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Efigênia Rolim fez do lixo a arte de (en)cantar

Efigênia Rolim fez do lixo a arte de (en)cantar

“Vitrine, joias de ouro eu virei prum
Outro lado
Descobri meu tesouro foi no lixo
Reciclado”
Efigênia Rolim [1]

Efigênia Rolim é multiartista, escreve versos, cria objetos, histórias, interpretava e fazia apresentações nas ruas. Nasceu em 1931, no município de Abre Campo (MG). Em 1965, se mudou para o norte do Paraná, e chegou a Curitiba em 1971. Mudou-se com os filhos e o marido, enfrentou muitas dificuldades devido a problemas financeiros, mas nunca desistiu, fez da vida um ato de resistência através da arte. Foi viver na periferia e tornou-se catadora de lixo. Como diz em seus versos que abrem este texto, fez do lixo a sua arte.

Em 1991, aos 60 anos, participou da primeira exposição de arte. Depois disso, esteve presente em muitas outras exposições, além estar nos livros, e ter participado de desfile de moda, filmes, programas de TV, congressos, feiras, dentro outros eventos. Eu a conheci na Universidade Estadual de Maringá (UEM), onde ela estava participando, como convidada, de um encontro de Educação Ambiental. Não há como esquecer uma presença forte e cativante como de Dona Efigênia!

Dinah Ribas, autora do livro sobre a artista, A viagem de Efigênia Rolim nas asas do peixe voador (2012), relata que Efigênia não tem preguiça de transformar qualquer objeto descartado em obra de arte. Sua obra é imensa e reflete uma vida intensa e repleta de afetos e imaginação.

Desde 2022, Efigênia vive no Asilo São Vicente de Paulo. Ela apresenta algumas limitações na saúde, vive em uma cadeira de rodas e faz uso constante de oxigênio. Ela fez da arte uma forma de viver e se reconstruir. Com uma história de vida peculiar e intensa, a artista, que é conhecida por muitos como Dona Bala ou Rainha do papel, teve uma enorme contribuição para a história, cultura e arte brasileira.

Criou muitos personagens, uma delas é a Tibúrcia. Com essa personagem, ela canta: “Ah, Tibúrcia. Se você tem uma moedinha e quer dela se livrar, bota aqui nessa botinha que Deus vai te abençoar, que Deus vai te abençoar. Quando eu era criança era cruzeiro, mas hoje eu tenho a esperança de ganhar muito dinheiro. Ah, Tibúrcia, o que é que nós vamos fazer, se nós não trabalhar, o que é que nós vamos comer” [2]. As personagens ganhavam vida e narrativas, muitas vezes, cantadas e interpretadas por ela nas ruas de Curitiba.

A trajetória dessa senhora no campo da arte iniciou de forma inesperada e, ao mesmo tempo, improvável, por meio do “mítico encontro dela com o papel de bala, em 1991, na rua XV, ao lado do Bondinho, foi um acontecimento magico e emblemático, que mudou os rumos da sua vida” [3]. O papel de bala junto com diversos outros materiais recicláveis são materiais de destaque nas produções da Rainha do Papel, que, junto com as suas histórias e seu jeito próprio de tecer as narrativas, se entrelaçam em uma forma singular de expressão e construção de novas formas de si.

Suas produções se desenvolvem a partir de uma poética do cuidado do afeto sobre tudo aquilo que constitui o mundo em que reside: “A força expressiva de Efigênia se condensa na presença, no corpo escultórico, nas tramas que inventa e que dão a impressão de história sem fim… Ela cria figurinos, cenários, instrumentos do fazer musical; em suas mãos, o recorte da caixa de ovos transforma-se num curioso e multicolorido par de óculos que compõem sua vestimenta assemblagê, uma combinação de pedaços de tecido, papéis multicoloridos e objetos os mais diversos” [4].

Junto com a história oral, a poesia e a música entrelaçadas com suas produções plásticas, Efigênia propõe um modo de existência que tenta subverter as estruturas de opressão do capitalismo. A partir do ato de reconfigurar a matéria, ela cria novos sentidos e dá vida àquilo que muitos não viam mais utilidade. Dona Bala, mais que um ato sustentável, cria laços entre as pessoas e as suas obras. Ela atua despertando a consciência sobre como as nossas ações interferem diretamente no meio em que vivemos, criticado o consumismo e produção de lixo abusiva.

No dia 10 de dezembro de 2022, o Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC-PR) recebeu uma exposição inédita de Efigênia Rolim e Hélio Leites, intitulada Os significadores do insignificante. O projeto teve autoria de Estela Sandrini, com curadoria de Dinah Ribas e Maria José Justino, na qual foram apresentadas cerca de 260 obras, muitas inéditas, oriundas de acervos institucionais e particulares. 

A exposição celebrou a vida e obra de Efigênia Rolim e Hélio Leites, artistas de grande relevância nas artes, conhecidos pela originalidade de suas criações. Eles utilizam matérias-primas em comum: o resíduo e a sucata, transformados em arte, poesia, alegria e histórias, seja por meio de um papel de bala ou de uma lata de atum. Ambos estiveram presentes na abertura da mostra, que contou com a presença do contador de histórias Carlos Daitschman, vestido com roupas produzidas por Efigênia Rolim [5].

Dona Efigênia, apesar das dificuldades impostas pela fome, pela miséria e pelo trabalho árduo, foi capaz de criar uma arte transformadora, brincalhona. Quem a conheceu não esquece dela interpretando as suas histórias, pulando, rolando e encantando as pessoas nas ruas. Nesta época de final de ano, quando o consumismo assume proporções assustadoras, vale lembrar desta artista genial, que fez do lixo a arte de (en)cantar.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências  

[1] MON. Museu Oscar Niemeyer. Efigênia Rolim: rainha do planeta. Disponível em: https://www.museuoscarniemeyer.org.br/educativo/programas/acesse-para-perceber/[category]/luzmateria18. Acesso em: 12 dez. 2024.

[2] SCHIONTEK, Barbara. Rainha do Papel de Bala: aos 92 anos, Efigênia Rolim cria ‘desenhos encantados’. Tribuna, 8 mar. 2024. Disponível em: https://www.tribunapr.com.br/noticias/curitiba-regiao/rainha-do-papel-de-bala-aos-92-anos-efigenia-rolim-cria-desenhos-encantados/. Acesso em: 12 dez. 2024.

[3] PINHEIRO, D. R. A viagem de Efigênia Rolim nas asas do peixe voador. Curitiba: Editora do Autor, 2012, p. 59.

[4] PINHEIRO, D. R. A viagem de Efigênia Rolim nas asas do peixe voador. Curitiba: Editora do Autor, 2012, p. 31.

[5] PARANÁ. Secretaria de Cultura. Vida e obra de Efigênia Rolim e Hélio Leites são celebradas em nova mostra no MAC-PR. Agência estadual de notícias, 30 nov. 2022. Disponível em: https://www.aen.pr.gov.br/Noticia/Vida-e-obra-de-Efigenia-Rolim-e-Helio-Leites-sao-celebradas-em-nova-mostra-no-MAC-PR. Acesso em: 12 dez. 2024.

