil, a oportunidade de assistir em rede nacional a Copa do Mundo Feminina. O governo federal, pela primeira vez na história, decretou ponto facultativo nos dias que a seleção brasileira jogou. Foi algo inédito no Brasil, apesar de ser bem comum em muitos países, onde o machismo e o ódio às mulheres não são tão escancarados como nas terras brasileiras. Infelizmente, foi a última Copa do Mundo na qual a jogadora número 10, Marta, participou. Felizmente, para as mulheres, tivemos a honra de acompanhar uma carreira de glórias, de ética e de muita luta. Marta, mulher nordestina, lésbica, teve que sair do Brasil, hoje é atleta do Orlando Pride, nos Estados Unidos. No Brasil ainda é difícil para as mulheres viver do esporte, mesmo no futebol.

Mesmo com as barreiras impostas pela misoginia, Marta é recorde entre mulheres e homens, sendo eleita seis vezes a melhor do mundo, com 119 gols pela seleção brasileira. Número que a define como a maior goleadora entre mulheres e homens. Pelé fez 77 e vem logo depois. Além disso, ela ficou conhecida pela campanha contra as marcas de tênis. Ela cobre com uma fita a marca a fim de mostrar que a desigualdade no patrocínio entre mulheres e homens é imensa e, portanto, deve ser exposta publicamente.

Futebol, SK8, bodyboard, ciclismo, equitação, basquete, corrida, atletismo, halterofilismo, fisiculturismo, boxe, esgrima de espada e de sabre dentre muitos outros esportes, alguns deles até poucos anos “contraindicados” para o “sexo frágil”, são hoje praticados por mulheres que não se dobram às injustiças sociais e, com muitas dificuldades, falta de patrocínio, assédio moral e sexual dentre outras questões, levantam todos os dias com garra e força e transformam o mundo dos esportes de rendimento em um cenário renovado com a sua presença. No mês da visibilidade lésbica, vamos saudar as atletas, lesbianas ou não, que estão dando uma lição de força e resiliência dentro de um universo muitas vezes hostil.  

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Conversa suave, de Joyce Chopra

Conversa suave, de Joyce Chopra

As histórias sobre amadurecimento (ou coming-of-age), em geral, possuem enredos bastante simples: em um recorte curto da vida dos protagonistas, eles passam por momentos transformadores que contribuem para a sua saída da adolescência e entrada na vida adulta.

Assim, os eventos retratados não costumam ser grandiosos e as narrativas pertencentes a esse estilo de cinema priorizam aspectos psicológicos. Então, processos internos têm tanta importância quanto o que vemos em tela, de modo que o coming-of-age exige investimento emocional por parte do espectador.

Na década de 1980, esse “gênero” se tornou popular pelas mãos de John Hughes, responsável por clássicos como Clube dos Cinco, Curtindo a Vida Adoidado e Gatinhas e Gatões. De uma forma bem-humorada, o diretor se valia do universo de adolescentes para estudá-los e fazia isso de um modo que a sua produção fosse acessível para os jovens, que eram o seu público-alvo. Essa escolha rendia tanto sequências engraçadas, como Ferris Bueller (Matthew Broderick) levantando a multidão com Twist and Shout em um desfile, quanto momentos de muita sinceridade, como a cena em que os personagens de Clube dos Cinco conseguem se enxergar para além dos estereótipos que assumem nos corredores da escola.

Apesar de Hughes ter sido o grande destaque mainstream do coming-of-age oitentista, o estilo de cinema também foi um terreno bastante frutífero para a produção cinematográfica feminina, visto que essa década marcou o começo da carreira de diretoras como Amy Heckerling (Picardias Estudantis), Penny Marshall (Quero Ser Grande), Susan Siedelman (Smithereens), Martha Coolidge (Sonhos Rebeldes) e Joyce Chopra, que assina uma das maiores pérolas do estilo quando se fala sobre retratos de garotas adolescentes: Conversa Suave (Smooth Talk, 1985), filme que passou anos esquecido e foi resgatado em 2020 após um relançamento em festivais e mídia física.

Baseado no conto Where Are You Going, Where Have You Been?, de Joyce Carol Oates, Conversa Suave nos coloca como observadores da rotina de Connie (Laura Dern), uma garota de 15 anos que mora com a sua família em uma casa de fazenda no subúrbio. Durante as suas férias de verão, ela faz uma série de atividades comuns com as suas amigas e evita ao máximo o ambiente doméstico, tanto pelo tédio quanto por sua relação conflituosa com Katherine (Mary Kay Place), a sua mãe.

Dessa forma, os dois primeiros atos de Conversa Suave se dedicam à construção da imagem de Connie nos espaços pelos quais ela transita. Ao lado de Jill (Sara Inglis) e Laura (Margaret Welsh), a menina vaga pelo shopping da cidade demonstrando autoconfiança, usa roupas que ressaltam os seus atributos físicos e está sempre prestando atenção nos garotos ao redor, bem como tentando encontrar situações nas quais possa se colocar em contato com eles.

Entre sequências em lojas e conversas na fila do cinema, o que mais chama a atenção são os momentos nos quais a protagonista aparece no dinner à beira da estrada. Nesse ambiente, ela flerta abertamente e, por vezes, aceita deixar o local na companhia de algum rapaz. Porém, não é difícil perceber que Connie está apenas replicando um comportamento que aprendeu em revistas femininas: o seu rosto parece concentrado demais e os seus gestos cuidadosamente calculados. Além disso, uma vez que a possibilidade de um contato íntimo se torna tangível, a personagem acaba abandonando os seus encontros sem maiores explicações. Logo, é possível notar que as suas idas ao dinner têm muito mais a ver com um desejo de ser apreciada do que com um interesse por sexo.

Isso pode ser corroborado pela cena na qual ela volta sozinha para casa. Nela, Connie está caminhando por uma estrada escura e praticamente deserta quando acaba chamando a atenção de um grupo de jovens que está passando de carro. Nesse momento, a garota se irrita pela forma como é abordada, visto que acredita existir um contraste entre ouvir cantadas sendo gritadas aos quatro ventos e ditas na forma de uma conversa suave. Ainda que os dois “modus operandi” partam do mesmo tipo de ideia e tenham a mesma motivação, Connie não é capaz de perceber essa sutileza devido à sua inexperiência. Então, para ela, os garotos com quem flerta estão lhe oferecendo afeto e atribuindo importância à sua presença; enquanto os que passam de carro estão somente avaliando-a pela sua aparência, algo que não faz com que ela se sinta vista.

Vale comentar também que essa necessidade de ser apreciada tem ligação direta com a dinâmica familiar da personagem, em particular com a sua relação com a mãe, que favorece abertamente June (Elizabeth Berrige), a filha mais velha. O clima de hostilidade e incompreensão é estabelecido ainda na primeira cena em que vemos Katherine e Connie interagindo: a menina está no seu quarto ouvindo música e se preparando para sair com as amigas quando a mãe entra, olha para ela e diz que só enxerga “devaneios inúteis”. Além disso, Connie é constantemente cobrada em assuntos relativos à reforma da casa da família, em especial sobre a sua incapacidade de ajudar a acelerar o processo. Embora esses diálogos sirvam para acentuar a sobrecarga materna, visto que o pai está constantemente ausente devido ao seu trabalho, a mesma cobrança não recai sobre June, o que demonstra que Katherine apenas não sabe acessar a sua filha mais nova e prefere assumir um tom condenatório diante da sua necessidade de se encontrar enquanto sujeito.

Outro ponto interessante sobre as sequências nas quais Connie aparece convivendo com a sua família é a forma como a sua postura muda drasticamente. Com os ombros arqueados e os braços entrelaçados ao redor do corpo, ela parece deslocada e incomodada. Além disso, está constantemente voltada para dentro de si mesma e não se parece em nada com a garota extrovertida que assistimos nas demais sequências. A única coisa que Connie conserva é o seu senso de rebeldia, visto que ela se recusa a participar de atividades como o churrasco de vizinhos que o seu pai estava ajudando a organizar. E é exatamente essa recusa que abre espaço para que Conversa Suave se transforme em um thriller psicológico no seu último ato.

