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Quinta-feira, 12 de outubro de 2023 – Lua nova

Quinta-feira, 12 de outubro de 2023 – Lua nova

Tenho há dias, meses (a vida inteira, talvez?), revisitado lugares profundos em mim, que têm a ver com um passado longínquo, e feito muitas perguntas… quem fui, quem sou agora, o que desejo, quando e como e por que surgiu algo transformador em mim… tantos lugares, tantas transformações… e um desses lugares são os livros, que por si só não são transformadores, transformam porque acontece o encontro, porque toca (ou não) quem lê.

Eu despertei interesse pela leitura, que eu me lembre, na adolescência, mas muito espaçadamente – lia os títulos obrigatórios da escola, alguma indicação ou influência de irmãs (minha irmã mais velha lia muito Paulo Coelho, cheguei a ler alguns), do meu avô, de professor(a), colega, amiga(o), enfim. Dessas leituras, nada que me fizesse parar tudo e ler avidamente ou querer mais. Isso só foi acontecer, apaixonadamente, quando, por causa de um vestibular seriado, tive de ler cinco obras de autoras brasileiras: Clarice Lispector, Nélida Piñon, Cecília Meireles, Cora Coralina e Hilda Hilst. (explosão) como escreveria a Clarice em alguns de seus maravilhosos livros…

Minha vida mudou completamente a partir do primeiro livro dessa leva que li: Um sopro de vida – pulsações, da magnífica Clarice. Como esse livro me fez eu me comunicar tão profundamente comigo… me instigava, me inspirava, me deixava estarrecida, sensação de que nada mais importava: “… depois de ter você, pra que querer saber que horas são?” rsrs.

Aí eu quis ler tudo dela e sobre ela, passei a frequentar assiduamente a biblioteca municipal e da escola (pública, estadual). Romances, contos, crônicas, cartas, biografias… e a partir daí fui adentrando o universo da Clarice e o meu, fascinada. Então a vida não era só dar conta das obrigações, existia um universo diverso, confuso, bizarro, incrível, sensível e horrendo dentro de mim e daqueles livros. Então veio Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Fernando Pessoa, Nietzsche… e os livros passaram a ser espelhos, mas não só. Porque havia revelações. Havia tanta humanidade, e isso me humanizava, me fazia sentir, e eu me tornava alegria pura ou tristeza profunda ou empolgação ou melancolia, me afetava como nenhuma outra coisa.

Foi daí que nasceu minha vontade de ocupar completamente minha vida com a literatura, os livros, a palavra escrita. Quis ser escritora – escrevia poemas e alguns contos, jogava muita coisa fora, guardava outras –, mas rapidamente achei que não era capaz, por pura comparação e baixa autoestima e imaturidade, claro; vislumbrei um dia ter um sebo, pensava que poderia viver a vida inteira em um, independente de onde moraria – também tinha um sonho de sair do interior de Minas, mas, na época, não via possibilidade de isso acontecer. Ser editora mesmo, não cheguei a pensar nisso naquela época, mas decidi fazer o curso de Letras, para estudar literatura.

Fui desejar abrir uma editora na graduação – momento propício para expandir os universos… lembro carinhosamente de, lá em Viçosa na UFV (2008 a 2010), falar, com convicção, com uma colega de graduação e amiga poeta, que sempre me mostrava seus fortes e excelentes poemas, que, quando tivesse minha editora, publicaria o livro dela. Quem diria que 10 anos depois estaria mesmo abrindo minha editora…

 

Eu não poderia estar fazendo outra coisa. Como é incrível ter essa certeza.

E assustador também.

 

As palavras me conectam com meu mundo interno. Eu que, facilmente, me distraio de mim… Os livros, mas não por si só me conectam com tantos mundos possíveis da nossa humanidade. Existe beleza e horror nisso. Um imenso paradoxo.

(Parece que a lua está em escorpião… talvez por isso estou assim hoje, vasculhando mais que os outros dias. E expressar, colocar em palavras, é uma necessidade que me acompanha desde que me entendo por gente. Quero entender, entender e comunicar, sempre.)

Isso sou eu. E tantas outras coisas também.