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Bertha Lutz, sufragista brasileira

Bertha Lutz, sufragista brasileira

Bertha Lutz nasceu na cidade de São Paulo, era filha da inglesa Amy Marie Gertrude Fowler – enfermeira voluntária da Colônia de Leprosos de Molokai, nas ilhas do Havaí, e, mais tarde, fundadora de diversas obras sociais, inclusive as primeiras escolas noturnas para trabalhadores e aprendizes e a escola diurna para pequenos vendedores de jornais – e do suíço Adolpho Lutz – microbiologista radicado no Brasil, iniciador da medicina tropical e zoologia médica no Brasil. Seus estudos primários foram realizados no Externato Madame Ivancko, situado no Largo da Liberdade; e os estudos secundários foram iniciados em São Paulo e concluídos em Paris.

Em 1918, finalizou sua formação em Licenciée em Sciences, pela Faculdade de Ciências na Universidade de Paris (Sorbonne), que abrangia botânica, zoologia, embriologia e química biológica, formando-se em Ciências Naturais e especializando-se em anfíbios anuros, subclasse que inclui os sapos, as rãs e as pererecas. Voltou para o Brasil após a conclusão da graduação, em 1918, e começou a trabalhar como tradutora no setor de Zoologia do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, onde seu pai trabalhava.

Durante sua permanência na Europa, tomou conhecimento do movimento sufragista. No Brasil, dedicou-se para que as mulheres tivessem direito à educação, ao trabalho, ao voto e aos direitos civis. Participou da Associação Brasileira de Educação por perceber a necessidade da educação para ambos os gêneros como caminho para o desenvolvimento das políticas educacionais no Brasil. Foi cientista, líder feminista e política, e teve sua atuação reconhecida internacionalmente – em prol da emancipação feminina, pela educação feminina, pelo voto feminino, por mudanças na legislação trabalhista – à frente da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, que dirigiu por mais de 50 anos.  

Um dos trabalhos mais conhecidos da historiadora feminista Raquel Sohiet diz: “Bertha Lutz é consagrada cientista, com inúmeros trabalhos publicados no Brasil e no exterior sobre biologia e herpetologia. Sua última obra, intitulada Brazilian Species of Hyla, foi editada pela Universidade do Texas” [1]. Ela foi uma cientista de campo e laboratório, além de se especializar em organização de museus educativos e se formar em Direito para entender e reivindicar os direitos das mulheres que, no contexto brasileiro daquele momento, era muito restritivo – por exemplo, o casamento dava aos homens o direito de não permitir que a esposa trabalhasse caso entendesse que as atividades do lar estavam sendo prejudicadas, dentre outros fatores que limitavam a vida das mulheres e impediam seu crescimento intelectual e profissional.

Em 1919, junto com Maria Lacerda de Moura e outras mulheres, fundou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher. Em 1922, a Federação Brasileira para o Progresso Feminino foi criada após o retorno de Bertha ao Brasil. Ela havia sido a representante brasileira na Assembleia Geral da Liga das Mulheres Eleitoras, realizada nos Estados Unidos, onde foi eleita vice-presidenta da Sociedade Pan-Americana. A Federação foi criada para substituir a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher e para encaminhar a luta pela extensão de direito de voto às mulheres. O direito de voto feminino foi estabelecido por decreto-lei do presidente Getúlio Vargas apenas dez anos depois, em 1932.

No artigo Movimento feminista e educação: cartas de Maria Lacerda de Moura para Bertha Lutz (1920-1922), as autoras abordam a relação gentil entre as duas escritoras e estranham um fato: “Embora as cartas demonstrem o entusiasmo de Maria Lacerda de Moura em prol da luta pela emancipação feminina e a admiração por Bertha, seu nome não aparece entre as fundadoras da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino em 1922” [2].

A afinidade entre ambas teve um tempo curto, quando, em 1922, Maria Lacerda rompeu com o movimento feminista por entender que o direito ao voto e aos estudos não alcançava as reivindicações das mulheres operárias [3]. Enquanto isso, o trabalho de Bertha ganhou grande repercussão e ela foi delegada oficial do Brasil nos Congressos Pan-americanos Femininos em Baltimore (1922), em Washington (1925), em Roma (1923) e em Berlim (1929).

A cientista brasileira começou a se destacar na busca por igualdade de direitos jurídicos entre os gêneros ao se tornar a segunda mulher a ingressar no serviço público brasileiro, após ser aprovada no concurso do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 3 de setembro 1919, para o cargo de secretária. Foi a segunda mulher a participar de um concurso para cargo público federal, classificada em primeiro lugar. Importante ressaltar que ela acionou a justiça para garantir o direito de realizar o concurso público, pois, na época, era vedada a participação das mulheres, porém já havia o precedente quando, em 1918, Maria José de Castro Rebello Mendes prestou concurso público e ficou em primeiro lugar vindo a ser a primeira diplomata brasileira e a primeira mulher a ingressar na carreira pública via concurso.

Além da atuação política, ela teve uma marcante presença no campo educacional: escreveu uma proposta para a educação das mulheres indígenas; conquistou o direito à admissão de meninas no externato do Colégio Pedro II, uma das instituições de ensino mais tradicionais do Brasil, fundada no período do Império e existente ainda hoje. Além disso, ela conseguiu apoio do Ministério da Agricultura para realizar um estudo sobre a difusão dos conhecimentos domésticos e agrícolas junto à população camponesa. Bertha considerava importante a realização de estudos sobre a produção agrícola para a organização de cooperativas femininas.

Para tal, ela viajou para os Estados Unidos, em 1923, e para a Bélgica, em 1929, com a intensão de analisar as experiências desses países com relação à educação doméstica agrícola. Em 1923, o governo belga prestou homenagem à Bertha Lutz e deu a ela um prêmio da ordem real pela relevância de seus estudos na área e serviços prestados à agricultura. Em sua carreira, ela publicou mais de 30 artigos, em periódicos nacionais e internacionais, sobre sua pesquisa dos anfíbios anuros.

Foi colaboradora na criação da Associação Brasileira de Educação, em 1924. Em 1929, Bertha e outras integrantes da Federação Brasileira para o Progresso Feminino criaram a União Universitária Feminina, que em 1961 passou a se chamar Associação Brasileira das Mulheres Universitárias. Uma das metas do grupo era incentivar o estudo superior entre a população feminina. Ela também participou da União Profissional Feminina, da União das Funcionárias Públicas e da Liga Eleitoras Independente, em 1932. Foi membra da Sociedade Internacional de Mulheres Geógrafas, com sede em Washington, fez parte da diretoria da Aliança Internacional pelo Sufrágio Feminino e Igualdade Política dos Sexos, com sede em Londres. Foi membra da Comissão Consultiva sobre o Trabalho da Mulher – do Bureau Internacional do Trabalho, com sede em Genebra – e do Museu Americano de História Natural, de Nova York [4].