A mudança de tom acontece por meio da introdução de Arnold Friend (Treat Williams) na história. Ele é um homem mais velho, na casa dos 30 anos, que tem acompanhado Connie à distância. Conforme o diálogo entre os dois avança, é notável que Arnold já observou o bastante para colher elementos que pudesse usar para intimidar a menina e convencê-la a dar um passeio de carro com ele. Friend assume um comportamento predatório desde o seu primeiro momento em cena, e, mesmo se deixamos de lado a linguagem corporal, o principal elemento que denuncia as suas intenções, é curioso notar como o que ele diz pra Connie não se difere tanto do que os garotos do dinner dizem. Inclusive, o tom suave também está presente, mas no caso de Arnold ele serve para esconder a ameaça velada e o fato de que ele não está disposto a aceitar um “não” como resposta.

Os elementos discursivos e as atuações são fundamentais para que a apreensão cresça na última meia hora de Conversa Suave e quando eles se somam à ambientação, tanto pelo isolamento da casa de fazenda quanto pela fragilidade da porta de tela que separa Connie e Arnold, quem assiste se vê tão encurralado quanto a protagonista. Para além da construção da tensão, tudo isso serve também para justificar o uso de dois terços do filme para a construção de identidade de Connie. Na reta final do longa, embora ela esteja sendo lida por Friend como uma garota de “espírito livre”, ela está ocupando um espaço no qual pode deixar de lado a sua imagem cuidadosamente construída e ser o que é: uma menina de 15 anos que está procurando afeto nas pessoas erradas através das ferramentas erradas. E uma vez que não existe ninguém para impressionar ou mesmo o desejo de impressionar, Connie está vulnerável e não há nada que ela possa fazer para se esquivar da atenção indesejada.

Ainda que Joyce Chopra escolha, acertadamente, não mostrar o que acontece entre os personagens depois que eles partem para o passeio de carro, as sequências finais de Conversa Suave nos dão elementos suficientes para concluir, seja pela expressão no rosto de Connie ou por sua tentativa de resgatar momentos da sua infância através da música. Depois de voltar para casa, ela está acompanhada de sua irmã no quarto. Então, assume comportamento frágil e coloca para tocar uma canção que as duas costumavam ouvir com a mãe. A trilha sonora, bem diferente do pop rock que Connie escuta quando está sozinha, nos faz perceber que algo mudou internamente e, de repente, é como se ela não tivesse mais pressa de ser percebida como uma mulher porque, na verdade, a sua busca dizia muito mais respeito à carência afetiva do que a vontade de assumir um papel de adulta.

É bastante comum que os coming-of-age protagonizados por meninas façam esse tipo de caminho porque o crescimento das personagens não está ligado somente a uma experiência transformadora, mas à percepção de que adentrar o universo de mulheres adultas é algo muito mais complexo do que explorar possibilidades, estejam elas ligadas ao campo afetivo ou não. É também aprender a estar em constante estado de alerta e ciente de que o mundo não foi pensado para que a sua liberdade seja exercida sem ressalvas. E, principalmente, é saber navegar por essas questões sem se deixar paralisar. Portanto, o desejo de Connie por um retorno à infância encontra ecos nesses pontos, que infelizmente chegaram até ela de uma maneira violenta, mas que teriam lhe alcançado de qualquer outra forma – e isso é algo que o coming-of- age das últimas duas décadas demonstra com clareza por meio de títulos que vão do horror de It – A Coisa (It, 2017) ao desconforto de Oitava Série (Eight Grade, 2018).

Então, o que separa Conversa Suave de outras histórias sobre amadurecimento é o entendimento das implicações de crescer sendo uma garota em um mundo que sequer oferece opções saudáveis de inspiração. Joyce Chopra consegue colocar essas discussões nas entrelinhas do seu filme sem se esquivar de temas difíceis ou tratá-los de maneira panfletária e verborrágica, o que seria um equívoco em uma arte que é, antes de tudo, imagem. Através dessas escolhas, a diretora demonstra entendimento não só de Connie, mas de uma geração que cresceu em um período histórico turbulento e marcado por diversas mudanças coletivas de mentalidade que impactaram significativamente a maneira de sujeitos jovens de se colocarem no mundo e, claro, à forma como o mundo respondia a essas novas formas de existir.

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Amanda Guimarães – Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), atua há mais de 10 anos como corretora de textos e redatora e escreve sobre cultura em vários sites pela internet afora desde 2012. Obcecada por cinema de horror, gatos e música dos anos 90, curte viajar para festivais e ficar em casa rodeada de suas gatas.

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Por que marchamos?

Por que marchamos?

 

“Esse é o resumo da nossa chegância. Mulherizar e indigenizar. Somos mulheres bioma, mulheres terra, água. Somos mulheres ancestrais.”

Célia Xakriabá

 

As mulheres, cis e trans, formam multidões marchando pelas ruas ao redor do mundo e adentrando nos espaços virtuais com muita criatividade, arte e ativismo social. As reivindicações são pontualmente localizadas ao sabor do tempo e da geografia. Nem todas se definem como feministas, mas, certamente, as feministas e/ou transfeministas ocupam lugares de destaque no agenciamento, na preparação e produção destes megaeventos sociais. Suas agendas são múltiplas: lutas por direitos, contra o feminicídio, contra o racismo, pela ecologia, pelos direitos dos povos indígenas, contra o estupro, pró-aborto legal etc.

Um ótimo exemplo foi a multidão que tomou as ruas de Buenos Aires, na Argentina, no dia 4 de junho de 2018, reivindicando mudanças na legislação que regulamentava a prática do aborto. Seu símbolo era o lenço verde e as vozes entoavam: “aborto legal no hospital!”. O lenço é emblemático naquele país. Lembremo-nos das Madres de la Plaza de Mayo (Mães da Praça de Maio). Elas formaram um agrupamento de mães em busca de seus filhos e filhas assassinados/as ou desaparecidos/as, no período entre 1976 e 1983, pelo terrorismo de Estado perpetrado na ditadura militar. O movimento começou silenciosamente, pois falar e protestar era arriscado. Foi então que as mães adotaram os lenços brancos como forma de se identificarem e se encontrarem clandestinamente para fugir da repressão, para trocarem informações e levarem suas demandas para a imprensa internacional. As mulheres de lenços verdes, assim como as mães de lenços brancos, escreveram um novo capítulo na história. Em dezembro de 2020, foi aprovada a lei de interrupção voluntária da gravidez nos hospitais da Argentina.

Muitos séculos antes das reivindicações na Argentina uma marcha além-mar marcou a história mundial. Cito a Marcha das Mulheres sobre Versalhes, realizada nos dias 5 e 6 de outubro de 1789. Aproximadamente 7 mil mulheres iniciaram o movimento no rumo do Palácio de Versalhes. Elas reivindicaram alimento para a população e mudanças constitucionais. A Revolução Francesa já estava em curso. O povo vivia na miséria e passava fome enquanto a nobreza e o clero ostentavam luxos absurdos. A notícia de um banquete em comemoração pela chegada de uma infantaria, que prometia proteger o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta, causou revolta popular especialmente entre as mulheres que não tinham pão para alimentar as suas famílias. Cerca de 20 mil pessoas aportaram nos portões do palácio exigindo mudanças sociais e alimento para o povo.

Anne-Josèphe Théroigne de Méricourt (1762-1817) foi uma das lideranças do movimento. Ela era uma campesina que havia participado da Tomada da Bastilha e, mais adiante, estaria na ocupação do Palácio das Tulherias. Seus discursos arrancavam aplausos da multidão. Ela dizia que era preciso levar “o padeiro, a padeira e o pequeno aprendiz” até Paris, fazendo referencia ao rei, a rainha e ao delfim. A ocupação em Versalhes foi sangrenta. Conta-se que aproximadamente 2 mil guardas tiveram as cabeças arrancadas e fincadas nos arredores do palácio. O rei, temeroso, assinou a afamada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Alguns anos depois, em 1791, Olympe de Gouges (1748-1793), pseudônimo de Marie Gouze, escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. A declaração rendeu-lhe a morte na guilhotina e só foi, parcialmente, agregada a legislação nos anos 1980 – período marcado como a década dos direitos das mulheres, sobretudo, com o início das Conferências Mundiais da Mulher alavancas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Muito se sabe sobre a Revolução Francesa, as cabeças dos nobres rolaram e a burguesia tornou-se uma classe de prestígio. No entanto, poucas pessoas sabem sobre a Marcha das Mulheres sobre Versalhes e o papel das lideranças femininas na insurreição e, em consequência, a abertura das portas para inclusão das mulheres como dignas de direitos.