Meu mundo interno e o mundo externo mudam através dos livros. Eles me conectam também com o outro, com as pessoas. Eu me sinto em conexão profunda, empatia radical, amor incondicional – espiritualidade, talvez, seria o nome. 

Ser editora é mais que um ofício. Eu não poderia fazer qualquer coisa que não fosse movida pela paixão. Eu sou uma pessoa apaixonada. Apaixonadíssima. Falo isso hoje de um outro lugar – já fui muito criticada por isso, o que me fazia me ver equivocadamente mal, com os olhos dos outros, e sufocar a mim mesma (com redundância mesmo, reforçando a gravidade rs).

Ser uma pessoa movida pela paixão faz com que o meu tempo seja muito peculiar. Às vezes demoro para começar a ler um(uma) autor(a), livro, artista, músicas que muita gente indica. Tem que me tocar profundamente num lugar muito meu – e cada um tem esse lugar, claro. Talvez o meu seja o lugar que faz com que eu me conecte comigo mesma, porque esse é meu maior desafio. (Isso está no meu mapa astral também, com um Nodo norte em áries.) Tenho uma tendência de colocar o outro em primeiro lugar, de me sentir através do outro… Com o tempo, fui descobrindo o quanto isso me deixa vulnerável e contra mim mesma. Tenho descoberto, na verdade.  O tempo é mesmo nosso melhor amigo…

Trabalhar com livro me conecta comigo, e estar com mulheres me transforma o tempo inteiro. E isso é fascinante. Eu não poderia ter feito algo que não fosse fundar uma editora que publica exclusivamente livros escritos por mulheres e que são feitos por nossas mãos.

(Penso criticamente na questão do binarismo, se não estaria reforçando… mas me tranquilizo por saber que a desconstrução desse sistema vem das feministas, e estamos lidando com isso. Tudo em transformação, sempre.)

Sou muito grata a parte de mim que seguiu o imperioso desejo de estar no mundo dos livros e ser feminista e trilhar meu caminho sob essa base.

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   Cecília Castro – Fundadora e diretora editorial da Editora Luas. Nasceu no norte de Minas, é feminista, ativista, apaixonada por livros, poesia e literatura.

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Vozes das poetas mortas

Vozes das poetas mortas

O início do mês de outubro de 2023 foi marcado pelo derramamento de sangue inocente no Oriente Médio. A Palestina, desde o inicio do século XX, sofre um brutal processo colonizador de apartheid social e de expropriação de seu território. O mundo árabe pós-otomano foi fragmentado pela Inglaterra e França e contou com o apoio das elites monárquicas locais. Foi um período de revolta nos países do Oriente Médio, sobretudo contra o imperialismo franco-britânico e em combate à colonização sionista da Palestina.

O Mandato Britânico da Palestina operou entre 1920 a 1948 com vistas à pilhagem e subtração de territórios e de seus povos, reconfigurando o mapa geopolítico. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, houve um esforço das Nações Unidas e das organizações sionistas para a criação de um Estado judeu. A justificativa seria uma forma de reparação do Holocausto. A Revolução Árabe (1936-1939) foi um marco na resistência e levou a uma longa greve anticolonial, foram seis meses de greve nacional árabe em 1936. Entre 1947 e 1948, aconteceu a Guerra Civil e a Guerra árabe-israelense que culminam na criação do Estado de Israel em 14 de maio de 1948 [1].

Para além da luta armada, existe uma guerra de narrativas que demoniza o povo palestino para gerar uma comoção pública e fomentar o ódio ao povo árabe. Por isso, acho importante documentar visualmente a expropriação de terras que vem ocorrendo desde a criação do Mandato Britânico.

Os 75 anos de apartheid e genocídio do povo palestino são percebidos como um holocausto, e as ações militares de Israel, com apoio dos Estados Unidos, estão sendo nomeadas de nazisionistas. Sabemos que o Oriente Médio, assim como a América Latina e a África, vivemos sob o jugo da política armamentista norte-americana. A diáspora palestina, iniciada nas guerras de 1948 e 1967, causou um enorme deslocamento de pessoas. A Faixa de Gaza é, atualmente, considerada a maior prisão a céu aberto da história mundial. O Hamas não representa a voz e o desejo de todo um povo. O Hamas nasceu da fúria contra quase um século de destruição, tortura, estupros e morte de toda uma população.