Dentre seus muitos feitos, cumpre destacar seu pioneirismo na defesa da preservação ambiental e luta pelo trabalho do cooperativismo rural para as famílias de pequenas áreas. Foi uma intelectual e ativista de grande envergadura, viveu na França, nos Estados Unidos e atravessou continentes buscando parcerias e novos conhecimentos. Faleceu aos 82 anos no dia 16 de setembro de 1976, no Rio de Janeiro.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] SOIHET, Rachel. O feminismo tático de Bertha Lutz. Florianópolis: Editora Mulheres; EDUNISC, 2006. p. 44.

[2] MARTINS, Ângela Maria Souza; COSTA, Nailda Marinho. Movimento feminista e educação: cartas de Maria Lacerda de Moura para Bertha Lutz (1920-1922). Revista Contemporânea de Educação, v. 11, n. 21, p. 211-229, jan./jul. 2016.

[3] LESSA, Patrícia. Amor e libertação em Maria Lacerda de Moura. São Paulo, Editora Entremares, 2020.

[4] RAGO, Margareth. As mulheres na historiografia brasileira. In: SILVA, Zélia Lopes da (org.). Cultura histórica em debate. São Paulo: UNESP, 1995.

Outras fontes:

ABE. Atas da Associação Brasileira de Educação. Disponível em: http://www.abe1924.org.br/. Acesso em: 15 out. 2024.

Museu Virtual Bertha Lutz. Disponível em: http://lhs.unb.br/bertha/. Acesso em: 15 out. 2024.

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Nós somos Pachamama!

Nós somos Pachamama!

A arte que ilustra este texto é de Olivia Marie e trata-se de uma representação de Pachamama. Na cultura Inca, ela era a Mãe Terra, a Grande Deusa, a divindade suprema. Ela está presente em diferentes civilizações andinas, tais como Bolívia, Peru, Chile, Colômbia, Equador e, até mesmo, Argentina. Pachamama não é somente o solo, a terra, ela provê a vida. É a responsável por manter o planeta em harmonia. Pachamama é a vida planetária, está ligada à terra e à fertilidade, aos nascimentos, à maternidade e à proteção de suas crias, que são os animais, as plantas, as águas, os minerais, tudo que vive e respira neste planeta.

O termo, de origem quéchua, refere-se à figura da maternidade que é mamapacha que engloba o tempo, o espaço, a terra, o divino, o sagrado. Ela é a criadora de tudo, é descrita como serena, protetora, generosa e acolhedora, mas Pachamama pode se enfurecer ao ser ferida, se não houver a oferenda, se não houver a gratidão, se ela sofrer agressões proferidas às suas crias. Nesses casos, as consequências são doenças, tempestades, furações, fome, morte e destruição. Gaia, em outras mitologias, representa a Mãe poderosa que pode tanto amamentar e nutrir como destruir e exterminar. Em diferentes panteões existe uma representação da Terra como a Grande Mãe.

Na mitologia indígena brasileira se diz que o “céu vai cair na nossa cabeça”. A profecia é uma metáfora narrada pelo xamã Davi Kopenawa, líder Yanomami, que significa que a destruição das florestas representa a devastação da vida neste planeta. Sem as florestas, a água fica escassa, a biodiversidade se perde e os animais morrem de doenças, fome ou falta de água potável. Inclusive o animal humano, que é o responsável pela terra arrasada.

Neste mês, quero fazer uma reflexão sobre o que temos feito com esta Grande Mãe conhecida como Terra. A pegada humana no planeta é profunda e deixa um rastro de sangue e de destruição. São as mineradoras poluindo rios e transformando tudo ao redor em lama tóxica, são as plantações de grãos transgênicos regados a veneno e a criação de gado os líderes em destruição de nossas reservas naturais. O agronegócio é morte e destruição em massa.

Rachel Carson (1907–1964) foi pioneira na denúncia dos desmembramentos que a Revolução Verde traria e o modo negativo que afetaria o globo terrestre, causando morte e devastação, não somente humana, mas de várias espécies dos reinos animal, vegetal e mineral. Ela pesquisou os efeitos deletérios dos pesticidas sintéticos na natureza e, sobretudo, nos animais humanos e não humanos. Primavera silenciosa foi uma obra retumbante, chamou a atenção de ecologistas, empresários do agronegócio e ganhou grande repercussão por sua característica de denúncia e por sua potência poética. Tanto a escritora quanto a editora foram ameaçadas de morte graças ao tom de protesto de seu livro. Ele foi traduzido para mais de 50 países e, geralmente, é citado como pioneiro nos estudos ecológicos [1].

O Brasil é terra coronelista e está longe de ser um modelo de desenvolvimento. Larissa Mies Bombardi é a autora do livro Agrotóxicos e colonialismo químico [2]. Sua obra rendeu-lhe ameaças de morte e perseguição à sua família. Ela teve que se exilar em função das intimidações criminosas. No Brasil, os criminosos ficam protegidos e as vítimas saem do país com medo da morte que espreita em cada esquina ou mensagem virtual. Seu livro propõe que existe um colonialismo químico. O Sul Global foi transformado em uma máquina de produzir grãos, carne, celulose, cana-de-açúcar e outras commodities para o comércio internacional. Esta máquina funciona com sementes transgênicas, fertilizantes químicos e agrotóxicos vendidos pelo Norte Global, mas seu uso é proibido em grande parte dos países fornecedores.

O modelo químico-dependente imposto pelo agronegócio coloca em risco a segurança, a soberania alimentar e nutricional, a biodiversidade, a justiça social e ambiental no Sul Global. O exílio imposto à autora é a prova viva de que o agronegócio é morte e devastação. Milhares de espécies de plantas e animais não humanos são sacrificados para que o Sul Global continue produzindo lucros para as grandes corporações globais.

Neste mês de setembro, o Brasil está em chamas, em muitos locais o fogo é provocado pelos homens, jagunços, capangas e cupinchas de coronéis, que estão sendo presos, enquanto isso os mandantes seguem impunes. O ano iniciou com a devastação do Rio Grande do Sul. Foi uma das piores enchentes já registradas no país. A imagem era de terra arrasada. Milhares de pessoas ficaram sem suas casas, seus animais, pessoas e plantas morreram levados pelo mar furioso de lama e de lixo.

Ao redor do mundo a destruição está anunciada. Brasil e Portugal em chamas, sendo que, no Brasil, grande parte dos incêndios são criminosos e, em muitos casos, cometidos para favorecer a grilagem de terra para o agronegócio (para a “boiada passar”). O Deserto do Saara, uma das regiões mais secas do mundo, está inundada e com chuvas torrenciais. Polônia, Áustria, República Checa, Hungria, Romênia e Eslovaquia estão sofrendo com enchentes devastadoras e já registram mortes. É a resposta de Pachamama ao pacto de destruição causado pelo capitalismo e pelo patriarcado. A sexta extinção em massa coloca em risco a vida humana. Todas as catástrofes são consequência do que temos feito com a vida na Terra, onde as coisas se sobrepõem à vida. Muitas pessoas estudam, trabalham e compartilham propostas para uma existência e trabalhos sustentáveis. Para uma virada de chave necessária.