Como havia escrito no início, cada lugar e temporalidade carrega suas bandeiras de luta. No dia 3 de abril de 2011 em Toronto, no Canadá, aconteceu uma manifestação transnacional a SlutWalk – divulgada no Brasil como Marcha das Vadias (MdsV). É importante recordar que as Marchas das Vadias tomaram as ruas do mundo depois de um estupro em que a vítima foi acusada pelo policial que a atendeu. Quando o agente judicial questionou sobre qual roupa ela estava vestindo no dia da violência sexual que havia sofrido, ele, automaticamente, a responsabilizou de seduzir o criminoso. A violência machista é reforçada e reafirmada no questionamento que se faz à vítima sobre suas roupas, local e horário de circulação na tentativa de demarcar o espaço público como local não apropriado para as mulheres, local perigoso, local de exclusiva circulação para os machos sedentos por sexo e sangue.

A MdsV sucedeu em um período de renovação nas ações marcadas pelos artivismos feministas, nestes os corpos das mulheres são territórios de paz e de luta social, tendo em vista que buscam o respeito e reivindicam direitos. A arte, o ativismo feminista e a educação libertária nos permitem, assim, entender que a construção de um mundo melhor passa pela pluralidade das vozes sociais, pela rebeldia como ato político e por práticas de resistência que podem ecoar rapidamente via redes sociais. 

A MdsV para Margareth Rago, em sua obra A Aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade, “traz algumas novidades no modo de expressão da rebeldia e da contestação, caracterizando-se pela irreverência, pelo deboche e pela ironia. Se a caricatura da antiga feminista construía uma figura séria, sisuda e nada erotizada, essas jovens entram com outras cores, outros sons e outros artefatos, teatralizando e carnavalizando o mundo público”.

Um artivismo posterior, com a marca de uma geração que faz sua arte circular de forma veloz pelas redes sociais, causando impacto ao redor do mundo, foi a ocupação das ruas proposta pelas feministas do Coletivo Las Tesis, do Chile. No dia 25 de novembro de 2019, elas ocuparam as ruas e os espaços virtuais com a performance Un violador en tu camino. Mulheres cis e trans, nos dias que seguiram, ocuparam as ruas e praças na América Latina, em Paris, Nova Iorque, Madri, em muitas cidades brasileiras, dentre outros tantos sítios geopolíticos e virtuais. Com uma sequência de dança sincronizada e simples, com uma venda preta nos olhos, ao som de tambores, elas cantavam, entoando a frase “o estuprador é você!”. O artivismo feminista tornou-se, em poucos dias, uma ode contra o feminicídio, deixando a mensagem feminista novamente nas ruas e na web: “a culpa não é minha, nem de onde eu estava e nem de como me vestia”.

No Brasil a realidade social das mulheres é muito complexa. Lemos no site da Sempreviva Organização Feminista (SOF): “Uma mulher é morta a cada nove horas durante a pandemia no Brasil”. A Revista Afirmativa apresentou, em 2021, alguns dados alarmantes: 74,7% das vítimas de feminicídio têm entre 18 e 44 anos; 61,8% são mulheres negras; 81,5% são assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros; 8,3% são mortas por familiares e em 55,1% dos casos o assassino usa arma branca. Segundo o Observatório do Terceiro Setor, o Brasil ocupa o 2º lugar no ranking mundial de exploração sexual de crianças. Por ano são registrados mais de 500 mil casos de exploração sexual de crianças e de adolescentes. São mais de 1.369 casos por dia. Estima-se que somente 10% deles sejam notificados.

Devemos lembrar que o Brasil é um território coronelista e latifundiário, nas mega fazendas de sangue e de veneno existe toda ordem de barbárie: exploração sexual de crianças, trabalho análogo ao escravo, safaris clandestinos, narcotráfico etc. Segundo a Agência Patrícia Galvão, estima-se que somente 10% dos casos de estupro sejam registrados. A subnotificação ocorre por vários fatores, dentre eles: os estupradores são homens conhecidos, o criminoso ameaça a vítima e sua família de morte, a vergonha de ter o corpo violado etc. Levando o percentual em conta, seria em torno de 822 a 1.370 estupros por dia no Brasil. Importante registrar que, após o Golpe de Estado que destituiu a Presidenta Dilma Roussef e preparou a tomada do poder pelo narcogoverno, pela bancada ruralista e pela bancada evangélica, a violência sexual contra mulheres e crianças aumentou vertiginosamente. A liberação de armas de fogo foi o estopim para o aumento de assassinatos e favoreceu o narcotráfico. Violências fomentadas pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. A relação de sua família com a morte de Marielle Franco ainda não foi esclarecida, muito embora alguns livros apontem a relação, como, por exemplo, Mataram Marielle: como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca, de Chico Otavio e Vera Araújo.

Voltando para as marchas, destaco a Marcha Internacional Mundo de Mulheres por Direitos realizada em Florianópolis, Santa Catarina. Entre os dias 30 de julho a 4 de agosto de 2017, aconteceu o 13º Congresso Mundo de Mulheres (MM) e o 11º Seminário Internacional Fazendo Gênero no campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A temática do evento foi “Transformações, Conexões, Deslocamentos”. O MM foi realizado pela primeira vez na América do Sul. No quarto dia de evento, aconteceu a marcha que reuniu mais de 10 mil pessoas no centro de Florianópolis reivindicando direitos. Havia gente de todos os cantos do mundo levando as suas bandeiras de luta, suas artes, cores e sons para as ruas da capital da Ilha da Magia. Ao final do percurso, houve uma roda de dança circular com mulheres indígenas, que ritualizaram o momento cantando, dançando e queimando incenso. Quero destacar que Marielle Franco estava marchando entre nós. Quem é da luta não foge da caminhada!

E, por fim, quero contar do encontro de duas grandes marchas de mulheres que aconteceu em 2019. Trata-se da 6ª Marcha das Margaridas e da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas.  Do dia 9 a 13 de agosto, as mulheres indígenas reuniram diferentes povos em torno da temática: “Território: nosso corpo, nosso espírito”. E nos dias 13 e 14, a Marcha das Margaridas caminhou em luta e sororidade, reunindo as mulheres do campo, da floresta, das águas, as indígenas e as quilombolas. Seu tema foi “Margaridas na luta por um Brasil com Soberania Popular, Democracia, Justiça, Igualdade e Livre de Violência”. As ruas da capital federal foram tomadas por mais de 100 mil pessoas durante cerca de 4 quilômetros, houve uma concentração na Esplanada dos Ministérios com diversas atividades. A imagem que ilustra este texto é deste encontro sublime e marcante na história deste país.

Em 2023, a Marcha das Margaridas será realizada em Brasília nos dias 15 e 16 de agosto e terá como lema a reconstrução do Brasil. Estima-se que serão mais de 150 mil pessoas reivindicando e lutando por um país mais justo e igualitário, com redução da violência e alimento para todas as bocas. As mulheres caminham irmanadas há séculos em todos os rincões do planeta, buscando por justiça social, direitos e pela abolição do feminicídio, da pedofilia e do estupro. Espera-se que os homens cis/hétero evoluam e consigam entender que somos multidão e não vamos parar de andar na direção de um mundo melhor. Retomando a frase inicial de Célia Xakriabá, vamos mulherizar o Brasil com a nossa chegância honrando as nossas ancestrais. Respondendo à questão do título: marchamos pelas irmãs que lutaram por nós, marchamos pelas que lutam pela vida, pelas nossas vidas, marchamos pelas que virão.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Antropornografia na obra de Carol Adams

Antropornografia na obra de Carol Adams

Mesmo se estivermos famintas, não somos pobres de experiência.

