Um novo universal?
Um novo universal?
A língua que você fala envenena a glote a língua o palato os lábios. Elas dizem: a língua que você fala é feita de palavras que a matam.
Monique Wittig, As guerrilheiras, 1969
Linguagem inclusiva é diferente de linguagem neutra. De acordo com a gramática, quando existe pelo menos um elemento masculino, o gênero predominante é o masculino. As pessoas que não se identificam como homem ou mulher buscam resolver esse impasse utilizando-se de símbolos “@” ou “x” no lugar dos marcadores de gênero. Porém, a alteração na grafia (uso do “x” ou “@”) dificulta a compreensão, e muitas pessoas com deficiência visual, que utilizam programas de leituras de texto, se veem prejudicadas, tendo em vista que os softwares não conseguem ler palavras escritas neste formato modificado. Escritoras feministas, como Monique Wittig, já apontavam em seus textos a mortificação das mulheres via linguagem, como lemos na citação inicial desta reflexão.
A editora francesa Des Femmes, fundada em 1973 por Antoinette Fouque, se dedica exclusivamente a publicar obras escritas por mulheres. Na página virtual da livraria, lemos: “écrire ne sera donc jamais neutre”. A ideia central é de que a escrita não é, e jamais será, neutra, pois ela reflete as experiências de quem escreve no mundo do qual participa.
Aqui vemos o imbróglio tomar grandes dimensões. A discussão sobre linguagem não sexista já estava consolidada desde meados dos anos 1960 com vistas à inclusão das mulheres na linguagem. A atual proposta de linguagem neutra, que seria mais adequadamente definida como linguagem não binária, propõe uma mudança gramatical. A linguagem não sexista, também conhecida como linguagem inclusiva, propõe uma comunicação sem excluir ou invisibilizar nenhum grupo social. A proposta da linguagem neutra ou não binária, busca a inclusão das pessoas não binárias, e sugere algumas alterações do idioma e do uso de novas grafias de palavras tais como: tod@s, todxs, todes.
O que é a linguagem sexista então? Um conjunto de vocábulos que, sendo primariamente do gênero masculino, simboliza ambos os gêneros em situação de comunicação. Mensagens estereotipadas e discriminatórias de ambos os gêneros com base em convenções preestabelecidas pela cultura e que nada têm a ver com condicionalismos biológicos intrínsecos aos seres humanos. Foi partindo desse entendimento que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) definiu, a partir de publicações e formas diversas de intervenção sobre o tema, algumas diretrizes para Redação sem discriminação. A linguagem sexista tem sido um objeto de estudo e intervenção tratado em diferentes níveis de governo, chegando ao âmbito das Nações Unidas através da 24ª reunião da Assembleia Geral da UNESCO, em 1978, que propôs o exame e a revisão dos registros escritos e dos discursos orais que apresentem formas de discriminação de linguagem com relação às mulheres.
Mudanças significativas nas relações sociais e humanas começam com o uso das palavras adequadas e com mensagens não verbais que reafirmem a equidade entre os gêneros e valorizem a diversidade sociocultural, sexual e racial. Introduzir estes parâmetros nos materiais de educação é fundamental para forjar novas relações entre as pessoas.
Algumas recomendações para evitar sexismo na elaboração de materiais de educação são:
– Eliminar da linguagem todas as expressões de conteúdo desqualificador ou discriminatório, que tenham como mensagem a inferioridade das mulheres, sua ausência na vida pública e a sua definição e identidade em função do homem. Dessa forma, torna-se injustificável manter o jargão “história do homem”, “o homem moderno”, tão comuns nos livros didáticos, especialmente aqueles dedicados à história natural. Há palavras e expressões mais interessantes como “humanidade”, “espécie humana”, “homens, mulheres cis, trans e pessoas não binárias”, que substituem esse vício com propriedade.
– Fomentar nos textos e nas ilustrações imagens de equidade, cooperação e associação entre as pessoas, as crianças e jovens de raças, etnias, idades, religiões, posições sociais diferenciadas. Eliminar aquelas que contenham conteúdos estereotipados, desqualificadores ou discriminatórios.
– Mostrar situações em que o poder e a liderança estejam distribuídos por personagens de ambos os gêneros, em que os diferentes gêneros sintam-se representados nas atitudes positivas e propositivas.
