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Monthly Archives: setembro 2023

Um novo universal?

Um novo universal?

A língua que você fala envenena a glote a língua o palato os lábios. Elas dizem: a língua que você fala é feita de palavras que a matam.

                                Monique Wittig, As guerrilheiras, 1969

 

Linguagem inclusiva é diferente de linguagem neutra. De acordo com a gramática, quando existe pelo menos um elemento masculino, o gênero predominante é o masculino. As pessoas que não se identificam como homem ou mulher buscam resolver esse impasse utilizando-se de símbolos “@” ou “x” no lugar dos marcadores de gênero. Porém, a alteração na grafia (uso do “x” ou “@”) dificulta a compreensão, e muitas pessoas com deficiência visual, que utilizam programas de leituras de texto, se veem prejudicadas, tendo em vista que os softwares não conseguem ler palavras escritas neste formato modificado. Escritoras feministas, como Monique Wittig, já apontavam em seus textos a mortificação das mulheres via linguagem, como lemos na citação inicial desta reflexão.

A editora francesa Des Femmes, fundada em 1973 por Antoinette Fouque, se dedica exclusivamente a publicar obras escritas por mulheres. Na página virtual da livraria, lemos: “écrire ne sera donc jamais neutre”. A ideia central é de que a escrita não é, e jamais será, neutra, pois ela reflete as experiências de quem escreve no mundo do qual participa.

Aqui vemos o imbróglio tomar grandes dimensões. A discussão sobre linguagem não sexista já estava consolidada desde meados dos anos 1960 com vistas à inclusão das mulheres na linguagem. A atual proposta de linguagem neutra, que seria mais adequadamente definida como linguagem não binária, propõe uma mudança gramatical. A linguagem não sexista, também conhecida como linguagem inclusiva, propõe uma comunicação sem excluir ou invisibilizar nenhum grupo social. A proposta da linguagem neutra ou não binária, busca a inclusão das pessoas não binárias, e sugere algumas alterações do idioma e do uso de novas grafias de palavras tais como: tod@s, todxs, todes.

O que é a linguagem sexista então? Um conjunto de vocábulos que, sendo primariamente do gênero masculino, simboliza ambos os gêneros em situação de comunicação. Mensagens estereotipadas e discriminatórias de ambos os gêneros com base em convenções preestabelecidas pela cultura e que nada têm a ver com condicionalismos biológicos intrínsecos aos seres humanos. Foi partindo desse entendimento que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) definiu, a partir de publicações e formas diversas de intervenção sobre o tema, algumas diretrizes para Redação sem discriminação. A linguagem sexista tem sido um objeto de estudo e intervenção tratado em diferentes níveis de governo, chegando ao âmbito das Nações Unidas através da 24ª reunião da Assembleia Geral da UNESCO, em 1978, que propôs o exame e a revisão dos registros escritos e dos discursos orais que apresentem formas de discriminação de linguagem com relação às mulheres.

 Mudanças significativas nas relações sociais e humanas começam com o uso das palavras adequadas e com mensagens não verbais que reafirmem a equidade entre os gêneros e valorizem a diversidade sociocultural, sexual e racial. Introduzir estes parâmetros nos materiais de educação é fundamental para forjar novas relações entre as pessoas.

Algumas recomendações para evitar sexismo na elaboração de materiais de educação são:

– Eliminar da linguagem todas as expressões de conteúdo desqualificador ou discriminatório, que tenham como mensagem a inferioridade das mulheres, sua ausência na vida pública e a sua definição e identidade em função do homem. Dessa forma, torna-se injustificável manter o jargão “história do homem”, “o homem moderno”, tão comuns nos livros didáticos, especialmente aqueles dedicados à história natural.  Há palavras e expressões mais interessantes como “humanidade”, “espécie humana”, “homens, mulheres cis, trans e pessoas não binárias”, que substituem esse vício com propriedade.

– Fomentar nos textos e nas ilustrações imagens de equidade, cooperação e associação entre as pessoas, as crianças e jovens de raças, etnias, idades, religiões, posições sociais diferenciadas. Eliminar aquelas que contenham conteúdos estereotipados, desqualificadores ou discriminatórios.

– Mostrar situações em que o poder e a liderança estejam distribuídos por personagens de ambos os gêneros, em que os diferentes gêneros sintam-se representados nas atitudes positivas e propositivas.