Gloria Anzaldúa

Uma das mais importantes autoras que estuda a relação do sexismo e do especismo é a feminista vegana Carol Adams. Ela cunhou o termo “antropornografia”, que significa mostrar animais pedindo para serem comidos. As relações entre mulher e natureza têm raízes na filosofia humanista e recebe grande apoio das ciências modernas, principalmente da psicanálise. Ecofeministas como Bila Sorb, Vandana Shiva e Maria Mies apontam que existe uma íntima ligação entre o paradigma humanista e a cultura patriarcal, discussão também presente na obra de várias feministas, dentre elas de Donna Haraway. Essa ligação manifesta-se na obsessão pela dominação e controle tanto sobre as mulheres quanto sobre a natureza e todas as outras espécies.

Por especismo se entende a ideia de promover a espécie humana como superior a todas as outras e, além disso, deliberar sobre todas as outras. Incluindo o direito sobre a vida e a liberdade. É a ideologia que justifica a exploração de uma espécie sobre as demais. Essa terminologia é assim expressa nos Cadernos Antiespecismo (Les Cahiers Antispécistes: Rèflexion et action pour l´égalité animale), criados na década de 1990 na França:

O especismo é para a espécie o que o racismo e o sexismo são respectivamente para a raça e para o sexo: a vontade de não levar em conta (ou de levar menos em conta) os interesses de alguns para o benefício de outros, alegando diferenças reais ou imaginárias, mas sempre desprovidas de conexão lógica com aquilo que elas são consideradas. Na prática, o especismo é a ideologia que justifica e impõe a exploração e o uso dos animais pelos humanos com meios que não seriam aceitos se as vítimas fossem humanas.

Um dos marcos das mudanças em relação ao tratamento dado aos animais foi a promulgação da Declaração Universal de Direitos dos Animais pela UNESCO em 15 de outubro de 1978, em Paris. O patriarcado influenciou nossas ideias mais fundamentais sobre a natureza humana. Nessa relação as mulheres estariam mais próximas dos animais, por isso são, na nossa cultura, associadas a nomes como vaca, galinha, égua, potranca, cachorra.

Para Carol Adams, as pessoas que comem animais estão se beneficiando de um relacionamento dominante/subordinado. Nossa cultura encoraja a invisibilidade das estruturas físicas, permitindo assim uma completa negação da individualidade animal, até que isso não seja visto como subordinação. A carne é percebida como a razão ontológica para a existência dos animais, indica que eles existem para serem comidos. Para proposta ética de cuidado feminista, uma das coisas de que precisamos é questionar a ordem da racionalidade ocidental norteada por desdobramentos filosóficos e científicos misóginos. Por isso é necessário problematizar o tema nos quadros de uma epistemologia feminista, como propõe a bióloga e feminista vegana. Não vamos quebrar paradigmas usando teorias que negam e invisibilizam as mulheres e os animais, por isso trabalhamos com as teorias feministas contemporâneas. É preciso questionar a objetividade dos paradigmas dominantes que coisificam mulheres e animais.

Conforme Adams, a antropornografia é um dos alicerces do patriarcado. Assim é que para essa autora comer carne exercita as representações de dominação/subordinação. A carne é a reinscrição do poder masculino em cada refeição. Se carne é um símbolo de dominância masculina, então a presença da carne proclama o desempoderamento das mulheres. Na capa do seu livro As políticas sexuais da carne há uma ilustração que apareceu originalmente em uma toalha de praia em 1969, mostrando uma mulher dividida em cortes de “carne” como a imagem dos cortes da carne de vaca, onde se lia o subtítulo “Qual é o seu corte?”. Seu livro analisa imagens publicitárias em que os animais abatidos para o consumo humano são representados como “felizes” em sua condição de alimento para a espécie humana. Outras imagens de alimentos derivados de carne associam o corpo feminino como comida.

Outra importante estudiosa na área é Naama Harel, da Universidade de Israel. Segundo a autora, o mito de que os homens “necessitam” da proteína derivada da carne coloca-os à frente da problemática da exploração animal e das questões ambientais, como a devastação das florestas para a criação de gado.

Adams concorda que a fonte desse mito reside numa progressão da importância dada do papel do gênero masculino na produção de alimentos. Ambas concordam que, quanto mais uma sociedade dependia de recursos alimentares vegetarianos, mais efetiva era a importância do papel econômico das mulheres. Para ambas, a carne representa um poder simbólico. A caça sempre foi um problema comum entre os homens, tanto que ainda hoje é considerado um hobby para os homens endinheirados que pagam fortunas para os safáris de caça aos elefantes e outras espécies em vias de extinção. Por outro lado, a caça, também, representa a dominação dos homens sobre as mulheres.

Naama Harel argumenta que os homens falam, representam e tratam as mulheres como caça e assim realizam metaforicamente a dominação. A própria terminologia representa uma ordem hierarquizada, ordenada sequencialmente assim: homens, mulheres e, por último, animais. Nessa ordem, os homens assumem um duplo significado, como os membros da espécie humana e como os membros do gênero masculino. Enquanto categoria, ela é vista como oposta aos membros da espécie feminina e aos animais, colocando-os em aproximação. Assim: “(1) homens ≠ mulheres, (2) homens ≠ animais, (3) mulheres = animais”.

Ela nos indica algumas metáforas, o sexo não raras vezes é denominado de prazeres da carne, luxúrias da carne, fome sexual. Quando um homem procura uma mulher para uma noite, ele é visto como o caçador, sua arma é o falo, símbolo da masculinidade e da virilidade. Se a mulher se dá facilmente, então ela é a presa fácil. Por isso, muitos eventos em que o corpo feminino é destaque são nomeados de mercado de carnes, açougue. A antropornografia indica que mulheres e animais estão na base da economia que é movida pela indústria do sexo, pelo mercado de carnes e de corpos.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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MANIFESTO FEMINISTA PELA VIDA

MANIFESTO FEMINISTA PELA VIDA

Em fevereiro de 2022, quando a guerra entre a Rússia e a Ucrânia começou, alguns grupos e feministas independentes fizeram circular a arte de Laura Árbol que retrata a imagem de um corpo de mulher cis, associada à origem da vida, e de um homem cis, associada à origem da guerra. A imagem nos remete aos famosos quadros A origem do mundo (1866)de Gustave Courbet e A origem da guerra (1989), da artista francesa Orlan. Ela expõe o desconforto das artistas contemporâneas que adentram o espaço do museu como objeto do olhar masculino e, vai além, utiliza o pênis como metáfora de arma de guerra. A imagem não é mera reprodução binária, mas faz alusão à materialidade dos corpos cis e suas conexões com a vida e a morte.

Quando a imagem circulou nas redes sociais, vimos uma avalanche de ataques antifeministas. Após um ano de guerra na Europa, é importante retomarmos a análise para pensar como estamos lidando com a escalada de violência e qual a relação entre a liberação de armas e o avanço do feminicídio, do estupro e do extermínio em massa.

Começo perguntando: por que defendermos as nossas vaginas e sermos opostas às guerras causa tanto desconforto? Qual a relação dos ataques virtuais ao conteúdo da imagem que circulou com relação à nova onda antifeminista? Devemos aceitar caladas, enquanto nossos corpos são açoitados? Mulheres cis e trans são mortas e violadas todos os dias no Brasil, no entanto ainda é mais chocante dizer que a vagina está associada à vida do que olhar os altos índices de feminicídio e de transfobia. É importante ressaltar que algumas mulheres trans, por opção ou falta de opção, não fazem a cirurgia de redesignação, mas, já são percebidas e vivenciam a experiência de ser mulher em um mundo misógino. Neste caso, podem ainda serem acusadas de recusa em adotar hábitos consolidados pela masculinidade tóxica.

Querem nos fazer acreditar que a continuidade da exploração da vagina e do útero como depósito de sêmen para gerar o filho do Homem cis não é um problema de gênero (homem em maiúsculo serve para identificar o homem como humanidade). O Homem da Revolução Francesa, que, via razão, pretendeu substituir Deus. Ele é o filho daqueles que nos queimaram em piras, enquanto gritavam histéricos: queimem no inferno bruxas! Indico o livro Ronda das Feiticeiras, da Norma Telles, para o estudo sobre um dos maiores extermínios de mulheres na história.