Ana Primavesi revolucionou a agronomia, sobretudo na área de agroecologia. Para ela, lutar pela terra, pelas plantas, pela agricultura significa lutar pela vida, inclusive a nossa. Ela foi pioneira no estudo do solo como organismo vivo, afirmando que os solos são feitos de matéria viva e, portanto, devem estar em harmonia com o restante do ecossistema. Solos, seres humanos, água, ar, plantas, animais necessitam de equilíbrio e harmonia. Ela afirma: “Se as pessoas não conservarem as características do ambiente que permitem a vida saudável […] se os lixos e dejetos não forem minimizados e reciclados ou convenientemente tratados, nossa vida se tornará um suplício ou mesmo impossível. A escolha é nossa” [3].

Pesquisadoras e ativistas como Maria Mies e Vandana Shiva abordam, desde os anos 1990, as alternativas ao modelo agroindustrial e predatório. Em sua obra Ecofeminismo, elas diferenciam a subsistência e o desenvolvimento. O conceito de subsistência está relacionado ao ato de conservar, de manutenção e de permanência. O segundo parte de um modelo capitalista, patriarcal, competitivo e fundamentado na autorização simbólica que as classes favorecidas possuem para espoliar os povos, realizar grilagem de terras, pilhagem de bens e de matéria-prima, escravização de pessoas para trabalhos degradantes. O conceito de subsistência está, para as autoras, vinculado às práticas ecológicas enquanto o desenvolvimento diz respeito aos interesses econômicos, que colocam o lucro acima da vida. O Sul Global produz a riqueza e a mão de obra barata que sustenta o Norte Global. Nesse sentido, as autoras apresentam algumas soluções através de exemplos de práticas de cuidado com a terra e sustentabilidade. Os povos indígenas e a conservação da biodiversidade, a agroecologia, a forma de produção do Movimento sem Terra são alguns destes exemplos [4].

Acredito que uma proposta ecovegana [5], enquanto modo de vida, seja uma das alternativas para minimizar os danos causados pela industrialização, pelo agronegócio e pelo capitalismo. Não é mais possível pensar as questões ecológicas sem olhar de forma crítica para a produção industrial, para a devastação predatória que causa um grande impacto ambiental. Não é mais possível negar o sofrimento e a dor causada às outras espécies, seja para produção de alimentos e de produtos variados, para diversão humana ou mesmo para exploração dos recursos naturais. Hoje existem vários veganismos. O veganismo popular é aliado da ecologia e da sustentabilidade. É necessário que o veganismo não se dobre ao capitalismo e, em consequência, acabe por deslocar as outras espécies do ecossistema. O veganismo está muito além de um mero debate com relação à alimentação. Sua grande potencialidade revolucionária está em ver, pensar, sentir e agir com as outras espécies de forma integrada à vida planetária. A Terra é a nossa casa maior, somos parte dela. Dependemos dela, não o contrário. Somos um corpo-território que não existe fora desta relação. Nós somos Pachamama!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] CARSON, Rachel. Primavera silenciosa. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1969. p. 12.

[2] BOMBARDI, Larissa Mies. Agrotóxicos e colonialismo químico. São Paulo: Elefante, 2023.

[3] PRIMAVESI, Ana. A convenção dos ventos: agroecologia em contos. São Paulo: Expressão Popular, 2016, p. 10.

[4] MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021.

[5] LESSA, Patrícia. Rumo ao ecoveganismo! Jus Animalis, 3 out. 2023. Disponível em: https://jusanimalis.com.br/artigos/rumo-ao-ecoveganismo. Acesso em: 18 set. 2024.

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A Olimpíada de Paris tem rosto de mulheres pretas

A Olimpíada de Paris tem rosto de mulheres pretas

Os Jogos Olímpicos de Paris foram realizados entre os dias 26 de julho a 11 de agosto de 2024. Foram mais de 10 mil atletas distribuídos entre 48 modalidades esportivas. A abertura oficial dos jogos foi realizada pela primeira vez fora de um estádio. A cerimônia aconteceu no Rio Sena, as comissões dos diferentes países desfilaram em barcos. A delegação da Argélia chamou a atenção mundial ao prestar uma homenagem aos manifestantes argelinos mortos nos anos 1960. Naquele contexto, havia uma repressão aos argelinos que viviam na França. No dia 17 de outubro de 1961, durante uma manifestação em Paris contra o toque de recolher imposto aos argelinos pelo governo francês, ocorreu uma repressão violenta. Mais de 100 argelinos foram mortos, com alguns sendo arremessados no rio Sena. Os protestos ocorreram durante a Guerra de Independência da Argélia, que ocorreu entre 1952 e 1962. O país do Norte da África era colônia francesa. Por isso, a delegação de atletas jogou flores no Rio Sena, em memória aos mortos pela repressão policial francesa.

O evento olímpico foi marcado por protestos contra o genocídio cometido por Israel contra o povo palestino e pela denúncia da atleta do Congo. A boxeadora Marcelat Sakobi, da República Democrática do Congo, chamou a atenção com um gesto simbólico após ser derrotada nos Jogos Olímpicos. A lutadora denunciou a violência que está ocorrendo em seu país através de uma expressão: ela colocou a mão na frente da boca e os dois dedos na cabeça simbolizando uma arma. Foram dias de luta dentro e fora dos estádios, ginásios e centros desportivos. Foram dias para mostrar ao mundo as lutas políticas de cada nacionalidade.

No Brasil, as mulheres fizeram história. Pela primeira vez, elas conquistaram mais medalhas do que os homens. Das 20 medalhas brasileiras, 12 foram conquistadas pelas atletas, 7 por homens e 1 de equipe mista. Foram o total de 3 medalhas de ouro, 7 de prata e 10 de bronze [1]. As mulheres pretas mostraram ao mundo que não estão para brincadeira, foram maioria no pódio.

As medalhistas de ouro foram todas mulheres: Beatriz Souza, na categoria +78Kg no judô; Rebeca Andrade, na ginástica artística; e a dupla Ana Patrícia e Duda, no vôlei de praia. A dupla do vôlei foi a escolhida para levar a bandeira do Brasil na festa de encerramento dos jogos. Nos esportes coletivos as atletas brasileiras se destacaram. O futebol feminino conquistou a medalha de prata e o vôlei feminino levou a medalha de bronze. Larissa Pimenta faturou o bronze na categoria até 52Kg no judô. A equipe mista de judô ganhou a primeira medalha olímpica da sua história, levou o bronze após vencer a equipe da Itália. Rebeca Andrade se tornou a maior medalhista da história do Brasil, com seis pódios Olímpicos. Em Paris, ela ganhou ouro na apresentação de solo, prata no individual geral e no salto. E a foto que escolhemos para a matéria é de Rebeca sendo reverenciada no pódio por Simone Biles e Jordan Chiles.

Tatiana Weston-Webb eliminou muitas favoritas do surf e levou a medalha de prata. Aos 16 anos de idade, Raissa Leal tornou-se a atleta mais jovem de todos os tempos a levar medalhas olímpicas. Em Paris, ela garantiu o bronze no street feminino. Bia Ferreira ficou com a medalha de bronze no boxe e tornou-se a maior medalhista na modalidade [2].