As propostas para uso de uma linguagem não sexista já são comuns em várias línguas, tais como francês, inglês, alemão e espanhol. Na América Latina, os países, em sua maioria de língua espanhola ou castelhana, criaram redes de divulgação, distribuição de manuais, postagem de poemas e textos não sexistas, chegando mesmo a organização de uma campanha para a América Latina – que tem no dia 21 de junho uma data comemorativa, dia no qual as proponentes disseminam cartazes, poemas, textos e outros documentos visando a difusão de uma ideia muito simples, assim expressa: “No alfabeto é assim: ‘A = O’. Duas letras diferentes, iguais em importância. Na vida dos seres humanos, naturalmente deveria também ser assim: iguais em direitos humanos e respeitados em suas diferenças”.
A = O torna-se o símbolo dessa luta contra o sexismo, travada no âmbito da linguagem. Outra proposta interessante é do Mujer Palabra, um grupo autodenominado de “independente” e “autogestionado”, dedicado a trabalhos de criação, pensamento e ativismo, cujo lema é: “Se a linguagem não importa não é essa nossa revolução!”.
A reivindicação do grupo é para a adequação da linguagem aos tempos atuais, em que as mulheres nem sempre concordam silenciosamente com as violências sexistas. A linguagem é historicamente construída e como tal deve ser revisada de modo que contemple as pessoas envolvidas no discurso, seja oral ou escrito. O que nos transmite a linguagem sexista? Que o homem ou o masculino serve como medida do humano, da norma, a referência. Que as mulheres são apagadas nessa referência universal. Que as formas femininas partem sempre do masculino. Que o masculino dita as regras de concordância. Que os homens são criaturas racionais enquanto as mulheres são criaturas sexuais, emotivas e, por isso, apêndice do homem.
Em suma, a linguagem tem servido para fustigar ou excluir as pessoas não brancas, deficientes, idosas, as crianças, minorias e as mulheres cis e trans que, apesar de serem mais de metade da população mundial, continuam sendo anuladas, apagadas ou eliminadas dos discursos orais e escritos. É imperioso proceder à reescrita da gramática fazendo uma revisão da ordem das relações sociais de gênero. É importante ensinar as pessoas a falar usando uma linguagem não sexista, paritária, inclusiva e democrática.
A linguagem influencia poderosamente nas atitudes, nos comportamentos e nas percepções. E é por isso que na Argentina, e em alguns países na Europa, criam-se orientações em manuais que assegurem, na medida do possível, uma linguagem não sexista nos documentos públicos.
Um exemplo é o projeto de lei da deputada Paula Cecília Merchan, publicado em 2011 na Argentina, intitulado: Uso de linguagem não sexista na administração pública. A linguagem é uma construção cultural e histórica que tem colaborado para a violência sexista. A crença que a humanidade é composta de “homens” e que, naturalmente, as mulheres são incluídas na palavra é motivo de sexismo. Do mesmo modo que um/a palestrante se referir a uma plateia de docentes composta em sua maioria por mulheres como: “os senhores” ou “os professores” é um tratamento sexista e excludente, que parte do princípio de que as mulheres são uma segunda categoria, inclusa na categoria “homens”. Dessa forma, a contribuição feminista para o debate está em evitar o sexismo na linguagem como um passo importante para o combate às discriminações de gênero. As práticas linguísticas, prioritariamente nos espaços de administração pública, podem servir de modelo e permitir o desenvolvimento coerente com as práticas sociais que se renovam, foi assim que vários países já produziram Guias de orientação para a utilização de uma linguagem não sexista.
Iniciativas semelhantes aconteceram na Europa e na América Latina, onde os guias de orientação formam materiais pedagógicos para serem utilizados nos textos escritos e nos discursos orais dentro dos setores públicos, pois se entende que, nesses locais, a prioridade deve ser a inclusão e a garantia do exercício da cidadania. A partir disso, aponto o argumento do guia elaborado pelo Instituto Canário, nas Ilhas Canárias na Espanha: “Nos últimos 30 anos generaliza-se um amplo conhecimento sobre como utilizar uma linguagem inclusiva em todos os âmbitos, especialmente na linguagem administrativa. São publicados livros, manuais, dicionários, conclusões etc. com a finalidade de utilizar a riqueza da língua espanhola em prol da generalização da linguagem não sexista para a cidadania” (Instituto Canário de la Mujer, 2010).
