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Antropornografia na obra de Carol Adams

Antropornografia na obra de Carol Adams

Mesmo se estivermos famintas, não somos pobres de experiência.

Gloria Anzaldúa

Uma das mais importantes autoras que estuda a relação do sexismo e do especismo é a feminista vegana Carol Adams. Ela cunhou o termo “antropornografia”, que significa mostrar animais pedindo para serem comidos. As relações entre mulher e natureza têm raízes na filosofia humanista e recebe grande apoio das ciências modernas, principalmente da psicanálise. Ecofeministas como Bila Sorb, Vandana Shiva e Maria Mies apontam que existe uma íntima ligação entre o paradigma humanista e a cultura patriarcal, discussão também presente na obra de várias feministas, dentre elas de Donna Haraway. Essa ligação manifesta-se na obsessão pela dominação e controle tanto sobre as mulheres quanto sobre a natureza e todas as outras espécies.

Por especismo se entende a ideia de promover a espécie humana como superior a todas as outras e, além disso, deliberar sobre todas as outras. Incluindo o direito sobre a vida e a liberdade. É a ideologia que justifica a exploração de uma espécie sobre as demais. Essa terminologia é assim expressa nos Cadernos Antiespecismo (Les Cahiers Antispécistes: Rèflexion et action pour l´égalité animale), criados na década de 1990 na França:

O especismo é para a espécie o que o racismo e o sexismo são respectivamente para a raça e para o sexo: a vontade de não levar em conta (ou de levar menos em conta) os interesses de alguns para o benefício de outros, alegando diferenças reais ou imaginárias, mas sempre desprovidas de conexão lógica com aquilo que elas são consideradas. Na prática, o especismo é a ideologia que justifica e impõe a exploração e o uso dos animais pelos humanos com meios que não seriam aceitos se as vítimas fossem humanas.

Um dos marcos das mudanças em relação ao tratamento dado aos animais foi a promulgação da Declaração Universal de Direitos dos Animais pela UNESCO em 15 de outubro de 1978, em Paris. O patriarcado influenciou nossas ideias mais fundamentais sobre a natureza humana. Nessa relação as mulheres estariam mais próximas dos animais, por isso são, na nossa cultura, associadas a nomes como vaca, galinha, égua, potranca, cachorra.

Para Carol Adams, as pessoas que comem animais estão se beneficiando de um relacionamento dominante/subordinado. Nossa cultura encoraja a invisibilidade das estruturas físicas, permitindo assim uma completa negação da individualidade animal, até que isso não seja visto como subordinação. A carne é percebida como a razão ontológica para a existência dos animais, indica que eles existem para serem comidos. Para proposta ética de cuidado feminista, uma das coisas de que precisamos é questionar a ordem da racionalidade ocidental norteada por desdobramentos filosóficos e científicos misóginos. Por isso é necessário problematizar o tema nos quadros de uma epistemologia feminista, como propõe a bióloga e feminista vegana. Não vamos quebrar paradigmas usando teorias que negam e invisibilizam as mulheres e os animais, por isso trabalhamos com as teorias feministas contemporâneas. É preciso questionar a objetividade dos paradigmas dominantes que coisificam mulheres e animais.

Conforme Adams, a antropornografia é um dos alicerces do patriarcado. Assim é que para essa autora comer carne exercita as representações de dominação/subordinação. A carne é a reinscrição do poder masculino em cada refeição. Se carne é um símbolo de dominância masculina, então a presença da carne proclama o desempoderamento das mulheres. Na capa do seu livro As políticas sexuais da carne há uma ilustração que apareceu originalmente em uma toalha de praia em 1969, mostrando uma mulher dividida em cortes de “carne” como a imagem dos cortes da carne de vaca, onde se lia o subtítulo “Qual é o seu corte?”. Seu livro analisa imagens publicitárias em que os animais abatidos para o consumo humano são representados como “felizes” em sua condição de alimento para a espécie humana. Outras imagens de alimentos derivados de carne associam o corpo feminino como comida.

Outra importante estudiosa na área é Naama Harel, da Universidade de Israel. Segundo a autora, o mito de que os homens “necessitam” da proteína derivada da carne coloca-os à frente da problemática da exploração animal e das questões ambientais, como a devastação das florestas para a criação de gado.

Adams concorda que a fonte desse mito reside numa progressão da importância dada do papel do gênero masculino na produção de alimentos. Ambas concordam que, quanto mais uma sociedade dependia de recursos alimentares vegetarianos, mais efetiva era a importância do papel econômico das mulheres. Para ambas, a carne representa um poder simbólico. A caça sempre foi um problema comum entre os homens, tanto que ainda hoje é considerado um hobby para os homens endinheirados que pagam fortunas para os safáris de caça aos elefantes e outras espécies em vias de extinção. Por outro lado, a caça, também, representa a dominação dos homens sobre as mulheres.

Naama Harel argumenta que os homens falam, representam e tratam as mulheres como caça e assim realizam metaforicamente a dominação. A própria terminologia representa uma ordem hierarquizada, ordenada sequencialmente assim: homens, mulheres e, por último, animais. Nessa ordem, os homens assumem um duplo significado, como os membros da espécie humana e como os membros do gênero masculino. Enquanto categoria, ela é vista como oposta aos membros da espécie feminina e aos animais, colocando-os em aproximação. Assim: “(1) homens ≠ mulheres, (2) homens ≠ animais, (3) mulheres = animais”.

Ela nos indica algumas metáforas, o sexo não raras vezes é denominado de prazeres da carne, luxúrias da carne, fome sexual. Quando um homem procura uma mulher para uma noite, ele é visto como o caçador, sua arma é o falo, símbolo da masculinidade e da virilidade. Se a mulher se dá facilmente, então ela é a presa fácil. Por isso, muitos eventos em que o corpo feminino é destaque são nomeados de mercado de carnes, açougue. A antropornografia indica que mulheres e animais estão na base da economia que é movida pela indústria do sexo, pelo mercado de carnes e de corpos.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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