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UMA LÉSBICA NÃO É UMA MULHER

UMA LÉSBICA NÃO É UMA MULHER

A Coluna Pachamama abre os trabalhos em 2023 com uma mulheragem à escritora Monique Wittig. Veja bem, utilizamos mulheragem para marcar uma diferença com relação ao termo “homenagem”, que pode ser desmembrado em “homem-nagem” e reafirma o tributo aos homens. Neste caso, usando as lentes lesbofeministas, embarcamos em corrente de pensamento que recria as palavras para escapar dos meandros da adulação falocrática.

Monique Wittig nasceu em 1935 e foi uma escritora, poetiza, filósofa, militante lésbica-feminista, enfim uma personalidade de forte atuação em muitas frentes. Ela nasceu em Dannemarie, na França, estudou na Universidade de Paris, trabalhou na Biblioteca Nacional de Paris e em uma editora. Traduziu Herbert Marcuse para o francês, foi colaboradora, juntamente com Simone de Beauvoir e Christine Delphy, da revista Questions Feministes. Dentre seus escritos mais conhecidos, destaco: L’Opoponax (novela, 1964), Les Guérrillères (novela, 1969), Le Corps Lesbien (poesia, 1973), Le Voyage sans fin (teatro), La Pensée Straight (ensaio, 1978) e One is not Born a Woman (1980).

Transgressora e ousada, fez uma crítica aos escritos de sua conterrânea Simone de Beauvoir, ao denunciar o mito “da mulher”, da maternidade e da heterossexualidade como regime político ao qual, entende ela, as lesbianas recusam submeter-se, por isso, as lésbicas, para ela, não são mulheres.

Ser mulher é estar inserida no domínio heterossexista, portanto a lésbica não é uma mulher, já que não está inserida na relação heterossexual. Além disso, o discurso opressor é o discurso da heterossexualidade, e as lesbianas escapam da programação inicial, não se submetendo à hierarquização heterossexista. Logo, o lesbianismo – tema central em seus estudos, teorias e escritos – é, para Wittig, algo que se situa além das categorias homem e mulher; é uma experiência revolucionária.

Nos Estados Unidos, desde 1980, ela atuou como educadora em algumas universidades. Participou do Mouvement de Liberation des Femmes (MLF), do primeiro grupo lesbiano em Paris, do Les Gouines Rouges, em 1972, e, em 1974 propôs a criação do Front Lesbien.

O livro Le corps lesbien gravita entre o universo das Amazonas, das assembleias de mulheres, das feiticeiras e marca a presença do desejo sexual e do gozo entre mulheres. Sem dúvida, esse livro foi paradigmático, marcou os estudos lesbianos com a afirmação de um corpo que não se dobra facilmente ao sistema de pensamento hétero. O corpo lesbiano reivindica uma identidade própria, e, ao poetizar a corporeidade lesbiana, Wittig fornece uma positividade na relação com o prazer sexual e com a materialidade da sua experiência no mundo, mas ela não se limita à reprodução do real. A autora cria a lesbiana de forma afirmativa, propositiva e positiva. Portanto, as lésbicas não são mulheres para a autora, pois não se dobram as injunções do “pensamento hétero”.

O Pensamento hétero foi um texto elaborado e apresentado pela autora durante a Convenção da Associação de Linguagem Moderna, realizada em 1978, em Nova Iorque, e publicado em seu livro The Straight Mind: and other essays, em 1992. No texto, ela defende o lesbianismo como uma categoria política e a heterossexualidade como um sistema social que se baseia na opressão das mulheres pelos homens, produzindo a doutrina da diferença entre os sexos como justificativa para essa opressão. É importante ressaltar que ela usa o termo “diferença de sexos” naquele contexto em que a categoria de gênero ainda não estava na pauta das discussões entre as feministas lesbianas. Na obra Le corps lesbien, os códigos masculinos são ignorados pela autora em sua narrativa e os desejos sexuais estão voltados exclusivamente ao prazer feminino. Ela escreve:

 

E/u sou aquela que guarda o segredo do seu nome […].

Tão bela sua nuca suas bochechas seu olhar seus ombros seus seios seus

braços seu ventre seu sexo suas costas sua bunda suas coxas suas pernas

seus tornozelos seus pés (WITTIG, 1973, p. 146-147 tradução nossa).

 

O nome em “segredo” pode ser visto como um recurso poético que a autora utiliza ao abordar o encontro de olhares e de corpos, que em um barco naufragado flutuam entre tubarões sedentos por suas carnes expostas. Podemos desdobrar as linhas e ir de encontro aos corpos lesbianos vigiados, cercados e perseguidos pelo olhar heteronormativo, punitivo e corretivo. Sua crítica é mordaz, não deixa margem para dúvida: as lésbicas se encontram nas assembleias e escapam ao domínio heterossexista.

É possível inferir que a sua obra seja a primeira narrativa de positividade com relação ao prazer sexual lesbiano, tendo em vista que, desde os poemas de Safo ao romance de Radclyffe Hall, a tragédia e a morte como castigo pesavam sobre os corpos lesbianos. Desde as poéticas wittigianas, vemos a erupção das vozes lesbianas tanto na literatura quando nos escritos teóricos.

Vale lembrar que ela viveu com a cineasta Sande Zeig com quem produziu o filme The Girl. Trabalhou até o seu falecimento, em janeiro de 2003, nos Estados Unidos e em companhia de Zeig. Vinte anos após a sua morte ainda há um escasso trabalho de análise e de tradução de suas obras no Brasil. Nos Estados Unidos, seu trabalho foi publicamente reconhecido. Quem sabe seja um bom momento para recuperarmos o seu legado e avançar nas discussões diante de um acalorado debate sobre gênero e sexualidade.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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