Sabemos que os EUA desempenham um papel decisivo nas guerras. Em 2007, das 27 maiores guerras, 20 delas foram financiadas pelos norte-americanos, garantindo, com isso, um lucro de mais de 30 bilhões de dólares com a venda de armas [2]. Em 2022, o valor passou dos 200 bilhões, segundo a Money Times. Decorre daí o interesse do “tio Sam” em manter sob o seu jugo o Sul Global e estar alinhado às grandes potências imperialistas. 

 Neste ano, ao final de outubro, dois casos envolvendo escritoras palestinas chamaram a atenção da imprensa transnacional. Uma delas assassinada brutalmente pelo exército israelense-estadunidense durante um dos bombardeios contra civis na Faixa de Gaza. A outra, morta simbolicamente pelos alemães organizadores da 75ª edição da Feira do Livro de Frankfurt. O terror vivenciado no Oriente Médio e a culpabilização do povo palestino pela mídia hegemônica reforçam a tese de um esforço imperialista para proteger os crimes de guerra perpetrados por Israel-EUA contra o povo palestino. A feira do livro, ironicamente, tem a mesma idade do apartheid e do genocídio palestino, sua atitude mostrou sua face imperialista, racista, machista e ultraviolenta.

No dia 20 de outubro de 2023, o Ministério da Cultura palestino anunciou que a poeta Heba Abu Nada foi uma das vítimas dos bombardeios em Khan Yunis, na Faixa de Gaza. Seu primeiro romance Oxygen is not for the dead (2017) rendeu-lhe o segundo lugar no Prêmio Sharjah de Criatividade Árabe. Ela nasceu em Meca, em 1991, estudou bioquímica na Universidade Islâmica de Gaza e concluiu um curso de mestrado em nutrição clínica. O assassinato da jovem poeta causou uma comoção no mundo das letras, das artes, da cultura ou mesmo entre pessoas com um mínimo de empatia. Nas redes sociais, estamos compartilhando um de seus recentes poemas:

“A noite a cidade é escura,

exceto pelo brilho dos mísseis.

Silenciosa,

exceto pelo som dos bombardeios.

Aterradora,

exceto pela promessa lenitiva da oração.

Tenebrosa,

exceto pela luz dos mártires.

Boa noite!”

As cidades na Faixa de Gaza são escuras, os déspotas cortaram água, luz, fornecimento de alimentos e remédios. É silenciosa. O povo palestino vive em uma prisão a céu aberto há quase um século – nada podem falar ou fazer, o inimigo não dorme. É aterradora, pois, ao viver sob as botas de um tirano e saber do pacto de silêncio internacional, resta-lhes acreditar na justiça divina. Hoje, Heba Abu Nada é mais um nome na história dos mártires de seu povo.

Poeta e novelista palestina, assassinada por um bombardeio sionista, tinha 32 anos e uma vida repleta de poesia pela frente. Assim como o seu povo, ela queria a libertação. Deixou-nos um poema que foi recitado por ela e postado no YouTube durante uma entrevista. É um poema sobre a solidão da/na Palestina. Foi traduzido para o espanhol e está gravado no Twitter de Dani Mayakovski [3]:

Oh, solitarios, todos ganaron sus guerras y tú te quedaste solo, desnudo.

Ninguna poesía, oh Darwish [4], restaurará lo que los solitarios han perdido.

Oh, solitarios, ésta es otra era de ignorancia.

Maldito el que usó la guerra para separarnos y estar juntos en tu funeral.

Oh, solitarios, la tierra es un mercado libre y tu gran país es una subasta aprobada.

Oh, solitarios, nadie nos apoyará, en esta era de ignorancia.

Así que borrad vuestros viejos y nuevos poemas y el llanto.

Oh país, sé flerte.

O sentimento de solidão transformado em poesia pode nos oferecer pistas para entender o isolamento e o apartamento que seu povo vive desde o início do século XX. Diz ela: “Ninguém nos apoiará, nesta era de ignorância”. Em sua página de Twitter é possível ver algumas das imagens que ela compartilhou nos últimos anos e ver a divulgação de seu livro [5]. Trata-se de um arquivo virtual da jovem poeta morta, nestes dias de campanha de genocídio, pela ira militar de Israel-EUA.