Para Carole Pateman o contrato sexual moderno garantiu ao patriarca a posse dos corpos das mulheres e das suas filha/o/s. Foi um negócio lucrativo para o patricapitalismo moderno a criação da família burguesa tradicional, garantindo ao patriarca uma mulher para copular, para trabalhar gratuitamente para ele dentro do lar sagrado e, ainda, gerar a/o/s filha/o/s “dele” para ele usar a seu serviço.

Enquanto a mãe ficava circunscrita ao reduto do lar, as prostitutas eram usadas por ele, que pagava por mais sexo. As solteironas eram encarceradas para todo o sempre nos hospitais psiquiátricos com aval da indústria médica e farmacoquímica, então nascente. Seus corpos serviram como cobaias para o patriarca brincar de cientista e inventar modos de gerar mais lucro, fundamentados na teoria de Hipócrates, que pensava existir uma suposta perturbação no útero que criaria um distúrbio cerebral.

No final do século XIX e início do XX, foi inventada a histeria, que seria um suposto distúrbio mental das mulheres causado pelo útero. O médico francês Jean-Martin Charcot transformou o Hospital Psiquiátrico Pitié-Salpêtrière no seu laboratório, as cobaias eram as mulheres que não obedeciam ao patriarca. Elas eram transformadas em histéricas, e, portanto, justificava o sequestro, a tortura, a prisão perpétua, os assassinatos em massa ou a medicalização forçada, para servir ao nascente mercado da indústria farmacoquímica.

Como as solteironas, as lésbicas foram catalogadas como doentes e também foram usadas como cobaias da ciência moderna. As lésbicas foram classificadas pelos juristas como criminosas. Afinal, é uma “aberração da natureza” não se curvar diante do altar do Santo Pênis. Por isso, o patriarca criou o estupro corretivo, já que o problema era que as lesbianas nunca foram “comidas” por um macho de verdade. O destino das lésbicas seria o estupro seguido do encarceramento na cadeia ou no hospício.

As mulheres trans ainda são acusadas de serem foragidas da masculinidade, da virilidade e, portanto, da supremacia masculinista, por conta disso são relegadas a toda sorte de discriminação, violência e perseguição. A transfobia é um desafio a ser enfrentado no Brasil, um dos países que mais mata e violenta as pessoas transexuais e travestis.

A imagem é bem clara, mas já que o desenho não foi compreendido pelas pessoas que defendem o Santo Pênis, pergunto: o pênis, simbolicamente, não é uma arma de guerra? Não é com ele que os homens estupram crianças, mulheres, pessoas não humanas (termo criado por Barbara Smuts)? Explico um pouco mais: o pênis como arma de guerra é uma metáfora que indica os usos para todos os tipos de violação aos corpos vulneráveis. Falo aqui do pênis e não do dildo ou dos similares criados pela indústria do sexo ou pela indústria médica.

A exploração patricapitalista da indústria médica e farmacoquímica das barrigas de aluguel, que rendem bilhões é outra criação do patriarca para serem os donos das crianças que foram geradas nos úteros. Teriam úteros e vaginas as pessoas que lucram nestes vários mercados de carnes e de corpos? No livro da escritora mexicana Patrícia Karina Vergara Sánchez Siwapajti (Medicina de mulher): Memória e teoria de mulheres, lançado no Brasil pela Editora Luas, a autora aborda a questão. A medicina viu nos corpos com útero mais um mercado fértil e transformou o processo de gestação em um negócio lucrativo, que rende milhões aos doutores e empresários.

O serviço doméstico não remunerado ainda é uma realidade para a massa das mulheres com útero e vagina. A diferença de salários entre homens e mulheres ainda é discrepante, muito embora a luta feminista anarquista, libertária, marxista, sufragista tenha começado a denunciar a desigualdade entre homens e mulheres no século XIX. Explico: não se usava o termo gênero naquele momento histórico.

Os postos de decisão, os cargos políticos, no judiciário e nas várias instituições ainda são ocupados majoritariamente por homens cis. Esses corpos cis com pênis, ao serem quem comanda a política, a polícia e o judiciário, aceitam com naturalidade que os corpos matáveis sejam, majoritariamente, os das mulheres – cis, trans, negras e indígenas no Brasil.

Os ataques aéreos, realizados pelas pessoas do agronegócio, que jogam veneno nas aldeias indígenas, nos povos quilombolas e ribeirinhos, são realizados por mulheres pilotando os aviões? Quem realiza às queimadas criminosas, o desmatamento das florestas brasileiras? De quem são as megafazendas que estão invadindo outras terras para ampliar seu capital? Muitas mortes estão sendo invisibilizadas nesse discurso antifeminista de luta pelo pênis. Não foi o Francis Bacon quem disse que a natureza e as mulheres deveriam ser dominadas, exploradas e torturadas? A modernidade foi construída reproduzindo o discurso de que as mulheres, as pessoas não europeias, não brancas e a natureza são selvagens que seriam controladas à luz da racionalidade do homem cis, branco, da elite.

Após a Revolução Francesa, em 1789, a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão era uma forma de garantir direitos aos homens brancos europeus heterossexuais. Pessoas não brancas e que não nasciam com pênis não eram consideradas cidadãs dignas de terem direitos. Foi por entender que as mulheres deveriam ter direitos e serem consideradas cidadãs que Marie Gouze escreveu A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. A ousadia custou-lhe a vida, ela foi guilhotinada na praça da Concórdia, em Paris, no dia 3 de novembro de 1793. Mesmo usando o pseudônimo de Olympe de Gouges, ela não escapou ao destino de nascer em um corpo matável.

A palavra feminicídio foi uma longa batalha feminista para ser dicionarizada no mundo à fora e, mais ainda, no Brasil. Para ser contemplada pela legislação e o assassinato ser classificado como feminicídio, ainda estamos na luta, pois não basta a lei estar escrita se não for efetivada. Os números apontam o aumento de mortes, mas poucas vezes o crime é classificado como feminicídio.

Quando uma mulher cis estuprada é humilhada pelos doutores diante do tribunal e os criminosos são blindados por pertencerem a famílias de classe privilegiada e de pele branca e são transformados em vítimas, todas as pessoas que nasceram com útero e vagina são reafirmadas como corpos estupráveis. Muitos ainda insistem em dizer que homem cis equivale à humanidade. E assim, a voz das mulheres segue silenciada.

Quem criou a teoria queer foi uma feminista norte-americana. Teresa de Lauretis, nos anos 1990, ampliou o campo da Epistemologia Feminista para explicar o estranhamento e o impacto causado pela multiplicação de gênero favorecida pelos movimentos sociais na segunda década do século XX. Feministas como Oyèrónke Oyěwùmí e María Lugones escrevem que o binarismo de gênero é uma construção moderna criada para justificar o controle sobre os corpos das mulheres. Em algumas comunidades no continente Africano e em algumas tribos indígenas no continente Americano, havia outros gêneros para além daqueles criados pelo homem heterossexual, branco e europeu antes das invasões dos colonizadores. Eles aqui vieram com a missão de roubar terras, dizimar povos, e, como consequência, estupravam e escravizaram as mulheres cis não europeias que aqui viviam e as que foram sequestradas da África.

Estamos com a possibilidade de vivenciar a Terceira Guerra Mundial. As experiências do fascismo, do nazismo, do franquismo, das ditaduras impostas na América Latina não foram suficientes. Os donos do poder, os magnatas da indústria bélica querem mais sangue para aumentar o lucro. Mas, o perigo somos nós, as feministas. Novamente somos o alvo e os nossos discursos continuam sendo distorcidos para justificar o antifeminismo, a misoginia e a continuidade da exploração de nossos corpos.

Em tempos de guerra, mirar na cabeça das mulheres, que se orgulham e aprenderam a amar seus corpos, é mais uma violência. Sou uma feminista pacifista ecovegana, me tornei vegana por empatia às outras espécies, sou contra todo o tipo de violência, seja ela física, psicológica, moral, patrimonial, sexual. Portanto, nesta pequena reflexão sobre a imagem, quero dizer que a vagina e o útero nos permitiram estarmos aqui, independente do gênero, etnia ou classe social.