As conquistas das mulheres nos Jogos Olímpicos são motivo de orgulho, tendo em vista que nas primeiras edições elas eram proibidas de participar.  A atuação das mulheres nos Jogos Olímpicos Modernos foi emblemática e seguiu uma trajetória de controle e de censura. Em 1896, ocasião da primeira edição dos Jogos Olímpicos, realizados na Grécia, as mulheres não participaram, seguindo as recomendações e os preceitos do Barão Pierre de Coubertin, idealizador do Jogos Olímpicos da era moderna. Para ele, as mulheres não teriam capacidade física para suportar as provas. Mais tarde, na Olimpíada de 1968, a primeira a ser realizada na América Latina, no México, o COI impôs barreiras à participação feminina.

Desde os Jogos de Berlim, em 1936, na época governada pelo nazista Hitler, as suspeitas de “feminilidade duvidosa” recaíram sobre as mulheres. As ciências, em especial, no final do século XIX e início do século XX, produziram conhecimentos que reafirmavam o ideário da inferioridade feminina em relação aos homens. Para eles: “quando as mulheres começaram a sobressair nos esportes de rendimento, principalmente as soviéticas e alemãs, recrudesceram os questionamentos sobre seu porte, suas ‘características masculinas’, e elas passaram a ser questionadas quanto a sua identidade sexual. Como força, velocidade e agressividade são atributos relacionados ao gênero masculino, cria-se uma confusão quando determinantes sociais são reduzidos ao determinismo biológico. As mulheres seriam fracas por natureza hormonal, e, por conseguinte, as mulheres fortes deveriam ser homens disfarçados de fêmeas” [3].

No Brasil vigorou a legislação desportiva de 1941, quando o então Conselho Nacional de Desportos (CND) criou o Decreto Lei nº 3.199, que no artigo nº 54 dizia que as mulheres não poderiam praticar esportes “incompatíveis com sua natureza”. A participação das mulheres nos esportes estava limitada pela legislação e pelo controle do Estado sobre seus corpos, não sendo permitida às mulheres a prática do futebol, do futsal, do futebol de praia, do polo, do halterofilismo, do baseball e das lutas de qualquer natureza. E somente em 1979, com a deliberação nº 10, a anterior foi revogada.

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 ainda geram repercussão, mesmo depois de terem terminado. Uma das maiores polêmicas envolveu a boxeadora argelina Imane Khelif, que foi violentamente questionada por ter sido desclassificada de um mundial por não passar nos testes de gênero, mas ainda assim foi autorizada a competir na França. A atleta está movendo uma ação judicial após a circulação de notícias falsas sobre o teste de gênero. Elon Musk, a autora de Harry Potter, J.K. Rowling, e outras personalidades neofascistas foram nomeados por promoverem fake news nas redes sociais contra a atleta. Nabil Boudi, o advogado parisiense de Khelif, comunicou que Donald Trump também faria parte da investigação. O processo foi movido contra a rede social X. Muitas personalidades neofascistas do mundo foram citadas na denúncia.

O modelo hegemônico de corpo, representado pela divisão sexuada da sociedade, polarizada em masculino e feminino, reflete uma heteronormatividade apontada pela divisão binária do social e tematizada no quadro conceitual da epistemologia feminista contemporânea, que é a matriz dos estudos de gênero e dos estudos das mulheres, criados na década de 1980, como estratégia metodológica. As representações de corpo feminino estão ancoradas em modelos de identidade generizados que, nem sempre, são condizentes com os atributos exigidos pelo esporte de rendimento. Embora a história as mulheres atletas demonstre a conquista de um lugar de destaque na instituição desportiva, quando falamos das mulheres praticantes de lutas, de futebol, de fisiculturismo ou de halterofilismo, ainda hoje existe preconceito. Cada dia é um dia a mais para estas atletas buscarem seu lugar no mundo e, consequentemente, no universo dos esportes. Nos Jogos Olímpicos de Paris, as atletas brasileiras mostraram que, mesmo com a inserção tardia das mulheres nas competições, as mulheres estão avançando a cada nova edição. A massiva repercussão de medalhistas brasileiras pretas foi emblemática e mostra que elas estão dispostas a vencer a barreira do preconceito de gênero e etnorracial.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] ZALCMAN, Fernanda Lucki. Jogos Olímpicos de Paris 2024: reveja todas as medalhas do Brasil. Olimpics.com, 11 ago. 2024. Disponível em: https://olympics.com/pt/noticias/jogos-olimpicos-paris-2024-reveja-todas-medalhas-brasil. Acesso em: 13 ago. 2024.

[2]. PARIS 2024. Olympics. Disponível em: https://olympics.com/pt/paris-2024. Acesso em: 13 ago. 2024.

[3] LESSA, Patrícia. O sexo a quem compete? Revista de História. Rio de Janeiro, v. 10, p. 52-55, 2014.

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A bancada do cocar em luta contra o terricídio

A bancada do cocar em luta contra o terricídio

Aos poucos os povos indígenas estão conquistando espaço no campo político e colocando as suas pautas em discussão. Para além de suas propostas, eles estão em defesa do território e de sua existência. Muitos projetos de lei em pauta no Congresso Nacional e no Senado são tentativas de golpear a Constituição Federal e abrir as portas para o total extermínio das áreas de preservação ambiental e das reservas indígenas e quilombolas para privilegiar o garimpo, a extração de madeira, a produção de grãos transgênicos, regados a veneno, e a criação de gado. Nunca podemos esquecer que a extrema direita é negacionista climática.

A luta dos povos originários é diária e remonta a invasão colonialista. A visão colonialista e eurocentrada ainda é perceptível em alguns discursos políticos que tentam desqualificar a política de garantia de direitos aos povos indígenas. A questão da terra no Brasil é complexa. O país carrega a marca do coronelismo e, portanto, muitos crimes cometidos contra as comunidades rurais de pequenos produtores rurais, de quilombolas, de ribeirinhos e de indígenas são ocultados pela grande mídia – que é cupincha de coronéis, políticos e empresários corruptos. Ela nasceu na ditadura e se banha no neocolonialismo e no imperialismo norte-americano.

A luta dos povos originários tem uma longa história, mas somente nos anos 1980 começaram a aparecer os resultados na política institucional. Em 1982, Mario Juruna, cacique Xavante, foi eleito para o cargo de deputado federal pelo Rio de Janeiro. Ele teve o seu mandato balizado contra o Estatuto do Índio e em prol da criação da Comissão Permanente do Índio.

 O Estatuto do Índio permitia que o governo removesse os povos indígenas para usufruir de suas terras em benefício de terceiros. Criado pela Lei nº 6.001, de dezembro de 1973, o Estatuto seguiu o princípio do antigo Código Civil, de 1916, no qual os indígenas seriam “incapazes” e, portanto, deveriam ser tutelados pelo Estado até serem “integrados à comunhão nacional”. Esta é uma perspectiva assimilacionista que negava a sua cultura, língua e costumes.

Foi a partir dos anos 1980 que as Comissões pró-indígenas começaram a avançar na garantia de leis relacionadas ao direito à terra. Com a redemocratização do Brasil, o movimento pelos direitos dos povos originários avançou nas pautas e ocupou espaços antes negados pelo poder público.