A outra poeta que quero trazer à luz desta reflexão é Adania Shibli. Ela nasceu na Palestina em 1974. É PhD pela University of East London na área de Mídia e Estudos Culturais. Estudou, também, em Berlin. Trabalhou na Universidade de Birzeit, na Palestina. É autora do romance Minor detail, escrito originalmente em árabe, publicado em alemão em 2022. A tradução para o inglês rendeu-lhe a indicação aos prêmios National Book Award, em 2020, e Booker Internacional Prize, em 2021.

No dia 20 de outubro de 2023, mesmo dia do assassinato da poeta Heba, Adania Shibli receberia o LIBeraturpreis, prêmio concedido a escritoras do Sul Global por obra publicada em alemão. A cerimônia de premiação que iria homenagear a escritora ocorreria na Feira do Livro de Frankfurt. A homenagem foi cancelada sob o argumento da guerra em Israel, informou a LitProm, associação literária alemã que organiza o prêmio.

O livro foi traduzido para o Brasil pela Editora Todavia. Trata-se de uma obra que aborda a história de uma menina beduína palestina. O cenário é o deserto de Neguev. No verão de 1949, um ano depois do êxodo de Nakba que forçou o deslocamento de mais de 700 mil árabes para promover o Estado sionista de Israel, soldados israelenses atacaram um grupo de beduínos no deserto. A menina foi a única sobrevivente, todo aquele povo foi dizimado. Ela foi sequestrada, torturada e estuprada.

No mesmo dia, 20 de outubro de 2023, as duas poetas são mortas. Uma fisicamente pelos bombardeios do exército de Israel-EUA contra civis. A outra, simbolicamente, por contar a história de seu povo, que há quase um século sofre as consequências da invasão, exílio, tortura, prisão e morte de sua população. Ironicamente, os nazistas da Alemanha de ontem mataram e torturaram judeus, e, hoje, a atitude destes revela o apoio ao genocídio palestino cometido por Israel. A Europa branca, civilizada e limpinha se cala diante da barbárie que é cometida na Palestina desde o século XX e, hoje, usa a retórica do ataque do Hamas. O povo palestino não é o Hamas!

O sionismo e o imperialismo estão promovendo um show de horrores no mês de outubro. A barbárie levou o povo às ruas para pedir que cesse a violência e violação dos direitos humanos em Gaza. No dia 21 de outubro, ao redor do mundo, a multidão tomou às ruas pedindo libertação, reivindicando o direito de um corredor humanitário para resguardar a vida de civis, crianças, mulheres, mães, pessoas idosas, doentes. A ação global gerou a fúria dos militares de Israel-EUA que encenaram um dos piores bombardeios do período. Gaza foi alvejada de norte a sul. Os alvos foram os civis, as crianças, as mulheres, as mães, as pessoas idosas, os doentes, os hospitais. Os protetores dos animais não humanos mostram os horrores que estes seres inocentes estão sofrendo. Seus corpos mutilados espalhados pelas ruas ou soterrados pelos escombros.

A luta global é pelas vidas, não somente do povo palestino, mas da Cisjordânia, do Líbano e, inclusive, do povo de Israel que não pode se opor ao terrorismo de Estado. Não se iluda, o pior terrorista é quem lucra com a venda de armas, quem se ocupa em fomentar guerras para gerar lucro com o sangue inocente. “Nesta era de ignorância”, precisamos abraçar o conhecimento e combater a bestialidade, a desumanidade, a estupidez. No Twitter do Hoy Palestina foi disponibilizada a tradução para o espanhol da última mensagem de Heba em sua rede social, ela escreveu: “Se morrermos, saibam que estamos firmes, e digam ao mundo o nosso nome, que somos pessoas justas, ao lado da liberdade”. Boa noite, Heba Abu Nada! Tua juventude foi ceifada, tua poesia reverbera ao redor do mundo.

Palestina livre do rio ao mar!

Notas:

[1] Dossiê Palestina. Letralivre: revista de cultura libertária, arte e literatura, a. 14, n. 50, Rio de Janeiro, 2009.

[2] Dossiê Palestina. Letralivre: revista de cultura libertária, arte e literatura, a. 14, n. 50, Rio de Janeiro, 2009.