O pênis, no patricapitalismo, é usado como arma de guerra, tendo em vista que a indústria bélica e farmacoquímica foi uma invenção moderna, mesma época em que criaram o binarismo de gênero, hierarquizaram os gêneros, em masculino racional versus feminino sentimental. Todos os outros gêneros foram classificados como aberração. Esta foi uma invenção da ciência feita pelo homem heretossexual, branco, burguês e europeu. A epistemologia feminista se empenhou, desde o fim do século XIX e início do XX, na elaboração de uma crítica ao modelo científico moderno, comprometido com o capitalismo e com o industrialismo. As feministas criaram os Estudos de Gênero e a Teoria Queer para explicar que somos uma multidão complexa e não binária, a questão política deve ser sempre pensada na interseccionalidade de gênero, etnia-raça, classe e espécie.

Não foram as mulheres cis e trans que inventaram a pólvora, a bomba atômica, armas químicas, o canhão, os caças de guerra! Não foram mulheres que jogaram duas bombas atômicas no Japão! Não são as mulheres que lideram o ranking de estupros de crianças, de mulheres, de pessoas não humanas! Não são as mulheres que lideram o ranking do extermínio de mulheres (feminicídio), o extermínio de pessoas não brancas (racismo), o extermínio de pessoas LGBTI+!

Já tivemos duas Guerras Mundiais, duas pandemias, estamos vivendo o problema climático e vendo ele se agravar sobre os nossos lombos marcados pelo chicote do opressor. Mas, como dizia Paulo Freire, “o sonho do oprimido é virar opressor”. No altar do Santo Pênis, as armas de destruição em massa estão novamente nas telinhas, nas telonas e nas redes sociais para divertir as mentes sádicas e doutrinadas para se contentarem em confundir conhecimento com informação.

Enquanto isso, a indústria bélica e a indústria farmacoquímica avançam sem parar, dizimando as florestas na África, na América Latina, na Ásia, promovendo guerras e extermínios em massa para que a elite empresarial gere mais lucro para os poucos bilionários. Eles sobrevoam alegremente em suas naves, almejando a invasão de outros planetas para esgotarem outras fontes naturais e transformarem em royalties. Eles se escondem, covardemente, nas costas de sua guarda pretoriana contemporânea vestida de robocop-militar ou se acovardam escondidos em seus bunkers particulares.

Sou pacifista e não me curvo ao altar bélico do Santo Pênis! Como ecofeminista, luto para a cura planetária, independente da etnia-raça, classe, gênero ou espécie, sou contra o extermínio de pessoas promovido pelos homens brancos, cis, privilegiados. Pachamama está em chamas, queimando, fruto da ganancia promovida pelo patricapitalismo. Deveríamos nos preocupar coletivamente e trabalhar pelas soluções e redução dos danos da “emergência climática”, termo adotado desde 2019, inspirado nas proposições de Greta Thunberg.

A imagem não foi criada para atacar ninguém, pelo contrário, expõe um dos problemas da binarização de gênero, que é a guerra, a venda de armas a serviço dos narcogovernos, das disputas de territórios promovidas, majoritariamente, pelos homens cis. Não sou defensora do patriotismo e nem abordo aqui qual dos lados está certo ou errado, minha pátria é o Universo, assim aprendi com Maria Lacerda de Moura e com o anarquismo pacifista. Como a Epistemologia Feminista colaborou para a luta LGBTI+, para a criação das Teorias de Gênero e Queer e para a crítica da invenção moderna da divisão social binarizada, mas isso não bastou, as mulheres seguem sendo o alvo, mesmo diante da ameaça de uma Terceira Guerra Mundial. Por tudo isso, decido que a partir de hoje a minha identidade de gênero é feminista.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Conexões entre especismo e masculinidade cis tóxica

Conexões entre especismo e masculinidade cis tóxica

“Um touro currado na cruz” – desenho de Einsenstein presente no livro A farra do boi – Do sacrifício do touro na antiguidade à farra do boi catarinense, Nise da Silveira (coord.).

A Farra do Boi é uma prática que consiste em soltar o animal em local aberto, fazendo com que ele corra atrás dos homens que participam desta ação. O boi é torturado e agredido violentamente até ficar exausto, na maioria das vezes morre durante a tortura. Em alguns casos, os homens envolvidos sofrem acidentes graves. No Brasil, a prática é criminalizada. Mesmo assim, no período da Quaresma, ela é realizada clandestinamente.

É importante ressaltar que a maioria esmagadora dos envolvidos nestes eventos clandestinos são homens cis. A Farra do Boi passou a ser muito combatida a partir da década de 1980, quando entidades de proteção aos animais e a sociedade em geral iniciaram a realização de campanhas de conscientização. Por meio da mídia, a polêmica teve repercussão tanto nacional quanto internacional.

Em 2023, alguns grupos atuaram nas redes sociais acolhendo e encaminhando denúncias. O grupo do Instagram @brasilcontrafarra fez um comunicado público informando que todo ano em Santa Catarina os mesmos grupos e financiadores realizam a tortura no mesmo local, e, diante dos olhos indignados da população que é contra, denúncias são feitas, mas nada acontece. Deve haver muito dinheiro envolvido para que o poder público se silencie diante de tamanha brutalidade. Não por acaso, sabemos que o estado de Santa Catarina foi um dos que mais apoiou o neofascismo bolsonarista.

A ONG Anti-Defamation League (ADL) realizou um levantamento de dados em 2022 e concluiu que o Brasil é o país onde mais cresce o número de grupos de extrema direita, especialmente nos estados de Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Segundo o estudo realizado na Universidade de Campinas pela Dra. Adriana Dias, antropóloga, a maioria dos grupos atua em São Paulo. De acordo com os dados, havia no país mais de 530 grupos extremistas nos primeiros meses de 2022, demonstrando um avanço com relação a 2019 – quando foram identificados 334 grupos.

Mas, o que isso tem a ver com o especismo? Tudo! Existem muito estudos feministas que apontam a conexão das violências sexistas, racistas, classistas e especistas. Maria José Sales Padilha foi presidenta da Associação Amigos Defensores dos Animais e do Meio Ambiente (AADAMA), é formada em psicologia com Mestrado em Educação pela George State University (EUA). Ela estudou a relação da violência especista e sexista no livro Crueldade com animais x Violência doméstica contra mulheres: uma conexão real, publicado em 2011, em Recife, pela FASA.

Esse debate ganhou força internacional quando a UNESCO aprovou em 1978, em Paris, a Declaração Universal dos Direitos do Animal. Esse fato alavancou as discussões sobre o especismo, que significa uma discriminação baseada em espécies, envolve atribuir a animais sencientes diferentes valores e direitos baseados na sua espécie. De modo similar ao sexismo (discriminação baseada no gênero), a discriminação especista pressupõe que os interesses de um indivíduo são menos importantes pelo mero feito de se pertencer a uma determinada espécie. O livro é resultado de uma pesquisa realizada em Pernambuco, em 2010, que examinou as conexões entre a crueldade praticada contra animais e a violência doméstica contra as mulheres. O método de pesquisa incluiu a elaboração de um questionário que foi aplicado e dividido entre as Delegacias da Mulher de Jaboatão dos Guararapes e de Recife. Tais questionários continham nove perguntas sobre a agressão, incluiu a questão se a vítima possuía animais em casa e se houve agressões e quais os tipos de violência contra os animais.

Os percentuais mostraram que a maior parte das mulheres vítimas tem idade superior aos trinta anos e um nível de escolaridade razoável, o que indica que, nesta idade e com certo estudo, as mulheres já têm mais consciência de seus direitos. A escolaridade do agressor, assim como a da vítima, nos mostra que não importa o grau de educação escolar, que todas são passíveis de violência. Diz a autora: “[…] as mulheres estão mais conscientes de seus direitos e também, encorajadas pela Lei Maria da Penha, registram a violência cometida por seus agressores” (p. 42).

Já os números encontrados com relação à violência contra os animais parecem aumentar nas últimas décadas no Brasil, e os números apontam que os agressores, em sua maioria, são homens cis. Diz ela: “Dentre os diversos tipos de violência praticados contra os animais de companhia, principalmente contra cães no contexto familiar, a violência física é a que predomina e tem como principal agressor o mesmo homem que agride a mulher” (p. 48).