Em 2022, a revista Time citou Sônia Guajajara como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Ela é uma das mais importantes lideranças indígenas brasileira. É formada em Letras e Enfermagem, especialista em Educação especial pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Em 2015, ela recebeu a Ordem do Mérito Cultural [1]. Nascida na Terra Indígena de Araribóia, no Maranhão, ela dedica a vida ao combate à invisibilidade dos povos originários e luta pelos seus direitos, atuando em várias frentes, dentre elas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Em dezembro de 2022, Sônia foi anunciada como a primeira ministra dos Povos Indígenas. Desde então ela vem se destacando na implementação de políticas públicas indigenistas e na retomada da demarcação dos territórios indígenas. Sônia Guajajara destaca que os territórios indígenas preservam 80% de toda a biodiversidade do planeta e são as áreas onde ocorre a menor taxa de desmatamento. Para ela, sem o cuidado com o meio ambiente, a crise climática se agravará, provocando secas, inundações, ciclones e outros eventos cada vez mais severos ao redor do mundo.

A caminhada para a garantia de direitos é longa e demanda luta constante, foi assim que, em 2020, foram eleitos 234 representantes de povos indígenas, sendo 10 prefeitos, 11 vice-prefeitos e 213 vereadoras/es, segundo dados da Apib. Para a deputada federal Célia Xakriabá:

 

Antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do Cocar. Antes do Brasil do verde e amarelo, existe o Brasil do jenipapo e do urucum. Não conheceremos o Brasil antes de conhecer a história indígena [2]

 

A sua frase diz muito para a história do Brasil. É uma pungente marca de que temos uma história anterior ao colonialismo. Para Célia, e outras/os ativistas indígenas, não existe dissociação entre o nosso corpo e a Terra, somos terra. O ser humano também é natureza e é terra. O ser humano depende da terra e não o contrário. A foto que ilustra este texto foi feita por Edgar Kanaykõ Xakriabá e expressa este vínculo, está disponível no Instagram da Célia Xakriabá.

Célia é uma educadora e ativista indígena representante de Minas Gerais, filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Ela vem se destacando por suas campanhas em prol da demarcação de terras indígenas. Sabemos que isso é uma urgência diante da emergência climática. Para ela, a tese do Marco Temporal é um retrocesso que pode corroborar nas catástrofes climáticas, tendo em vista que a sua proposta visa destruir áreas de preservação para favorecer o agronegócio, a mineração e o extrativismo predatório. O Marco temporal – conhecido como Tese de Copacabana – é uma tese jurídica que foi construída jurisprudencialmente durante o julgamento do caso Raposa da Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, o qual propõe que os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

Para Célia Xakriabá, a demarcação das terras indígenas é uma urgência diante da emergência climática. O marco deve ser ancestral em respeito aos povos que aqui estavam antes da invasão colonialista. A definição de uma data recente demonstra a má fé com a qual o poder político e judiciário trata a questão indígena no Brasil, pois sabemos que as leis anteriores à Constituição Federal negavam a existência e a cultura ancestral indígena. Contra a PEC 48/2023 e várias outras propostas imorais estão os povos indígenas e as pessoas que entendem que o Marco Temporal é uma artimanha político-jurídica para acelerar a devastação de terras neste país. A bancada do cocar significa a representatividade indígena na política federal. 

Da política para as poéticas indígenas, nota-se um avanço nos ativismos. A indígena feminista mexicana escreveu um poema para enraizar a sua luta:

INDIA [3]

Patricia Karina Vergara Sánchez

 

Soy india.

Morena, chata de la cara,

en un país racista

hasta la obsesión.

Soy lesbiana,

en una nación

que compulsivamente me persigue.

Insisto,

en la libertad de decidir sobre mi cuerpo,

en territorio

de quienes realizan leyes

que buscan doblegarme.

No creo en su dios,

aún cuando habito un Estado

opresivamente católico.

Invoco a las diosas,

Entre los engranes de un patriarcado

que hace miles de años intenta ocultarlas.

Participo en la lucha laboral,

de un pueblo

ya comerciado y en las manos del patrón.

Conozco la importancia

de la labor contestataria,

cuando en esta patria

se encarcela a quien disiente.

[…]

Es por todo ello,

Que no tengo más remedio

que darles la mala noticia

a las buenas y tranquilas conciencias:

Estoy aquí.

Exigiendo a gritos,

la parte que me corresponde del mundo.

Y no voy a callarme la boca, ni a desaparecer.

 

Sabemos que o colonialismo trouxe o racismo e a exclusão social das etnias não brancas. Combater o colonialismo é combater o racismo, por isso a teoria decolonial é tão forte na América Latina, cuja força ancestral a renomeia de Abya Yala.

No Brasil, as políticas estão em disputa e em acelerado processo de construção da diversidade cultural. Na última eleição, tivemos alguns parcos avanços. Por exemplo, em 55 anos, Joenia Wapichana foi a primeira mulher indígena advogada no Brasil e a assumir a Presidência da Funai. Pela primeira vez em 55 anos de história, o órgão federal responsável pela política indigenista brasileira é presidido por uma mulher indígena.

Segundo o portifólio da exposição Mundos indígenas: “O Brasil abriga o maior número de comunidades indígenas no mundo: são mais de 300 etnias, espalhadas por todo o território nacional. Este é um patrimônio social que não encontra similaridade em nenhum outro lugar do mundo. São idiomas, costumes, canções, vestimentas e histórias inigualáveis, que têm suas raízes em um Brasil pré-colonização” [4].

Como diz Célia Xakriabá, a chegância dos povos indígenas na política, nos espaços culturais, educacionais, nas múltiplas esferas de poder está desestabilizando a ordem colonizadora e mostrando que temos uma longa história a ser resgatada e, sobretudo, uma dívida histórica que deverá ser paga aos povos originários.

A bancada do cocar luta pelo marco ancestral.

A bancada do cocar luta contra o terricídio.

A bancada do cocar luta pela preservação da natureza.

A mãe do Brasil é indígena!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] COELHO, Rodrigo. Sônia Guajajara entra na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. Brasil de fato, Rio de Janeiro, 23 maio 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/23/sonia-guajajara-entra-na-lista-das-100-pessoas-mais-influentes-do-mundo-pela-revista-time. Acesso em: 11 jul. 2024.

[2] MURAD, Fernando. Narrativas ancestrais. Rio2C2022, 22 abr. 2022. Disponível em: https://rio2c.meioemensagem.com.br/noticias2022/2022/04/28/narrativas-ancestrais/#:~:text=%E2%80%9CAntes%20do%20Brasil%20da%20Coroa,de%20conhecer%20a%20hist%C3%B3ria%20ind%C3%ADgena%E2%80%9D. Acesso em: 11 jul. 2024.

[3] SANCHEZ, Patrícia Karina Vergara. Indómita versa: poesia feminista. Chile: Ginecosofía ediciones, 2017, p. 57-60.

[4] GOMES, Ana Maria (org.). Mundos indígenas. Belo Horizonte: Espaço do Conhecimento UFMG, 2020, p. 11. Disponível em: https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/wp-content/uploads/2018/03/ec-ufmg_2020_mundos-indigenas_catalogo_web.pdf. Acesso em: 11 jul. 2024.