As propostas para uso de uma linguagem não sexista já são comuns em várias línguas, tais como francês, inglês, alemão e espanhol. Na América Latina, os países, em sua maioria de língua espanhola ou castelhana, criaram redes de divulgação, distribuição de manuais, postagem de poemas e textos não sexistas, chegando mesmo a organização de uma campanha para a América Latina – que tem no dia 21 de junho uma data comemorativa, dia no qual as proponentes disseminam cartazes, poemas, textos e outros documentos visando a difusão de uma ideia muito simples, assim expressa: “No alfabeto é assim: ‘A = O’.   Duas letras diferentes, iguais em importância. Na vida dos seres humanos, naturalmente deveria também ser assim: iguais em direitos humanos e respeitados em suas diferenças”.

A = O torna-se o símbolo dessa luta contra o sexismo, travada no âmbito da linguagem. Outra proposta interessante é do Mujer Palabra, um grupo autodenominado de “independente” e “autogestionado”, dedicado a trabalhos de criação, pensamento e ativismo, cujo lema é: “Se a linguagem não importa não é essa nossa revolução!”.

A reivindicação do grupo é para a adequação da linguagem aos tempos atuais, em que as mulheres nem sempre concordam silenciosamente com as violências sexistas. A linguagem é historicamente construída e como tal deve ser revisada de modo que contemple as pessoas envolvidas no discurso, seja oral ou escrito. O que nos transmite a linguagem sexista? Que o homem ou o masculino serve como medida do humano, da norma, a referência. Que as mulheres são apagadas nessa referência universal. Que as formas femininas partem sempre do masculino. Que o masculino dita as regras de concordância. Que os homens são criaturas racionais enquanto as mulheres são criaturas sexuais, emotivas e, por isso, apêndice do homem.

Em suma, a linguagem tem servido para fustigar ou excluir as pessoas não brancas, deficientes, idosas, as crianças, minorias e as mulheres cis e trans que, apesar de serem mais de metade da população mundial, continuam sendo anuladas, apagadas ou eliminadas dos discursos orais e escritos. É imperioso proceder à reescrita da gramática fazendo uma revisão da ordem das relações sociais de gênero. É importante ensinar as pessoas a falar usando uma linguagem não sexista, paritária, inclusiva e democrática.

A linguagem influencia poderosamente nas atitudes, nos comportamentos e nas percepções. E é por isso que na Argentina, e em alguns países na Europa, criam-se orientações em manuais que assegurem, na medida do possível, uma linguagem não sexista nos documentos públicos.

Um exemplo é o projeto de lei da deputada Paula Cecília Merchan, publicado em 2011 na Argentina, intitulado: Uso de linguagem não sexista na administração pública. A linguagem é uma construção cultural e histórica que tem colaborado para a violência sexista. A crença que a humanidade é composta de “homens” e que, naturalmente, as mulheres são incluídas na palavra é motivo de sexismo. Do mesmo modo que um/a palestrante se referir a uma plateia de docentes composta em sua maioria por mulheres como: “os senhores” ou “os professores” é um tratamento sexista e excludente, que parte do princípio de que as mulheres são uma segunda categoria, inclusa na categoria “homens”. Dessa forma, a contribuição feminista para o debate está em evitar o sexismo na linguagem como um passo importante para o combate às discriminações de gênero. As práticas linguísticas, prioritariamente nos espaços de administração pública, podem servir de modelo e permitir o desenvolvimento coerente com as práticas sociais que se renovam, foi assim que vários países já produziram Guias de orientação para a utilização de uma linguagem não sexista.

Iniciativas semelhantes aconteceram na Europa e na América Latina, onde os guias de orientação formam materiais pedagógicos para serem utilizados nos textos escritos e nos discursos orais dentro dos setores públicos, pois se entende que, nesses locais, a prioridade deve ser a inclusão e a garantia do exercício da cidadania. A partir disso, aponto o argumento do guia elaborado pelo Instituto Canário, nas Ilhas Canárias na Espanha: “Nos últimos 30 anos generaliza-se um amplo conhecimento sobre como utilizar uma linguagem inclusiva em todos os âmbitos, especialmente na linguagem administrativa. São publicados livros, manuais, dicionários, conclusões etc. com a finalidade de utilizar a riqueza da língua espanhola em prol da generalização da linguagem não sexista para a cidadania” (Instituto Canário de la Mujer, 2010).