Em suas considerações finais, a autora nos diz que, em geral, as pessoas não enxergam que as agressões contra animais estão ligadas com as agressões contra humanos. Para Padilha, é necessária uma conscientização, com mais pesquisas e trabalhos na área educacional. O livro é claro e direto, apresenta os dados em gráficos e reforça a necessidade de estudos sobre o tema. Existe uma íntima ligação entre o paradigma humanista e a cultura patriarcal. Essa ligação manifesta-se na obsessão pela dominação e controle tanto sobre os corpos das mulheres quanto de outras espécies.

A libertação das outras espécies já era uma luta anarquista desde o século XIX e, hoje, com o veganismo e o antiespecismo está mais forte e se interseccionalizando às questões libertárias, com os debates sobre o sexismo, o classismo, o racismo, o etarismo, o especismo, dentre outros. Os séculos XX e XXI estão marcados pela luta vegana, ecofeminista e ecológica. Muitas e diferentes vozes se erguem pelas pessoas não humanas. Uma delas é a escritora polonesa Olga Tokarczuk, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura ao publicar o romance Sobre os ossos dos mortos (2009). Na obra ela escreveu: “Tristeza, senti uma grande tristeza, e um luto interminável por cada animal morto. Termina um luto e logo começa outro, então estou em constante luto. É meu estado natural. Me ajoelhei sobre a neve ensanguentada e acariciei a pelagem áspera, fria e rija do javali” (p. 98).

O romance gira em torno da caça de animais silvestres e nos surpreende pelo refinamento da linguagem e pela presença de um tom de mistério que nos deixa com vontade de lutar pelos animais ao lado da protagonista Janina Dusheiko. A caça predatória está, juntamente com a questão do uso de pessoas não humanas nos testes científicos, na produção de morte em escala industrializada para fabricação de carne, no comércio e na venda de “animais de estimação” dentre outros usos dos corpos, no centro de um debate contemporâneo sobre as nossas relações com a vida planetária, com as outras espécies e com o meio no qual vivemos. Os temas ampliaram desde os textos das feministas dos séculos XIX e XX que escreveram sobre as pessoas não humanas. Foi no contexto em que Maria Lacerda de Moura escreveu sobre a vivissecção e o vegetarianismo no livro Amai… e não vos multipliqueis. Sobre a alimentação ela escreveu: “No dia em que a mulher se dispuser a libertar-se do jugo do estômago civilizado, passar a comer frutas e legumes, a apagar o fogo doméstico que é o ‘fogo eterno’ do inferno feminino na sua escravidão ao estômago do homem – nesse dia ela recomeçará a sua auto-educação física e mental e iniciará a sua verdadeira libertação humana” (p. 233).

Outro livro que quero destacar é A política sexual da carne: a relação entre carnivorismo e a dominância masculina, da feminista vegana Carol Adams. Neste livro ela identifica mulheres vegetarianas ligadas às reivindicações feministas. Segundo ela, no século XIX muitas mulheres tornaram-se vegetarianas e escreveram sobre a necessária libertação delas mesmas e das outras espécies. Mulheres como: Agnes Ryan (1878-1954, EUA); Annie Wood Besant (1847, Inglaterra – 1933, Índia); Clara Barton (1821-1912, EUA); Elizabeth Cady Stanton (1815-1902 – EUA); Lou Andreas-Salomé (1861, Rússia – 1937, Alemanha) e Matilda Joslyn Gage (1826-1898, EUA) foram precursoras da alimentação sem carne e da luta contra o uso de animais na ciência e na indústria, sobretudo na luta antivivisseccionista.

Nise da Silveira (2012), nascida em 1905, foi uma das pioneiras na discussão da antipsiquiatria e no debate sobre os laços afetivos entre pessoas e animais, por ela nomeados animais não humanos. Ela via na relação com os gatos uma possibilidade de diálogo com o inconsciente, e sobre os animais escreveu: Gatos, a emoção de lidar (1998) e A farra do boi (1989), ambos esgotados. Neste livro, ela escreve: “Vamos retroceder dos altos níveis do processo de individuação aos baixos degraus onde ainda ocorre a festa-sacrifício do boi, no litoral de Santa Catarina.

Esta ‘festa’, ou seja, ‘a Farra do Boi”, por incrível que pareça, tem defensores.

Argumentam que é uma tradição cultural.

Tradição oriunda de trogloditas, de bárbaros…” (p. 65).

A barbárie da masculinidade cis tóxica ainda é pouco questionada quando se trata da violência especista, mas cumpre lembrar que, na maioria dos casos de extrema violência, os protagonistas são homens cis. O recente extermínio de crianças na escola de Blumenau-SC chamou a atenção pelo fato de o assassino já ter cometido crime contra os animais. Não é coincidência! O machismo mata!

A libertação humana não será possível sem a libertação das outras espécies. Como dizia Maria Lacerda de Moura, devemos colocar fim no tempo do antropocentrismo (macho-cis-branco) e construirmos o biocentrismo, em que todas as formas de vida importem.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Magó e o feminicídio no Brasil

Magó e o feminicídio no Brasil

No dia 26 de janeiro de 2023, aconteceu o ato Justiça por Magó! 3 anos sem Magó!,  na praça do Teatro Reviver Magó, na cidade de Maringá/PR. O evento público reuniu familiares de Magó, sua mãe Daisa Poltroniere e sua a irmã Ana Clara Poltronieri Borges, ativistas, feministas, artistas, autoridades e a comunidade local. Aconteceram apresentações do Baque Mulher Maringá, de Dança circular, Hip-hop, Rap e Capoeira feminina.

Maria Glória Poltronieri Borges, conhecida como Magó, era bailarina, artista, pandeirista, capoeirista, vegana, feminista e tantas outras facetas. Ela nasceu dia 30 de maio de 1994 e teve a vida interrompida por um brutal assassinato. No dia 26 de janeiro de 2020, ela estava em uma propriedade rural no município de Mandaguari, próximo a Maringá. Ela planejava realizar um recolhimento espiritual no local onde havia uma cachoeira. Foi neste lugar que ela foi vítima de feminicídio. O assassino e estuprador foi encontrado e preso. A vida de Magó foi arrancada pouco antes de ela completar 26 anos. Seu corpo foi cremado e sua morte mobilizou manifestações em várias cidades brasileiras.

A parceria de trabalho com a irmã Ana Clara Poltronieri Borges era bem conhecida. Ambas com formação em artes e dança circulavam o Brasil e faziam da vida um espetáculo de movimento, força e fé. Em um depoimento de Ana Clara (publicado no site:  https://mariagloria.com.br/), podemos ver a potência da aliança entre as duas:

 

“Magó é indefinível porque ela sempre foi muitas coisas. (…) Uma coisa que ela levava a sério era a brincadeira. A gente chamava isso de PANAKISSE, com K. A brincadeira, o jogo, era levado a sério por nós. Onde tem brincadeira tem sorriso.

Atenta e observadora, via dança em todo e qualquer movimento do corpo humano. Amava as acrobacias circenses e era muito boa nisso. Adorava plantar bananeira em todo e qualquer lugar do globo terrestre e no mundo paralelo dos sonhos. Dançava com tudo o que tinha dentro dela.

Pedalava sua bike como se estivesse indo pra lua encontrar nossas ancestrais.

Cantava como uma deusa, uma voz doce, forte, guerreira.

Lutava aikido. Uma mestra maga zen. Praticava yoga e jogava muita capoeira. Amava esse jogo-dança que a capoeira levava para ela. Amava o samba de roda, porque colocava toda a sua potência ali: dança, jogo, sorriso, canto, fé e amor, sempre.

Era uma passarinha livre. Uma anciã guerreira. Corajosa. Uma ótima ouvinte e conselheira. Sabia, no momento certo, fazer com que eu conseguisse enxergar minha própria força. Sabia, no momento certo instigar a vontade de continuar remando o barco da vida.

Um presente. Uma doce mulher. Uma fada”.

 

Magó era muito querida e deixou saudades. Virou um símbolo de luta contra o feminicídio. O feminicídio é o assassinato praticado contra as mulheres em decorrência do gênero, trata-se de crime de misoginia, menosprezo pela condição das mulheres e, em muitos casos, envolve a violência sexual.