[3] Ela fez referência ao poeta e escritor Mahmoud Darwish (1941-2008). Ele foi um poeta e escritor palestino, nasceu no período do Mandato Britânico. Entre 1961 e 1967, foi preso e torturado pelo Estado Islâmico. Em 1970 passou a viver como refugiado. Foi autorizado a retornar em maio de 1996 para o funeral. O poema de Heba fala dos malditos que usam a guerra para separar o povo e suas famílias e para reunir nos funerais.

[4] A tradução para o espanhol está publicada no Twitter:  https://twitter.com/DaniMayakovski/status/1715894280592453771.

O vídeo original está publicado no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=T65eqU3_NTI&t=33s.

[5] https://twitter.com/HebaAbuNada.

[6] https://twitter.com/HoyPalestina.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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O Estrangulador de Boston

O Estrangulador de Boston

O true crime é um gênero em ascensão na cultura pop. Embora os seus primeiros registros sejam datados da Grã-Bretanha de 1550, as obras têm conquistado espaço em diferentes tipos de mídia nas últimas décadas. Parte do interesse vem do fato de que elas se baseiam em evidências dos crimes, contam com depoimentos de pessoas envolvidas na investigação e, quando possível, com a transcrição dos julgamentos. Dessa forma, as análises são pautadas no material coletado pelos autores e não em impressões, o que contribui para diferenciar o true crime das produções baseadas em fatos reais, nas quais existe margem para interpretação.

Em geral, narrativas têm como ponto de partida um crime que ganhou notoriedade e é comum que elas tenham sido repercutidas pela mídia. Contudo, nem sempre a abordagem é feita de modo responsável porque existe a preocupação com o espetáculo, o que contribui para aumentar a audiência. Infelizmente, nós vivemos em um país que oferece diversos exemplos deste tipo de tratamento mórbido. Talvez, o maior deles seja o caso de Eloá Cristina, visto que a apresentadora Sônia Abrão chegou a falar ao vivo com Lindemberg Alves, o sequestrador que mantinha a sua ex-namorada e uma amiga dela em cárcere privado.

Se saímos do Brasil, a morbidez permanece. Um caso popular é o de Charles Manson, que fundou um culto ao redor da sua figura em meados da década de 1960. A seita, conhecida como Família Manson, atuava na Califórnia e foi responsável pelo assassinato da atriz Sharon Tate, bem como o de outras oito pessoas. Apesar disso, os produtos jornalísticos da época passavam a impressão de glorificar a figura de Manson, tratando a organização da seita e o seu poder de persuasão como características admiráveis. Além disso, boa parte dos conteúdos ignorava porque Charles Manson coopta majoritariamente jovens do sexo feminino com problemas familiares. Não é preciso fazer muito esforço para entender os impactos de uma figura que prometia acolhimento para garotas fragilizadas, especialmente uma que se colocava na posição de messias.

Quando olhamos para as sutilezas de casos como esses, é possível começar a entender um pouco do fascínio que o true crime desperta no público feminino. Esse interesse tem sido alvo de estudos, como o da Civic Science, uma plataforma que analisa hábitos de consumo. De acordo com o levantamento, 18% dos entrevistados têm o true crime como gênero favorito no formato de podcast. O apelo é maior entre membros da Geração Z e passa por uma queda conforme a idade dos ouvintes aumenta, girando em torno de 9% na audiência com mais de 55 anos. Além disso, o estudo revela que o true crime tem mais adesão entre as mulheres: 26% das entrevistadas têm preferência por conteúdo desse estilo. Isso vai de encontro a uma matéria veiculada pelo O Globo a respeito da ascensão do gênero no Brasil. Nessa reportagem, as hosts do Modus Operandi, um podcast com milhões de ouvintes, contaram que 75% do seu público é composto por pessoas do sexo feminino. Seguindo a mesma linha, Rachel Fairburn, do All Killa No Filla, revelou à BBC que entre 80% e 85% dos seus ouvintes são mulheres.

