+55 31 9 8904-6028

Monthly Archives: outubro 2022

Leia para uma criança!

Leia para uma criança!

“Como adulto terei a coragem infantil de me perder?”

 

A pergunta que abre este texto foi feita por Clarice Lispector no livro A paixão segundo G.H. O perder-se é algo malvisto na perspectiva da racionalidade cartesiana, algo perigoso, pois pode levar uma pessoa adulta à loucura. Mas, na infância o perder-se pode ter um sentido físico relacionado ao comportamento curioso das crianças que vão adiante para descobrir algo novo e acabam por distanciar-se de suas mães ou tutoras/es em algum passeio. No sentido metafórico, o perder-se está relacionado ao mundo da imaginação, dos sonhos, das fantasias. Como Alice, a personagem central do clássico infantil Alice no País das Maravilhas, que é a história de uma menina que segue um coelho muito estranho e vai parar no País das Maravilhas.

A criança aprende se divertindo, imaginando, sonhando, fantasiando. A criança descobre o mundo através do brincar. A ludicidade não é característica da infância somente na espécie humana, em outros animais não humanos podemos observar comportamentos semelhantes quando vemos uma ninhada de gatinhos, de cães ou mesmo entre filhotes de animais silvestres, como, por exemplo, ao redor da leoa a sua ninhada brincando.  O livro de Johan Huizinga intitulado Homo ludens: o jogo como elemento da cultura aborda a questão. A descoberta da peculiaridade do aprender de forma lúdica na infância não é muito antiga em nossa história de tradição filosófica escrita pelos homens ocidentais racionalistas. É uma visão que atravessou os séculos pesando sobre as crianças e forjando o adultocentrismo. Se pensarmos que quem, em sua maioria avassaladora, cuida, educa e embala as crianças, desde o nascimento, são as mulheres, não é de se estranhar que os homens tenham escrito tantas bobagens sobre a infância ao longo da história. Vejamos algumas delas:

Descartes: “Enganamo-nos porque fomos crianças antes de sermos homens”;

Rousseau: “A infância é, por excelência, o período em que germinam o erro e o vício”;

Aristóteles: “Durante a infância não possuímos a faculdade de decisão senão sob forma imperfeita”;

Kant: “As crianças estão, por natureza, em estado de incapacidade, e os pais são os seus tutores naturais”.

A infância, então, para os filósofos citados é o locus do engano, do erro, do vício, da imperfeição e da incapacidade. Nenhum destes homens escreveu sobre a questão central da infância: o sentido do brincar, da imaginação, da fantasia e sua importância para a construção do conhecimento e para o reconhecimento do mundo ao seu redor.

Na Idade Média havia uma ausência do sentimento de infância. O historiador Philippe Ariès realizou um estudo iconográfico que mostra a criança quase sempre retratada com feições de adulto. Até a Idade Média a criança era um projeto de adulto, sua descoberta foi acontecer na Modernidade com os estudos relacionados ao papel do brinquedo e da ludicidade na educação.

Se hoje eu trabalho como educadora feminista devo isso aos meus estudos e aos trabalhos sobre a infância desde a minha primeira graduação em Educação Física, onde fiz estágio remunerado nas escolas e atuei em uma escola rural do MST. Após formada, fiz uma Especialização em Educação e defendi a monografia intitulada O Imaginário Infantil: do Mágico de Oz ao Space-man, em 1995. Nela fiz uma imersão etnográfica utilizando recortes do meu cotidiano entre as crianças. Além das crianças nas escolas onde atuei, havia em casa meu irmão e minha irmã, com, respectivamente, 16 e 17 anos de diferença de mim. Eram muitas vozes de crianças que eu escutava e que citei em minha monografia. Uma delas foi uma conversa entre meu irmão e minha irmã: “será que a mana é cliança?” A pergunta dele foi muito pertinente, denotou inteligência e a descoberta entre o que é ser criança e ser uma pessoa adulta, pois eu era uma adulta totalmente diferente do comportamento que ele via. Eu assistia desenho animado, brincava, lia literatura para crianças e inventava muitas histórias e personagens, algumas inclusive tinham figurino para caracterizar que não era a Patrícia. Além disso, naquela época eu atuava na companhia de teatro A Tua Ação, dirigida por Marta Garcia, e na ocasião minha mãe levou as crianças para me assistirem nas peças para crianças.

As crianças precisam da literatura, do teatro, da contação de histórias para auxiliar em seu processo cognitivo. Sônia Kramer, em seu livro Por entre as pedras: arma e sonho na escola, conta uma situação em que uma professora, sabendo da importância da literatura na vida das crianças, resolveu contar a história de Alice no País das Maravilhas. Porém a professora deixou essa atividade para o último dia de aula. Nesse sentido, Sônia, pergunta: “por que deixar a estória para o final, e durante todo o ano letivo trabalhar conteúdos vazios de significado para a criança?” No fundo a professora sabe que, além da dureza metálica da arma, existe a suave maciez poética do sonho. Então “será justo exigir que as crianças permaneçam na aridez da linguagem-mecânica-instrumento, distanciando-as ao invés de aproximá-las do significado da escrita como arma e sonho?”

Quem sabe isso acontece porque a escola tradicional não consegue acompanhar a vida, o desejo, os sonhos das crianças. Ela é obsoleta! As crianças querem descobrir o mundo agora, e não deixar para depois da aula suas curiosidades, inclusive seus questionamentos. Então o que ocorre é que ela acaba detestando a escola. É importante ressaltar que, para além das escolas tradicionais, existem escolas alternativas que buscam a construção da autonomia, da autogestão e, sobretudo, valorizam o conhecimento das crianças e fomentam a leitura, criatividade e espontaneidade. Mas, são poucas e não atendem o grande contingente de crianças.