A urgência dos governos em adotar manuais de orientação se faz como medida para amenizar as dificuldades de adoção de uma gramática não androcêntrica, ou menos androcêntrica que as atuais. Na linguagem sexista está presente a crença quase geral que confere poder e superioridade ao homem e se manifesta em palavras e expressões que ocultam ou desqualificam o feminino. Um dos exemplos mais marcantes é o uso da palavra homem para designar todos os seres humanos, enquanto a palavra mulher designa apenas a fêmea da espécie. Alguns dicionários ainda propõem que a palavra mulher designa alguém da espécie humana depois da puberdade ou do casamento, deixando uma lacuna quanto ao que seriam antes desses dois casos. Se não são mulheres, o que seriam então? Este é apenas um exemplo dentre tantos. Como este exemplo existem outros em que o masculino precede, oculta e domina o feminino, ou que a mulher recebe sua identidade em função da relação com o homem.

A linguagem que nós usamos traduz o grau de desenvolvimento civilizacional em que nos encontramos. Ela é o reflexo do nosso sentir e agir, além disso, ela afeta diretamente a percepção da realidade. A linguagem sexista legitima comportamentos de desigualdade, desrespeito, discriminatórios, ao omitir retira importância, reduz à inexistência grande parcela da humanidade, o que reforça e promove a violência sexista. A linguagem, ao denominar as mulheres como propriedade dos homens, sustenta uma visão patriarcalista do mundo. É preciso prever sanções para quem não respeitar o direito de todas as pessoas se verem representadas com dignidade nos textos escritos e produzidos oralmente em contextos públicos, por isso os vários manuais elaborados a partir das diretrizes propostas pela UNESCO são um passo importante para a construção de uma gramática não androcêntrica.

Esse debate está apenas começando no Brasil, e como vimos, em atraso com relação ao restante da América Latina, proponho uma revisão morfológica, além, é claro, da elaboração de manuais e guias de orientação para a utilização da linguagem não sexista nos espaços públicos, tais como escolas, centros de saúde, prefeituras etc.

Além disso, ficam alguns questionamentos: como aprender a falar/escrever sem silenciar as outras pessoas? Como não transformar o “todes” em um novo universal, que substitui o “todos” e, novamente, exclui as mulheres do discurso? Creio que o debate está apenas começando e, portanto, vale lembrar que não será alimentando velhas exclusões que se fará nascer uma nova proposta.

Para concluir, vale lembrar que, entre a metade final do século XX e início do século XXI, a linguagem não sexista ou inclusiva esteve presente nas pautas feministas e nas organizações de direitos humanos. Nas últimas décadas, vimos surgir um debate propondo uma linguagem não binária. É muito justa e importante a reivindicação empreendida por pessoas que não se identificam como homens ou mulheres, preferindo se autodefinirem como pessoas não binárias. Porém, se faz urgente a compreensão de que mulheres cis e trans definem-se como tal e, em consequência, todas querem ser contempladas pela linguagem. Este é um ponto urgente e importantíssimo! Vencer a barreira do machismo na linguagem e nas práticas sociais do Brasil, um dos países com maior número de estupros, feminicídio e transfobia.  

Retomo a frase inicial de Wittig que diz: “a língua que você fala é feita de palavras que a matam”. Excluir as mulheres cis e trans da linguagem é uma forma de eliminar suas existências. É estranho e desrespeitoso ver feministas nomeando outras mulheres em suas assembleias, eventos ou reuniões valendo-se da linguagem não binária. Se a linguagem no masculino não representa mulheres cis e trans ou pessoas não binárias, vale dizer o mesmo para a linguagem não binária, ela não representa o conjunto de homens e mulheres cis e trans, que assim se definem. Uma forma inclusiva para contemplar uma plateia de ouvintes, com identidades múltiplas, pode ser mais gentil se falarmos: “Saudações à todas, todes e todos!”.

A nova exclusão das mulheres da linguagem estaria ocorrendo para criar um novo universal que as exclui ou seria uma forma simplista de falar menos/escrever menos fomentada pela comunicação virtual? São muitas dúvidas e muitos desafios. O certo é que mulheres cis e trans irão continuar lutando por espaço social, voz e direitos, na mesma medida que a discussão sobre a linguagem não binária deve ganhar novos contornos e um debate linguístico, social e político para além da perversa uniformização humana.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Domingo, 24 de setembro de 2023 – Lua crescente

Domingo, 24 de setembro de 2023 – Lua crescente

Após cumprir as demandas de trabalho do dia (de freela e de casa), comecei hoje a ler uma edição de cartas da Virginia Woolf e Vita Sackville-West (Editora Morro Branco, 2023), que comprei ontem numa livraria de rua em BH. Elas foram amantes apaixonadas. Tem coisa mais inspiradora do que carta de mulheres apaixonadas? Li 40 páginas e quis vir aqui escrever um pouco – há dias tenho pensado nisso, mas não fiz.