A urgência dos governos em adotar manuais de orientação se faz como medida para amenizar as dificuldades de adoção de uma gramática não androcêntrica, ou menos androcêntrica que as atuais. Na linguagem sexista está presente a crença quase geral que confere poder e superioridade ao homem e se manifesta em palavras e expressões que ocultam ou desqualificam o feminino. Um dos exemplos mais marcantes é o uso da palavra homem para designar todos os seres humanos, enquanto a palavra mulher designa apenas a fêmea da espécie. Alguns dicionários ainda propõem que a palavra mulher designa alguém da espécie humana depois da puberdade ou do casamento, deixando uma lacuna quanto ao que seriam antes desses dois casos. Se não são mulheres, o que seriam então? Este é apenas um exemplo dentre tantos. Como este exemplo existem outros em que o masculino precede, oculta e domina o feminino, ou que a mulher recebe sua identidade em função da relação com o homem.
A linguagem que nós usamos traduz o grau de desenvolvimento civilizacional em que nos encontramos. Ela é o reflexo do nosso sentir e agir, além disso, ela afeta diretamente a percepção da realidade. A linguagem sexista legitima comportamentos de desigualdade, desrespeito, discriminatórios, ao omitir retira importância, reduz à inexistência grande parcela da humanidade, o que reforça e promove a violência sexista. A linguagem, ao denominar as mulheres como propriedade dos homens, sustenta uma visão patriarcalista do mundo. É preciso prever sanções para quem não respeitar o direito de todas as pessoas se verem representadas com dignidade nos textos escritos e produzidos oralmente em contextos públicos, por isso os vários manuais elaborados a partir das diretrizes propostas pela UNESCO são um passo importante para a construção de uma gramática não androcêntrica.
Esse debate está apenas começando no Brasil, e como vimos, em atraso com relação ao restante da América Latina, proponho uma revisão morfológica, além, é claro, da elaboração de manuais e guias de orientação para a utilização da linguagem não sexista nos espaços públicos, tais como escolas, centros de saúde, prefeituras etc.
Além disso, ficam alguns questionamentos: como aprender a falar/escrever sem silenciar as outras pessoas? Como não transformar o “todes” em um novo universal, que substitui o “todos” e, novamente, exclui as mulheres do discurso? Creio que o debate está apenas começando e, portanto, vale lembrar que não será alimentando velhas exclusões que se fará nascer uma nova proposta.
Para concluir, vale lembrar que, entre a metade final do século XX e início do século XXI, a linguagem não sexista ou inclusiva esteve presente nas pautas feministas e nas organizações de direitos humanos. Nas últimas décadas, vimos surgir um debate propondo uma linguagem não binária. É muito justa e importante a reivindicação empreendida por pessoas que não se identificam como homens ou mulheres, preferindo se autodefinirem como pessoas não binárias. Porém, se faz urgente a compreensão de que mulheres cis e trans definem-se como tal e, em consequência, todas querem ser contempladas pela linguagem. Este é um ponto urgente e importantíssimo! Vencer a barreira do machismo na linguagem e nas práticas sociais do Brasil, um dos países com maior número de estupros, feminicídio e transfobia.
Retomo a frase inicial de Wittig que diz: “a língua que você fala é feita de palavras que a matam”. Excluir as mulheres cis e trans da linguagem é uma forma de eliminar suas existências. É estranho e desrespeitoso ver feministas nomeando outras mulheres em suas assembleias, eventos ou reuniões valendo-se da linguagem não binária. Se a linguagem no masculino não representa mulheres cis e trans ou pessoas não binárias, vale dizer o mesmo para a linguagem não binária, ela não representa o conjunto de homens e mulheres cis e trans, que assim se definem. Uma forma inclusiva para contemplar uma plateia de ouvintes, com identidades múltiplas, pode ser mais gentil se falarmos: “Saudações à todas, todes e todos!”.
A nova exclusão das mulheres da linguagem estaria ocorrendo para criar um novo universal que as exclui ou seria uma forma simplista de falar menos/escrever menos fomentada pela comunicação virtual? São muitas dúvidas e muitos desafios. O certo é que mulheres cis e trans irão continuar lutando por espaço social, voz e direitos, na mesma medida que a discussão sobre a linguagem não binária deve ganhar novos contornos e um debate linguístico, social e político para além da perversa uniformização humana.
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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.