Ambas as matérias servem para ilustrar aspectos interessantes a respeito da presença feminina no true crime e a da BBC cita cinco possíveis motivos pelos quais as mulheres gostam do gênero: medo, compaixão, fascínio pelas motivações, mistérios para solucionar e escapismo. Entre eles, o último se mostra intrigante, mas também tem uma explicação. Durante a pandemia, o Google Trends divulgou que o número de buscas da palavra “terror” triplicou, deixando claro o crescimento do gênero, que é bastante próximo do true crime. Assim, vários sites se interessaram por investigar o que motivou esse cenário e as respostas indicavam que as narrativas funcionavam como um meio de fugir de um contexto que era ainda mais assustador, uma lógica que também pode ser aplicada ao true crime.

Também é interessante comentar a respeito da compaixão, que se parece mais com empatia quando olhada com atenção. Em casos como o de Ted Bundy e Gary Ridgway (ou Green River Killer), as vítimas são do sexo feminino. Logo, as mulheres acabam se colocando no lugar delas com maior facilidade, o que também serve para ilustrar porque o medo é um incentivador do consumo de true crime: se eu posso me tornar uma vítima, é melhor saber reconhecer os sinais do que ser surpreendida. Embora esse senso de segurança seja ilusório, ele torna as mulheres mais vigilantes. Todavia, essas motivações ainda são insuficientes para explicar totalmente o interesse feminino pelo true crime, tanto do ponto de vista da produção quanto do consumo e a matéria do O Globo serve para amarrar algumas pontas soltas.

Para Carol Moreira, uma das apresentadoras do Modus Operandi, quando mulheres produzem conteúdo do gênero existe maior predisposição para compreender as vítimas sem julgá-las. De encontro a isso, a escritora Luiza Lusvarghi comenta a respeito da tendência do true crime ao sensacionalismo, algo minimizado em títulos com assinatura feminina, em especial no que se refere à exploração dos sentimentos, o que pode ser ilustrado pela série Dhamer: Um Canibal Americano. Categorizada pelas famílias das vítimas como imprudente e cruel, ela chegou a colocar em tela uma  cena na qual os atores repetem, palavra por palavra, os depoimentos do julgamento de Jeffrey Dahmer, inclusive o da irmã de um dos jovens mortos pelo serial killer. Além das famílias, a jornalista Anne E. Schwartz, que cobriu o caso em 1991, afirmou que o programa troca a  precisão pela dramaticidade e é pouco fiel aos detalhes do caso que aborda. Curiosamente, essa produção é a segunda série mais vista da Netflix, com mais de 700 milhões de horas assistidas, o que revela um apreço do público geral pela espetacularização de tragédias.

Considerando esses pontos, é possível concluir que grande parte das mulheres que ocupa um espaço na produção de conteúdo de true crime o faz por acreditar que é possível respeitar as vítimas e se ater aos fatos, deixando de lado a necessidade de inflamar o público para conseguir engajamento. E se olharmos para os números conquistados por essas produtoras, essa visão está correta. Em 2019, 11 dos 20 podcasts mais ouvidos do iTunes eram classificados como true crime e sete deles tinham apresentação feminina.

Somado a essa mudança de perspectiva, existe um componente histórico relevante. Para a escritora Patrícia Hargreaves, se não olharmos para o passado dos crimes, a tendência é que sigamos cometendo os mesmos erros. Para ilustrar, ela citou o exemplo de Ângela Diniz, uma socialite morta pelo namorado na década de 1970. Embora o caso não deixasse margem para dúvida quanto à autoria, a defesa de Doca Street aproveitou uma ideia vigente desde o Império para conseguir fazer com que o caráter da vítima fosse julgado ao invés do assassino: o crime passional em legítima defesa da honra, algo. Ainda que o Código Penal não permita mais esse tipo de abordagem, Hargreaves ressaltou que a sociedade ainda enxerga a traição como motivo plausível para o feminicídio. Ou seja, a legislação pode ter mudado, mas a mentalidade permanece a mesma.

Então, é possível afirmar que as narrativas de true crime criadas e consumidas por mulheres são muito mais sobre a sociedade e sobre todos os fatores que possibilitaram a ocorrência dos crimes. Elas são extremamente humanas e fundamentais para a memória coletiva, extrapolando bastante a abordagem padrão da mídia e se distanciando do culto à figura do assassino. Nesse sentido, um exemplo recente que merece destaque é o filme O Estrangulador de Boston (Boston Strangler, 2023), que, apesar de não ser assinado por uma diretora, é conduzido de uma forma que nos faz pensar a respeito desses novos caminhos que o gênero tem seguido depois de se tornar um território feminino.