Tanta coisa aconteceu do último texto para cá… em relação ao meu trabalho como preparadora e revisora (tem aparecido muitas demandas!), ao mestrado (cursos, congressos, simpósios, apresentações, encontros, lançamentos de livros…), tudo direta ou indiretamente girando em torno da Luas e do meu ofício de trabalhar com livros e estudar sobre eles e sobre as demandas feministas. Enquanto isso, na minha cabeça fica martelando o que preciso fazer para que a Luas tenha mais visibilidade, que venda livros, mas não só… (porque, pasmem, uma editora pequena não sobrevive financeiramente de venda de livros… E, poxa, a Luas é um projeto tão legal… E importante. Me apaixono todos os dias por esse projeto.) Como fazer uma das partes que tanto sonhei/sonho com a Luas acontecer, que é ser um lugar de encontro de mulheres que escrevem, profissionais da edição e da cadeia do livro, leitoras/leitores, para espairecer as dificuldades do existir e aprimorarmos os bons encontros a partir dos livros?

Ter uma editora, lançar um livro, abrir uma livraria, montar cursos etc., tudo isso é sempre um risco. Tenho pensado muito sobre isso. Tudo na vida é sempre um risco. Por que temos tanto medo? Ou melhor, do que tenho tanto medo?

Depois de um pouco mais de três anos fora de BH, volto a morar aqui, e sei que não quero viver nesta cidade como se morasse numa qualquer, ou seja, ficar trancafiada em casa, trabalhando loucamente no computador e pensando no tanto de coisas que quero fazer, imaginando, criando, mas também lamentando estar sozinha nessa (mesmo, de fato, não estando, pois tanta mulher me apoia, apoia a Luas – somos uma coisa só…), não ter dinheiro para concretizar tudo o que minha imaginação cria com a rapidez de um falcão em voo… rs.

O curioso é que, ao mesmo tempo, pela primeira vez, tenho tomado decisões para focar cada vez mais no que quero ser e fazer com a Luas, vislumbro isso com mais claridade e calma. Com certeza tem a ver com o que trilhei até aqui, com as experiências – boas e não tão boas – que me fizeram, em alguns momentos, focar, noutros, desfocar do meu projeto editorial feminista. E isso me assusta. Tenho propensão a me perder nos desejos dos outros… empolgadamente… ingenuamente… e isso não é justo com ninguém, não é mesmo?

Eu sempre quis fazer algo que transformasse o mundo e me transformasse o tempo todo, e a Luas faz isso comigo – é como uma filha, existimos juntas. E tenho refletido, criticamente, sobre a lente com que olho tudo o que me acontece e faço acontecer – pequenas transformações não seriam conquistas maiores do que penso ser? E, juro, não é só como um mecanismo para seguir em frente. É que, de fato, temos em funcionamento uma cultura cuja base e perspectivas são muito cruel, anti-vida, principalmente para as mulheres, pessoas racializadas e pessoas não homens-cis-hétero-branco. E precisamos estar o tempo todo atentas às armadilhas que nos fazem ver que o que fazemos, desejamos, criamos, somos (ou pretendemos ser) é pouco, ou menos, ou menor, enfim…

Sob esta lua crescente, começo a semana querendo fazer planos, colocar no papel, como diz… organizar as ideias, os desejos, para materializá-los. Abrir um espaço da Luas, juntar dinheiro, criar um clube do livro, grupo de estudos, podcast… encontrar, compartilhar, trocar… mudar o mundo todo um dia… um pouco… de pouco em pouco… como dá… hoje.

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   Cecília Castro – Fundadora e diretora editorial da Editora Luas. Nasceu no norte de Minas, é feminista, ativista, apaixonada por livros, poesia e literatura.

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De A Fonte da Donzela a Bela Vingança: as contradições do rape and revenge

De A Fonte da Donzela a Bela Vingança: as contradições do rape and revenge

O rape and revenge (em tradução livre, estupro e vingança) é um subgênero do horror marcado por contradições. Embora a sua data de surgimento seja incerta, ele existe desde os anos 1950, e, até meados dos anos 2000, tais histórias eram majoritariamente contadas por homens, salvo exceções como O Mundo É o Culpado (Outrage, 1950), de Ida Lupino. Contudo, mesmo os títulos assinados por mulheres eram repletos de incongruências nesse contexto.