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Criança não é mãe!

Criança não é mãe!

 “Vejamos, com a própria história da Igreja, como o Cristianismo bate o recorde da tirania, das torturas, do despotismo, levando a palma a todas as organizações sociais de todos os séculos e de todos os povos. […] na palavra de Salomão encontramos a nascente da odiosidade e do desprezo da igreja contra a mulher. […] Daí a fobia da igreja primitiva contra a mulher”

Maria Lacerda de Moura (1935) [1].

 

O avanço da extrema direita perpetua um rastro de sangue inocente. As novas cruzadas reeditam a sanha fascista com apoio incondicional do cristianismo. A frase de Maria Lacerda de Moura, escrita em 1935, vale para o passado, bem como para o presente cristão. Não são todas as linhas e vertentes do cristianismo que pregam a palavra de Jesus Cristo. Muitas delas pregam a palavra do capital, das grandes corporações e do patriarcado. Nas novas cruzadas, as mulheres estão na mira novamente. O ódio às mulheres atravessa a história do cristianismo, desde as fogueiras, onde eles queimaram mulheres em piras, até os dias atuais, em que os pentecostais tentam a todo custo empurrar as mulheres de volta ao reduto doméstico e à escravização da relação patriarcal.

O PL do estuprador ameaça os direitos das mulheres, das pessoas que gestam, das crianças e das famílias brasileiras! O Projeto de Lei 1904/24, proposto pelo deputado fascista Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), recebeu apoio incondicional do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). O projeto votado em regime de urgência, entre outras coisas, prevê a proibição do abordo após a 22ª semana para mulheres, pessoas com útero e crianças que engravidarem vítimas de estupro. O projeto teve apoio incondicional da bancada da bíblia. Caso haja o aborto a vítima passa a ser acusada de homicídio. A proposta beira à aberração e significa a materialização do ódio às mulheres.

A proposta equipara o aborto acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio. O cerne da questão é dificultar o acesso ao aborto legal previsto em lei desde 1941. Porém, mesmo sendo lei, o acesso aos serviços é dificultado graças ao moralismo cristão que impera no atendimento ao público. Caso o projeto seja aprovado, as mulheres enquadradas nessa legislação poderão pegar uma pena de 20 anos de prisão, maior do que a prevista para os estupradores, que é de 2 a 10 anos. É justo que uma mulher, uma pessoa que gesta ou uma criança que foi violentada sexualmente seja criminalizada? É justo a vítima de um estupro ficar mais tempo presa do que o estuprador? A criminalização neste caso é uma segunda violência sobre um corpo violado. São inaceitáveis tais violências contra as mulheres, as pessoas que gestam e as crianças!

Os dados são alarmantes: em 2022, 74.930 casos de estupro foram registrados. Sabemos que esses dados são muito maiores, tendo em vista que muitas pessoas não registram o boletim de ocorrência em função da vergonha e do medo de seu algoz, que muitas vezes é um homem conhecido ou da própria família. Do percentual de estupros, aproximadamente 90% das vítimas são mulheres, sendo que cada 6 de 10 tinham no máximo 13 anos de idade, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública [2].

O número de gestações interrompidas legalmente em crianças e menores de 14 anos é bem inferior ao número de casos de estupro de vulnerável. Entre 2013 e 2022, foram registrados mais de 20 mil partos de crianças gestadas por outras crianças ou menores de 14 anos. São mais de 20 mil meninas que deixam a infância para viver a maternidade. Dessas, mais de 70% são negras. A política sexista e racista no Brasil vem ganhando contornos muito perigosos desde a ascensão do bolsonarismo. Vale lembrar que o ex-presidente, Jair Bolsonaro, ao comentar sobre as meninas venezuelanas, disse: “pintou um clima”.

Em entrevista ao canal do YouTube Paparazzo Rubro-Negro realizada no dia 14 de outubro de 2022, o ex-presidente faz uma fala que alude à apologia à pedofilia e exploração sexual de crianças, ele disse: “Eu parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas num sábado numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. ‘Posso entrar na sua casa?’ Entrei. Tinham umas 15, 20 meninas sábado de manhã se arrumando. Todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas de 14, 15 anos se arrumando no sábado para quê? Ganhar a vida”.

O que o ex-presidente chama de “ganhar a vida”, trata-se de exploração sexual de vulnerável, e ele, como representante do governo, fez alguma coisa para ajudar as meninas em sua inserção social e adesão aos estudos? Não! Ele reforçou a pedofilia, a exploração sexual de vulneráveis, e a tomada de posição foi apoio à exploração, pois, na sua perspectiva, “pintou um clima”.  A fala dele repercutiu negativamente ao redor do mundo, confirmando a tese de que o Brasil é um país perigoso para as mulheres, meninas e pessoas com útero e que são alvo dos pedófilos e dos estupradores.

A enquete popular no site da Câmara dos Deputados aponta que quase 90% da população brasileira é contra o PL do estupro. Além disso, instituições, artistas, organizações sociais se manifestaram contra. Mulheres de diversos municípios do Brasil saíram às ruas reivindicando o arquivamento do PL. Foi uma multidão marchando contra o retrocesso que é marcado pelo ódio às mulheres e pela naturalização da pedofilia e do estupro.

A Fiocruz emitiu uma nota na qual se posiciona contra o PL do estupro, afirmando que esse projeto representa retrocesso e ameaça à saúde de mulheres, crianças e pessoas com útero. Segundo informação do site: “estima-se que ocorram 820 mil casos de estupro por ano, sendo 80% de mulheres e apenas 4% detectados pelo SUS. Destaca-se nas notificações de violência sexual no SUS que as maiores vítimas são crianças e adolescentes negras. A gravidez resultante de estupro é uma tragédia social de grande impacto na saúde física e mental, assim como na vida de estudo, laboral e de lazer, especialmente quando a vítima é uma criança” [3].

A violência sexual é um câncer social neste país e significa que a vida das mulheres, das pessoas com útero e das crianças está em constante ameaça. Afinal, a naturalização da pedofilia e do estupro interessa a quem? Essa é uma pergunta que deve ser feita. Com certeza, precisamos vasculhar a fundo a questão da pedofilia e do estupro de vulneráveis dentro das igrejas e templos no Brasil a exemplo de outros países, sobretudo se pensarmos que o PL do estupro é um projeto da bancada evangélica. Qual o interesse dos evangélicos em punir a vítima e proteger os abusadores, estupradores e pedófilos?

Não podemos nos esquecer de que no dia 24 de abril de 2013 esteve na pauta da Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 478/2007, que “dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e da outras providências”. O projeto baseou-se na crença de que a vida tem início desde a concepção, ou seja, antes mesmo de o ovo ser implantado no útero, visando, assim, estabelecer os direitos dos embriões, os chamados nascituros. Ou seja, um projeto de lei brasileiro que visou garantir proteção do embrião e não da vida de mulheres, crianças e pessoas que gestam. Foi proposto, inicialmente, em 2005, pelos deputados Osmânio Pereira e Elimar Máximo Damasceno.