As diferenças de classe devem ser analisadas neste ponto de vista. As famílias sem condições de pagar uma escola ficam sem direito de escolha, e há diferenças entre as escolas urbanas e rurais. Existe uma multiplicidade de formas de ver e de atuar na educação infantil, algumas experiências, sobretudo as libertárias, servem de modelo até hoje para pensar em alternativas, como, por exemplo: A Escola de Iasnaia Poliana, criada por Liev Tolstói; A Colméia, proposta por Sébastien Faure; as Escolas Modernas, de Francisco Ferrer y Guadia; e as experiências educativas das anarquistas Louise Michel, Anna Mahé, Émilie Lamotte, na França, e de Maria Lacerda de Moura, na comunidade agrícola libertária em Guararema, no Brasil.

As experiências educacionais alternativas, sejam elas libertárias ou não, surgiram a partir da crítica aos modelos tradicionais. Este foi e continua sendo um dos meus campos de estudo desde a minha monografia em Educação. Eu tinha 24 anos quando realizei a especialização e, de certo modo, foi uma maneira de pensar a minha própria dificuldade durante o meu período de escolarização. Eu só não fiquei de exame no último ano e creio que, por isso, escrevi:

 

Z, X, T…

Z, x, t, r, s, z…

Foi tudo que aprendi a fazê,

A escola foi isso que me ensinô,

O Alfabeto e em Santo Deus crê…

Jogá futebol na educação física,

P’rá algum dia um grande Pelé eu sê…

E hoje, fico aqui pensando… da vida,

eu, por lá, nada pude vê…

 

A literatura para crianças é uma das formas de expandir a imaginação, a criatividade e fazer florescer a ludicidade. Nas últimas décadas é incrível o salto qualitativo no que tange aos livros escritos para crianças. A literatura para bebes é algo extremamente inovador. As pesquisadoras estão estudando os processos cognitivos possibilitados pela interação não somente com os brinquedos, mas também com os livros. As bebetecas estão crescendo e são hoje estratégias pedagógicas para auxiliar o trabalho educacional desde as creches.

Estudiosas como Marisa Lajolo, Sônia Kramer, Regina Zilbermann nos ensinam que a literatura infantil, para além do papel educativo, é uma forma de arte que fomenta a imaginação e a criatividade. Mell Brites diz que “literatura infantil é literatura, se não fosse, não seria assim chamada. E literatura é arte. Como arte, ela tem o direito de não servir propriamente para nada, de não ter uma intencionalidade de antemão. Portanto, ela nos humaniza também porque conversa conosco por vias que não as da lógica, da hierarquia, da razão”.

Com a renovação na literatura para as infâncias, vimos crescer o número de editoras voltadas para este domínio da produção de livros. Além disso, a educação está utilizando a literatura infantil para abordar temas como gênero, sexualidade, etnias, raças, classe social etc. Os livros infantis estão cada vez mais sofisticados e as editoras estão abrindo as portas para um universo repleto de novidades e de beleza.

Foi em 2020 que a Editora Luas criou o selo Lunitas, um selo voltado para o público infantil, afinal em uma editora que promove a literatura escrita por mulheres é importante pensar que as mulheres estão protagonizando novas histórias para as crianças. O selo Lunitas foi inaugurado com o livro Sua primeira casa, de Rafaela Kalaffa, e o segundo, O resgate do Touro Vermelho, de minha autoria, com ilustrações de Nick Carmona. O primeiro aborda o útero e a gestação de uma forma poética e com uma belíssima arte que nos transporta para o momento da gestação. O segundo conta a história de Red Bull, um touro surfista que foi capturado, levado ao abatedouro e, logo depois, foi resgatado. Trata-se de um livro de aventura sobre a libertação animal.

Autoras como Clarice Lispector, Ruth Rocha e Eliane Potiguara são reconhecidas por seus trabalhos voltados ao público infantil. As questões étnico-raciais estão sendo protagonizadas por autoras que vivenciaram na pele a questão do racismo e, portanto, promovem uma literatura em que as crianças encontrem eco de suas vidas nas narrativas. Simone Mota é autora do livro Carolayne, Carolina e as histórias do diário da menina, dentre muitos outros; e Vãngri Kaingáng escreveu Estrela Kaingáng, a lenda do primeiro pajé, entre outras produções.

As biografias para crianças estão em expansão: Rosa Parks, Paulo Freire, Frida Kahlo, Clarice Lispector, Violeta Parra e tantas outras pessoas estão agora, também, nos livros para crianças. Eu, junto com a artista Jéssica Fiorini, estou dando início a Coleção Lute como uma garota, que sairá pela Editora Appris. A biografia de Nise da Silveira irá inaugurar o novo projeto voltado para a literatura infantil.

O Poema do Milho, de Cora Coralina, ilustrado por Lélis, é uma poesia que virou livro para crianças. Diz ela:

“O grão que cai é o direito da terra.

A espiga perdida – pertence às aves

que têm seus ninhos e filhos a cuidar.

Basta para ti, lavrador,

o monte alto e a tulha cheia.

Deixa a respiga para os que não plantam nem colhem.

– O pobrezinho que passa.

– Os bichos da terra e os pássaros do céu.”

A literatura para crianças está cada dia mais criativa, cativante e nos convidando a ler para a gurizada. Basta ativarmos a nossa criança interior, afinal, a imaginação, a criatividade e a ludicidade são a lenha desta fogueira.

Leia para uma criança!

_____________________________________________________________________________________________________________________

Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

Posted by admin