Em um primeiro momento, os filmes seguiam a seguinte estrutura: uma mulher era brutalizada e morta. Então, o seu pai ou marido tentava encontrar uma forma de sobreviver à tragédia enquanto começava a tramar a sua vingança. Por fim, ele encontrava os culpados pelo crime para o acerto de contas. Logo, as mulheres eram mero acessório para avançar a trama dos personagens masculinos, um tipo de tropo narrativo que se tornou conhecido como Mulher na Geladeira após a publicação da HQ #54 do Lanterna Verde, de 1994.

Isso deixa claro que o estupro era visto como uma mácula na honra do homem. Essa noção, ainda que indiretamente, vinculava o valor feminino à conduta sexual e à virgindade. Além disso, como as mulheres morriam no primeiro ato, os filmes se dedicavam a mostrar os reflexos da violência na vida de outras pessoas, algo que pode ser visto em A Fonte da Donzela (Jungfrukallan, 1960). Nesse longa, Tore (Max von Sydow) é o agente da vingança porque se torna consumido pela culpa de ter enviado a filha, Karin (Birgitta Pettersson), à igreja e feito com que ela cruzasse o caminho dos estupradores. Ingmar Bergman, o diretor, tenta estabelecer um laço de empatia entre o público e Karin usando a ideia de violação da inocência, principalmente através da criação de um contraste entre a donzela e a serva da família, Mareta (Birgitta Valberg), o que deixa implícita a ideia de que algumas mulheres merecem ser violadas.

É importante pontuar que algumas dessas contradições começaram a desaparecer a partir da década de 1970, contexto no qual o rape and revenge passou a ser associado ao cinema exploitation. O exemplo mais popular é A Vingança de Jennifer (I Spit on Your Grave, 1978), que serve tanto para apresentar uma nova forma de contar histórias quanto para expor outros problemas, todos causados pela perspectiva masculina. Nesse filme, Jennifer (Camille Keaton) é uma escritora que se isola em uma casa na floresta durante as suas férias. Desde a sua chegada, ela passa a ser observada por um grupo de homens que, posteriormente, a estupra, espanca e abandona para morrer. Porém, contrariando as expectativas, Jennifer sobrevive e começa a tramar a sua vingança.

Ao mesmo tempo em que a personagem passa a ter o poder de decidir como deseja conduzir a narrativa, o male gaze está mais presente do que nunca. Existe fetichismo na forma como a violência é filmada, sempre explorando o corpo de Jennifer e as suas reações. Em um texto do site de Roger Ebert, o crítico conta como foi assistir ao longa no cinema em 1980, e este relato serve para ilustrar os problemas presentes em A Vingança de Jennifer. De acordo com ele, embora a plateia não fosse tão grande, ela era perturbadora e extremamente verbal a respeito das suas impressões. Para Ebert, caso eles realmente acreditassem nas coisas que diziam, seriam criminosos sexuais. Como ilustração, ele cita um homem de meia-idade que, após a última cena de estupro do longa, disse que já tinha visto algumas boas, mas aquela era a melhor. Além disso, em uma sequência na qual três dos estupradores incentivam o quarto a atacar Jennifer, houve muitas risadas na plateia.

Em certa medida, esse tipo de reação aconteceu porque A Vingança de Jennifer não tem qualquer cuidado com a construção dos personagens. Eles são apenas quatro homens e uma mulher envolvidos em ataques brutais, o que leva o termo exploitation ao pé da letra. Tudo é sensacionalista e tem como único objetivo o choque – ou, como ilustrou Roger Ebert, o gozo. Além disso, é importante ressaltar que, enquanto Meir Zarchi não tem o menor problema em mostrar as violações sofridas por Jennifer, quando a vingança assume o primeiro plano e os homens passam a ocupar a posição de vítimas, a barbárie ganha contornos mais sutis. Logo, é possível concluir que o estupro surge em tela como um espetáculo visual grotesco e quase glorificado.