A lei 13.104/15, mais conhecida como Lei do Feminicídio, alterou o Código Penal brasileiro, tipificando o crime contra as mulheres em função de gênero. Foram anos de muita luta para conseguir a aprovação da lei. O Brasil é marcado pelo coronelismo, pelo machismo e racismo. Por muito tempo a ideia da “legítima defesa da honra” garantia impunidade aos assassinos que matavam suas esposas, irmãs, filhas, ex-mulheres, namoradas caso se sentissem traídos. Os homens, com isso, justificavam o injustificável, que é o assassinato. Tal lei foi possível vigorar por tanto tempo graças ao entendimento de que as mulheres não são sujeitas de direito, suas vidas eram atreladas à dos homens. Pais, namorados e maridos consideravam os corpos das mulheres sua propriedade. O corpo tornado objeto entra para o rol dos descartáveis.

Magó representa a juventude no mercado de carnes e de corpos de um país onde ainda se encontram fortes traços coronelistas. Com a ascensão do bolsonarismo e do neofascismo, o problema agravou. A Agência Patrícia Galvão apresenta alguns dados importantes: desde 2018, as taxas de feminicídio estão aumentando; 61% das vítimas são mulheres negras; a maioria das vítimas é jovem e menor de idade; 88,8% dos casos de violência são cometidos pelo companheiro ou ex-companheiro; 70,7% das vítimas tinham, no máximo, ensino fundamental. As crianças e as jovens são as maiores vítimas de estupro seguido de tortura e assassinato.

É claro que, diante de números absurdos, que colocam o Brasil entre os países mais violentos com as mulheres, as pautas feministas avançam a cada ano. Em várias frentes de trabalho que englobam a necessidade de mais mulheres ocupando os cargos políticos, cargos de decisão e com os avanços das coletividades, ONGS´s e associações de mulheres, houve, em contrapartida, o avanço nas demandas por leis mais rigorosas.

No 8M/2023 uma das discussões que está ganhando força é a reivindicação pela criminalização da misoginia. As piadas sexistas sobre mulheres, a defesa de sua inferioridade, de sua sexualidade, os discursos de ódio e desprezo a nós, mulheres, reforçam a misoginia e fortalecem a cultura do estupro. Esse pedido de Projeto de Lei que criminaliza a misoginia, juntamente com o racismo, a homofobia e a transfobia, esteve circulando e ganhou fôlego nas redes sociais nos últimos. A ideia é levar a discussão para o Senado buscando a criação de leis mais rigorosas. O projeto foi protocolado, dia 6 de março, na Câmara dos Deputados.

A vida pede passagem, os corpos das mulheres estão nas pautas pela libertação, pelo direito de existir, pelo direito de andar na rua, pelo direito de amar livremente. Direitos que são considerados como naturais aos homens e que ainda estão nas pautas das mulheres.

Magó, presente!

Criminalização da misoginia – Apoie esta ideia!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Glória! O adeus de uma mulher livre

Glória! O adeus de uma mulher livre

Dois de fevereiro é um dia de comemorações no Brasil. Dia de Iemanjá, para as religiões de matriz afro-brasileiras, e Dia de Nossa Senhora dos Navegantes, para os cristãos. O sincretismo religioso faz com que a festa ganhe grande repercussão. De ponta a ponta do país, fieis se reúnem em procissão para levar oferendas e imagens da orixá ou da santa para o mar. E foi embalada nas águas salgadas que as festividades, em 2023, foram um misto de comemoração e de despedida.

Glória Maria Matta da Silva nasceu no Rio de Janeiro no dia 15 de agosto de 1949 e faleceu no dia 2 de fevereiro de 2023 vitimada pelo câncer. O reconhecimento público de sua magnitude fez das festividades religiosas também uma grande despedida. Envolta nas águas salgadas da mãe dos orixás, Glória recebeu homenagens nas emissoras de televisão, nas redes sociais e na grande imprensa nacional e internacional.

A Ministra da Cultura, Margareth Menezes, postou em seu Instagram:

“No dia da Rainha das Águas nossa querida Glória Maria nos deixou.
As águas rolaram nos olhos e corações de milhões de brasileiros que certamente amavam e admiravam essa que foi uma mulher negra pioneira em muitas conquistas. A maior da sua geração!

Uma mulher incrivelmente livre, uma profissional à frente do seu tempo. Inspiração para tantas mulheres iguais a ela e para muitos jornalistas, homens e mulheres, de várias gerações.

Ela deixa um legado imenso, inaugurou um estilo próprio e conquistou com muito talento e trabalho um lugar de destaque no jornalismo nacional e internacional.

Aplausos, aplausos, aplausos!

Muitas flores para nossa querida, grande, imensa e maravilhosa Glória Maria.

Adeus e obrigada!”

Glória foi jornalista, repórter e apresentadora, durante muito tempo, na TV Globo. Uma questão importante para se destacar foi o seu protagonismo como mulher negra. Foi a primeira repórter a realizar matérias ao vivo e a cores na televisão. Graduou-se em jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) nos anos 1960, deu início aos trabalhos na emissora de TV, onde fez uma carreira ao longo de 50 anos.

Seu protagonismo se deve, em parte, a uma personalidade forte que não se dobrou às injunções da mesmice, disse ela:

“Eu não gosto de fazer nada igual, então na hora que começa a ficar chato, eu sei lá… eu acho um caminho novo”

(Observação: os depoimentos da jornalista foram selecionados da matéria dedicada a ela no Jornal Nacional do dia 02/02/2023).

A personalidade mutante de Glória fez dela um ícone do jornalismo brasileiro. Ela foi uma mulher culta, que navegou pelas redes sociais, pelas diferentes mídias, foi capa de revistas, viajou mundo a fora, adentrou palácios e palafitas, locais luxuosos e humildes. Entrevistou muita gente famosa e muita gente do povo. Creio que essa tenha sido a sua marca, o gosto pela vida, pela mudança, pelo movimento e pela circulação em diferentes espaços.

Como mulher negra enfrentou esse duplo preconceito: o sexismo e o racismo, sem nunca esquecer a lição deixada pela sua avó: “A minha avó me ensinou uma coisa, a mais importante, desde pequenina: ‘Você tem que ser livre. Porque a nossa história é uma história de escravidão’. A minha vida é ser livre. Não há nada, nem casamento, nem trabalho… Só filho, talvez, agora, é que tira um pouco minha liberdade. Mas o resto, não”.

Foi assim que ela preferiu não publicizar seus relacionamentos afetivos, negando-se a aceitar a condição da obrigatoriedade do casamento e da união nos moldes normativos. Adotou duas meninas baianas, Laura Matta da Silva e Maria Matta da Silva. Daí sua conhecida frase: “Solteira, sim. Sozinha, nunca!” Ela preferiu seguir os conselhos da avó que dizia da importância de buscar a liberdade na alma.

Ser uma mulher de alma livre em um mundo onde, ainda, predomina o casamento indissolúvel e as juras de amor eterno pode ser um ato de coragem, sobretudo para as mulheres, que, como ela, estiveram diante das câmeras durante grande parte de sua vida. Como mulher negra ela foi um exemplo de coragem e determinação. Uma vez, ao ser barrada em um hotel de luxo, ela acionou a Lei Afonso Arinos. Chamou a polícia após de ter sido impedida de entrar pela porta da frente e afirmou: “Foi quando percebi que tudo o que eu tinha tentado aprender na minha vida deu resultado. Não me fiz de vítima, não me fiz de algoz. Simplesmente soube usar a lei”.

Noutra ocasião, em plena ditadura militar, afrontou o general Figueiredo afirmando: “O senhor me desculpa, mas o senhor precisa aprender um pouco mais da gramática portuguesa porque isso que você falou não existe mais na gramática”. Como consequência, o ditador mandou que a retirassem do local. Vale lembrar que, em momentos de política autoritária no Brasil, a liberdade de imprensa e de manifestação social é reprimida. Glória não se dobrou à repressão, nem ao sexismo e nem racismo. Portanto, sua presença no cenário jornalístico teve a marca da coragem e da resiliência.

Ela partiu, mas as suas marcas ficam entre nós. Como diria bell hooks em seu livro Tudo sobre o amor:

“Ao aprender a amar, aprendemos a aceitar a mudança. Sem mudança, não podemos crescer. Nosso desejo de crescer no espírito e na verdade é como nos posicionamos diante da vida e da morte, prontos para escolher a vida”.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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