O primeiro ponto que contribui para isso é a escolha do diretor Matt Ruskin de deixar de lado Albert DeSalvo (David Dastmalchian), o serial killer que matou mais de dez mulheres em Boston entre 1962 e 1964. Ele não recebe mais do que vinte minutos de tela, o suficiente para que a sua identidade seja revelada, bem como alguns fatos inquietantes sobre a sua confissão. Entretanto, DeSalvo não tem maior aprofundamento. Para o diretor, as figuras centrais da história são Loretta McLaughlin (Keira Knightley) e Jean Cole (Carrie Coon), as repórteres que se dedicaram à cobertura do caso. Antes mesmo que a polícia entendesse que os três primeiros crimes do Estrangulador estavam conectados, Loretta foi a responsável por identificar um padrão e apurar os fatos, que posteriormente foram divulgados no jornal Boston Record America. Porém, ainda que a repórter tenha seguido todos os passos necessários para conseguir a sua confirmação, a polícia se recusou a aceitar a teoria por um tempo, o que acabou custando mais vidas.

Assim, a perspectiva feminina serve para expor as diversas camadas de misoginia da sociedade do contexto. Isso começa pela própria redação do jornal, que mantém Loretta confinada na seção de estilo de vida mesmo que ela tenha potencial para mais. As tarefas mais complexas, quase sempre ligadas a casos criminais, são destinadas aos homens, que não parecem interessados em desafiar as normas ou incomodar as autoridades para checar os fatos. Eles estão confortáveis com respostas vagas em nome de uma espécie de camaradagem, ainda que o trabalho de um jornalista seja questionar e incomodar para chegar à verdade. Isso se torna ainda mais claro quando um policial de alto cargo vai até o Boston Record para falar com Jack Maclaine (Chris Cooper), o chefe de Loretta, e afirma que foi um golpe baixo enviar um “rabo de saia” para falar com o detetive que esteve na cena do terceiro crime. Durante esse diálogo, ele também afirma que Jack não poderia ter publicado a reportagem, uma vez que as informações foram fornecidas somente porque o oficial acreditou que conseguiria obter favores sexuais de Loretta.

Embora o machismo seja mais evidente quando pensamos na personagem de Keira Knightley, ele também afeta Jean. Ainda que ela consiga trabalhar com investigações criminais, não está mais perto do que a colega de redação de ter o respeito dos seus pares. Conforme O Estrangulador de Boston avança, conseguimos perceber que boa parte dos jornalistas acredita que Jean somente trabalha nesses casos por causa da sua aparência. A diferença entre as duas repórteres está no fato de que Jean ocupa essa posição há mais tempo e, portanto, sabe lidar com esse tipo de insinuação e com os impactos da carreira na sua vida pessoal, algo que Loretta ainda está aprendendo a administrar. Em um primeiro momento, James (Morgan Spector), o marido da personagem, apoia o seu trabalho no jornal, mas isso muda a partir do ponto em que Loretta começa a ganhar relevância com a investigação do Estrangulador. Uma vez que a foto dela aparece no Boston Record, as coisas tomam um rumo diferente, e ela passa a ser alvo de cobranças que antes não existiam, um cenário potencializado pelo crescimento do caso e do sensacionalismo midiático ao seu redor.

Todos os jornais da região queriam uma fatia das vendas geradas pelo serial killer. Porém, nem sempre havia preocupação em apurar os fatos, e diversas reportagens baseadas em boatos foram veiculadas, espalhando o pânico pelas ruas de Boston. Isso serve para confirmar que o sensacionalismo é uma parte intrínseca do true crime há muito tempo, mas também para ilustrar como as vítimas muitas vezes são ignoradas na cobertura de casos dessa natureza. De um lado, tem-se uma imprensa preocupada em vender jornais às custas da tragédia. Do outro, uma polícia que deseja livrar a própria pele e escapar do tribunal da opinião pública. Porém, ninguém parece se importar em obter justiça para as mulheres que foram mortas pelo Estrangulador. Mesmo a ideia de prendê-lo tem pouco a ver com elas e muito mais com punitivismo, com aplacar a sede de sangue da comunidade e da própria polícia, ridicularizada algumas vezes ao longo da investigação.