Apesar dos problemas evidentes, é interessante destacar que algumas estudiosas, como Carol J. Clover, autora de Men, Women and Chainsaws: Gender in Modern Horror Film, defendem que tecer análises condenatórias do rape and revenge não é algo proveitoso. Ainda que este seja um estilo que presenteia o público com numerosas inconsistências, elas são provocadas pelo olhar masculino e não pelo formato em si, algo que se prova verdadeiro quando filmes mais recentes são observados.

Atualmente, esse subgênero tem sido retomado por diretoras, o que não apaga os problemas passados, mas serve para escrever uma trajetória diferente, em especial no sentido de não explorar o sofrimento de maneira fetichizada. O primeiro título feminino do rape and revenge moderno é o francês Baise-moi (Baise-moi, 2000), de Virginie Despentes e Coralie Trinh Thi, um longa brutal que retrata duas garotas marginalizadas buscando acertar as contas contra a sociedade que as violou e humilhou. Entretanto, existem produções com direção feminina que acabam tendo mais a dizer a respeito da violência contra a mulher e da cultura do estupro, como Vingança (Revenge, 2019) e Bela Vingança (Promising Young Woman, 2021). 

Esteticamente, Vingança se aproxima bastante de filmes como Planeta Terror (Planet Terror, 2007) e Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015). Isso significa que existe pouca preocupação com o realismo. Essa escolha serve à narrativa na medida em que Jen (Matilda Lutz) não tem tempo para planejar uma retaliação porque a sobrevivência se mistura à vingança nos atos finais do longa. Portanto, ela não escolhe ir atrás dos responsáveis pelo estupro, mas sim precisa caçá-los para não ser caçada graças ao isolamento geográfico local em que está. Assim, Coralie Fargeat, a diretora, transforma a personagem quase em uma heroína de videogames, o que é divertido de assistir e contribui para que o público torça pela protagonista de Vingança. Essa escolha também representa uma quebra na forma como Jen foi construída durante a primeira meia hora do filme.

Isso porque nós a conhecemos como a amante de um milionário que foi levada por ele para um retiro de caça. Nesse primeiro momento, ela é propositalmente retratada como alguém frívolo e um pouco irritante, o que parece querer desafiar a empatia do público. É como se Matilda Lutz e Coralie Fargeat quisessem testar até onde quem assiste consegue ir sem acreditar que Jen mereceu ser estuprada. Um aspecto que ajuda a reforçar essa ideia é o fato de que a dupla abre mão por completo da ideia de violação da inocência ao optar por criar uma personagem que conhece bem a sua sexualidade e as formas de usá-la a seu favor. Então, quando o abuso acontece, ao mesmo tempo em que Vingança parece querer dizer que isso era esperado, o longa lança mão de outros recursos para nos colocar ao lado de Jen. O principal deles é a escolha de nos deixar ouvir mais do que ver durante a sequência de estupro. Assim, quando a câmera da diretora abandona o quarto para mostrar o que outro personagem masculino está fazendo, o espectador o vê aumentando o volume da televisão e se sentando para assistir, algo que serve para reforçar o pacto silencioso entre os homens quando o assunto é o estupro.

Então, embora Vingança seja um filme extremamente estilizado e gráfico, ele não é explorador. Na verdade, Coralie Fargeat chega a brincar com essa ideia porque o único personagem que aparece nu durante toda a projeção é Richard (Kevin Janssens), o namorado de Jen. E isso acontece depois que a protagonista conseguiu matar Stan (Vincent Colombe) e Dimitri (Guillaume Bouchède), a dupla de amigos convidada para o retiro de caça. Ou seja, Jen e o seu amante estão sozinhos em um campo de batalha nivelado. Além disso, Richard está coberto de sangue e sendo perseguido de forma implacável, algo que remete à forma como Jennifer foi caçada em boa parte do segundo ato de A Vingança de Jennifer. Logo, trata-se de uma subversão bem-vinda e de um longa que realmente devolve algum poder para as mulheres.

Sobre essa retomada, Bela Vingança propõe algumas reflexões ousadas. Na cena de abertura, vemos Cassie (Carey Mulligan) bêbada em uma boate e ela é abordada por um homem “preocupado com a sua segurança”, Jerry (Adam Brody). Ele lhe oferece uma carona para casa e no meio do caminho propõe que eles mudem a rota e vão até o apartamento dele. Quando Cassie pede para se deitar, Jerry aproveita para beijá-la forçadamente e para começar a tirar a sua roupa. O tempo todo, nós tememos pelo que vai acontecer, e, quando a protagonista “acorda” completamente sóbria para questionar o que Jerry está fazendo, somos surpreendidos. Aos poucos, descobrimos que essa encenação faz parte de um plano de vingança maior e que Cassie vem executando-o pacientemente todas as noites desde que Nina, a sua melhor amiga, tirou a própria vida depois de ser estuprada por um colega de sala.

Inicialmente, a vingança de Cassie não é algo direcionado. Ela sequer conhece os homens com quem sai à noite. Na verdade, o seu objetivo é atacar algo que está no coração da cultura do estupro: a certeza da impunidade. Então, quando ela fica magicamente sóbria e assiste a esses caras tentando defender a sua conduta ou mesmo quando planta na cabeça deles a dúvida sobre existirem outras mulheres que adotam a mesma prática, nós entendemos que a justiça que ela deseja não é somente para Nina, mas sim para qualquer mulher que se veja exposta a esses tipos de homem, especialmente àqueles que insistem em se definir como “caras legais”. O adjetivo, entretanto, parece querer dizer somente que eles não são esquisitões em um beco escuro, mas sim rapazes bonitos que abordam mulheres por se importar com o que aconteceria caso elas permanecessem vulneráveis em um espaço hostil.

Algo bastante acertado para fazer com que o público perceba que um estuprador não tem um rosto definido foi escalar atores conhecidos por interpretar “caras legais” em produtos da cultura pop recente. Por exemplo, Adam Brody se tornou querido nos anos 2000 por dar vida a Seth Cohen em The O.C; Christopher Mintz-Plasse interpretou o desajeitado McLovin de Superbad – É Hoje (Superbad, 2008); e, por fim, Max Greenfield era o adorável Schmidt, de New Girl. Todos esses personagens são marcantes o suficiente para que os seus intérpretes sejam automaticamente associados a pessoas inofensivas e de boa índole. De certa forma, isso se conecta com a ideia presente no título original do filme, que em tradução livre significa jovem promissora. Segundo Emerald Fennell, a diretora e roteirista de Bela Vingança, quando ela estava escrevendo o roteiro, a ideia de dar este nome para o filme surgiu a partir de uma manchete de jornal que se referia aos homens que cometeram um estupro como “promising young men”. Ou seja, eles eram rapazes brilhantes que teriam a vida interrompida por um “erro” caso fossem condenados. Em momento algum a matéria se perguntava a respeito da vítima, e, dessa forma, Fennell construiu toda a narrativa do filme para não deixar que nós olhássemos para outra coisa.

Ainda que Nina comece a história morta, ela é o motor da trama e tudo acontece por causa dela. Desse modo, embora algumas pessoas tenham criticado o fato de que a vingança de Cassie se torna pessoal nos atos finais do longa, na verdade, é exatamente aí que Emerald Fennell encontra espaço para deixar o seu ponto de vista claro. Para além da cena da despedida de solteiro, existem dois passos no plano de Cassie que são brutais, mas extremamente necessários por não focarem nos homens e sim nas mulheres que contribuem para que a estrutura nos transforme em vítimas diariamente.

O primeiro desses passos é o seu encontro com Madison (Alison Brie), uma amiga da faculdade que sabia que Nina estava falando a verdade, mas escolheu ignorar e não testemunhou a seu favor quando os fatos cercando o estupro foram apurados. Inclusive, durante o encontro com Cassie, Madison volta a dizer que provavelmente nada aconteceu e Nina precisava chamar a atenção por ter se arrependido do que fez na festa. Então, quando vemos essa personagem, agora bêbada e vulnerável, sendo levada para um quarto de hotel por um homem e depois assistimos à protagonista recusando as suas ligações por dias a fio, nós entendemos exatamente o que Cassie pretendia ao armar essa situação. Na verdade, pouco importa o que aconteceu entre Madison e o homem, porque o episódio é traumático pela incerteza e, claro, por tudo o que naturalmente faria com que a credibilidade feminina fosse questionada. Inclusive, é curioso como Madison parece menos propensa a confiar na índole de um homem a partir do momento que ela se torna uma vítima em potencial.

O segundo episódio está ligado à visita que Cassie fez à reitora da faculdade na qual ela, Nina e o estuprador estudaram. Primeiramente, ela finge interesse em retomar os estudos e a partir disso introduz o que aconteceu com a amiga na conversa. Então, a reitora tenta se eximir da responsabilidade pela injustiça afirmando que casos como esse precisam ser verificados com cautela para que o futuro dos rapazes não seja arruinado. Novamente, Cassie lança mão da ideia de que a dor só é compreendida quando bate à porta e mente sobre ter deixado a filha adolescente da reitora no mesmo dormitório em que Nina foi estuprada. Imediatamente, a ideia de dar o benefício da dúvida aos homens desmorona, dando lugar ao desespero para manter a menina em segurança.