Assim, as cenas em que vemos Lorretta e Jean conversando com as famílias das vítimas parecem caminhar na contramão do que produções pautadas em investigações criminais normalmente fazem. Nesses diálogos, percebemos que as jornalistas têm mais interesse em oferecer alento e justiça do que em receber algum tipo de gratificação pelo seu trabalho. A sua principal motivação é manter as mulheres de Boston seguras, visto que a falta de um padrão nas escolhas de vítimas do Estrangulador serve para revelar que qualquer uma pode ser o próximo alvo, independente de idade, raça ou outros marcadores que serviriam para criar uma separação. Dessa forma, nasce um senso de coletividade e a certeza, infelizmente atual, de que as mulheres só têm umas às outras quando enfrentam um mal que toca somente o sexo feminino.

Nesse ponto, é importante tomar um pouco de distância do filme para falar a respeito de como ele foi recebido por alguns veículos de imprensa. Avaliado com 2 de 5 estrelas do The Guardian, O Estrangulador de Boston foi descrito como sem emoção dramática e tensão. O texto do jornal também afirma que diretores como Jonathan Demme ou David Fincher poderiam ter feito um trabalho melhor com este material, mas Matt Ruskin prefere se manter “do lado certo do gosto contemporâneo”. É desnecessário dizer que a crítica foi escrita por um homem, Peter Bradshaw, dada a incompreensão das ideias apresentadas e dos motivos para essa “frieza”. Além disso, somente um homem poderia acreditar que não existe tensão suficiente em ver duas mulheres enfrentando praticamente sozinhas um serial killer. E apenas um homem seria capaz de afirmar que O Estrangulador de Boston não tem elementos capazes de despertar “calafrios de medo”.

Isso porque o crítico falha em perceber que o horror do longa reside em elementos muito mais sutis do que a tradicional exploração das mortes e da figura do assassino. Conforme Loretta e Jean investigam o caso do Estrangulador, elas se deparam com diversas possibilidades de criminosos além de Albert DeSalvo. Inclusive, ainda que ele tenha confessado a autoria, alguns crimes simplesmente não poderiam ter sido cometidos por ele, que estava preso quando eles ocorreram. Assim, O Estrangulador de Boston trabalha com a ideia de que o serial killer não é uma pessoa, mas uma mentalidade misógina, algo que permanece atual quando consideramos que mais de 50 anos se passaram desde esse caso e nós convivemos com a existência de incels, red pills e outros grupos que incentivam o ódio às mulheres. Para qualquer pessoa do sexo feminino, essa ideia por si só é aterrorizante. Porém, um cinema que explora a possibilidade de que mulheres vítimas de crimes sejam tratadas com respeito ainda é algo incômodo para muitos homens.

Em partes, isso acontece porque a ideia de que filmes devem servir exclusivamente como entretenimento é muito presente na sociedade. E o interesse de alguns grupos pelo true crime, como sugeriu a BBC, está ligado à solução dos mistérios. Portanto, os elementos que despertam a curiosidade são fundamentais para uma parcela do público. Assim, quando o foco é um novo olhar sobre o gênero, especialmente um olhar centralizado em mulheres, o incômodo masculino surge porque, junto com a nova perspectiva, vem a ideia de que transformar as mortes em espetáculo visual é desrespeitoso. Logo, escolher um caminho que se desviar do sensacionalismo e traz outras possibilidades de abordagem para um caso já extensivamente explorado é algo que rende uma recepção, no mínimo, ambígua. Porém, essa reação é algo que serve para ilustrar porque as mulheres precisam continuar tomando os seus espaços nesse tipo de discussão e produção de conteúdo. Como O Estrangulador de Boston mostra com eficiência, é somente quando nós contamos as nossas próprias histórias que passamos a ser vistas como mais do que corpos violados nas tramas criadas pelo patriarcado.

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Amanda Guimarães – Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), atua há mais de 10 anos como corretora de textos e redatora e escreve sobre cultura em vários sites pela internet afora desde 2012. Obcecada por cinema de horror, gatos e música dos anos 90, curte viajar para festivais e ficar em casa rodeada de suas gatas.

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