Embora tudo isso possa parecer implacável, ao mesmo tempo, é compreensível. Nina tentou justiça por todas as vias legais. De um lado, encontrou advogados dispostos a destruir o seu caráter com base em fotos postadas nas redes sociais. Do outro, encontrou a indiferença da universidade pelo caso, algo que é bastante comum na realidade estadunidense e já foi abordado no documentário The Hunting Ground (2015), uma produção que não desvia os olhos de assuntos desconfortáveis, como a predisposição das instituições de ensino para acobertar casos de estupro somente para conservar a sua reputação. Portanto, em uma sociedade na qual a vítima é a última coisa na cabeça de qualquer pessoa em uma posição de poder, resta a Cassie recorrer ao terror psicológico para conseguir mostrar o óbvio.

É por isso que o desfecho de Bela Vingança, apesar do amargor, é o único final possível para um filme que quer discutir o papel da certeza da impunidade na criação de contextos que possibilitam estupros. Ainda que algumas pessoas não gostem do tom pessimista, na verdade, não existe um cenário em que uma história como essa poderia terminar bem e Cassie sabia disso desde o momento que decidiu entrar naquela cabana – daí todos os arranjos feitos pela protagonista antes de seguir adiante com o seu plano. Então, por mais que às vezes ela se pareça com uma vingadora impiedosa, na verdade, Cassie é somente uma mulher quebrada lidando com o luto e a raiva gerada por ele de uma forma extrema. Portanto, era óbvio que ela não tinha preparo para se expor àquela situação e conseguir escapar ilesa. Todos os arranjos que ela faz antes de seguir viagem para o local em que o estuprador está dando uma festa são pensados justamente porque ela sabe que existe a chance de que a história acabe ali, com mais uma mulher pagando a conta para que homens continuem vivendo as suas vidas em liberdade.

Embora filmes como Vingança e Bela Vingança adicionem novas camadas de complexidade ao rape and revenge, afastando definitivamente o subgênero do sensacionalismo das décadas anteriores, eles deixam evidente algo bastante incômodo: as mulheres só são capazes de acertar as contas através do justiçamento. Mesmo que este recurso seja muito mais cinematográfico e catártico, ele também serve para expor o fato de que o estupro é o crime perfeito porque o que está em julgamento não é uma ação que lesa outra pessoa, mas sim a conduta da vítima. Quando se fala sobre atribuir culpa e punição, casos dessa natureza se importam pouco com fatos e provas. Na verdade, o que vale é criar uma narrativa que continue servindo à ideia de que mulheres provocam e homens são incapazes de se controlar. E ainda que a tal “vítima perfeita” realmente existisse, em alguma medida ela precisaria estar preparada para ter o seu caráter arrastado na lama se quisesse fazer justiça por meio de dispositivos legais – algo que também é mostrado de modo eficaz pelo cinema em Acusados (The Accused, 1988), em Elle (Elle, 2016) e em séries como Law and Order: SVU.

Logo, o rape and revenge atualmente é um subgênero que serve para deixar claro o quanto as mulheres ainda estão vulneráveis e têm a sua liberdade cerceada por uma sociedade que insiste em tratá-las como seres de segunda classe. Portanto, apesar do seu histórico contraditório e de alguns exemplos que continuam investindo em uma violência extrema e desproposital, trata-se de um estilo de cinema com potencial para dizer muito a respeito do mundo em que vivemos e da forma como, apesar de todos os avanços, ele continua pronto para transformar mulheres em vítimas diariamente, o que, mais uma vez, confirma a fala de Carol J. Clover a respeito de não tecer análises condenatórias. Isso não significa ignorar problemas, mas sim aprender a observar criticamente produtos culturais, bem como entender que o passado das coisas pode nos dizer muito sobre o lugar que estamos atualmente.

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Amanda Guimarães – Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), atua há mais de 10 anos como corretora de textos e redatora e escreve sobre cultura em vários sites pela internet afora desde 2012. Obcecada por cinema de horror, gatos e música dos anos 90, curte viajar para festivais e ficar em casa rodeada de suas gatas.

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