O assunto revela uma herança misógina, que é possível em uma sociedade patriarcal, capitalista, judaico-cristã moralista e hipócrita. A legislação trata da tentativa de dominação sobre o corpo e a sexualidade das mulheres, das crianças e pessoas com útero utilizando valores impostos através da culpa e do pecado. Esta pregação, falsa e oportunista, resulta em pressões e ações concretas no interior do poder legislativo.

O Estatuto do Nascituro, a “Bolsa Estupro”, a CPI do aborto e o PL do estupro formam um combo de estratégias cristãs dentro de uma política que, teoricamente, é laica e que está submetida a interferências das religiões cristãs e de suas concepções moralistas e hipócritas, tendo em vista que é justamente a religião com o maior número de casos de violência sexual contra mulheres, crianças e pessoas vulneráveis. A bancada composta por fundamentalistas, em sua maioria por deputados evangélicos, espíritas e católicos, está mais preocupada em controlar a vida das mulheres do que propriamente combater a violência sexual dentro de seus templos.

A revista Carta Capital, em 2023, divulgou uma matéria na sobre um grande movimento de denúncia de esquemas de pedofilia dentro da Igreja Católica. Foram registrados mais de 400 casos de abuso sexual na Convenção Batista do Sul [4]. Um estudo apresentado neste ano revelou milhares de casos de abusos sexuais de menores desde 1946 na Igreja Evangélica da Alemanha. “A investigação contabilizou mais de 2.200 casos, envolvendo 1.259 supostos abusadores. Mas segundo uma estimativa da equipe disciplinar que realizou a pesquisa, mais de 9.300 menores podem ter sido vítimas de abusos sexuais na Igreja Evangélica da Alemanha nas últimas décadas. Pela primeira vez um estudo traz números de abusos de menores dentro da Igreja Evangélica” [5].

Os casos de abuso sexual dentro das igrejas estão aparecendo, não basta lutarmos contra a legislação moralista imposta pela bancada da bíblia, precisamos pesquisar, investigar, discutir e, sobretudo, divulgar os casos de violência sexual dentro das igrejas, acobertados pelos padres, pastores e moralistas cristãos. Não é de hoje que essas instituições religiosas propõem medidas de ataque a integridade física e moral das mulheres. As novas fogueiras da inquisição estão acesas e precisamos nos unir para proteger as nossas crianças antes que elas virem alvo dos pedófilos cristãos e depois sentem no “banco dos réus”. Precisamos continuar a denunciar a pedofilia e o estupro dentro das igrejas cristãs. Desde o início do século XX que Maria Lacerda de Moura e tantas outras pessoas denunciam a tirania e a perversidade dos cristãos.

Criança não é mãe! Estuprador não é pai! 

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Notas

[1] MOURA, Maria Lacerda de. Fascismo: filho dileto da igreja e do capital. São Paulo: Entremares, 2018, p. 57-58.

[2] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: FBSP, 2023. Disponível em:  https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 24 jun. 2024.

[3] FIOCRUZ. Fiocruz divulga nota de posicionamento contra PL do aborto. Rio de Janeiro, 24 jun. 2024. Disponível em:  https://portal.fiocruz.br/noticia/2024/06/fiocruz-divulga-nota-de-posicionamento-contra-pl-do-aborto-0. Acesso em: 24 jun. 2024.

[4] ANJOS, Simony dos. Pedofilia e igrejas evangélicas, precisamos romper esse silêncio. Carta Capital, 13 set. 2023. Disponível em:  https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/pedofilia-e-igrejas-evangelicas-precisamos-romper-esse-silencio/. Acesso em: 24 jun. 2024.

[5 ] DAMASCENO, Márcio. Estudo inédito na Igreja Evangélica revela milhares de casos de pedofilia desde 1946. RFI_br. França, 26 jan. 2024. Disponível em:  https://www.rfi.fr/br/podcasts/linha-direta/20240126-estudo-in%C3%A9dito-na-igreja-evang%C3%A9lica-da-alemanha-revela-milhares-de-casos-de-pedofilia-desde-1946. Acesso em: 24 jun. 2024.

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Moira Millán e a luta contra o terricídio em Abya Yala

Moira Millán e a luta contra o terricídio em Abya Yala

“El verano se acercaba y con él, el tiempo de las ofrendas y el compromiso de renovar los votos de armonía con la mapu” [1].

Escrever sobre a indígena Moira Millán é um desafio, ainda sabemos pouco sobre a sua história e suas batalhas. Ela é uma mulher originária da nação Mapuche, nasceu em 20 de agosto de 1970, em Maitén, província de Chubut, na Argentina. Seus familiares trabalharam como ferroviários. Moira é uma weychafe (guerreira na língua mapudungun) e integra o Movimento de Mulheres Indígenas pelo Bem Viver. Desde a década de 1990 ela tem se mobilizado em lutas pelos direitos do seu povo, contra o terrícidio e o feminicídio de suas irmãs indígenas.

Na cosmovisão do povo Mapuche, os rios, as montanhas, as florestas, os animais não são recursos ou propriedades, são parte de um todo que compõe a Terra. Os povos originários partem de uma outra epistemologia, não colonial e não eurocentrada; nela não há espaço para a dualidade entre terra e humanidade. Tudo é natureza. O ser humano também é natureza e é terra. O ser humano depende da terra e não o contrário. A terra iria prosperar sem o ser humano, caso não haja uma mudança de comportamento e na relação corpo/território. A destruição do território é a destruição dos corpos humanos.

Moira Millán nos lembra que o colonizador estabeleceu fronteiras no território que já era habitado. Entre as formas de dominação estava a proibição de rituais ancestrais, o roubo das terras indígenas, a subjugação dos povos e a imposição de uma maneira de conceber e estar no mundo. O modo de vida acumulativo, gregário e racista gerou um mundo doente, com pessoas e territórios adoecidos por uma forma de ocupação altamente predatória e destrutiva. Exemplo disso, para ela, são as criações de animais para abate e os abatedouros onde se produz “carne torturada”. São animais e trabalhadores da indústria da carne que vivenciam violências diárias que resultam na morte em massa e na debilidade física e emocional.

Para ela é necessário o despertar telúrico. A humanidade precisa aprender sobre a visão existencial dos povos originários, que não fazem distinção entre animais, rios, cachoeiras, montanhas, terra, vento e seres espirituais. A floresta é uma entidade viva e pulsante, consciente e detentora de direitos. As plantas são sagradas e guardam os segredos da medicina tradicional. As mulheres são guardiãs desses segredos milenares repassados às novas gerações através da oralidade.

Moira impulsionou o Movimento de Mulheres Indígenas pelo Bom Viver, que questiona o mito da Argentina branca através da invisibilização dos povos originários. O modelo de democracia ocidental, para ela, é assentado no racismo e no terricídio. Moira diz que é necessário construirmos uma Terracracia, onde a terra seja o centro de nossas preocupações e ações. Neste modelo não cabe a Universidade tal como a concebemos atualmente, pois, para uma cosmovisão, deveria haver uma Pluriversidade, para agregar outras culturas, povos e epistemologias.

Além disso, é preciso enfatizar que, antes do feminismo, os povos mapuche já eram antipatriarcais. Eles tinham uma perspectiva política, ideológica e filosófica oposta à do colonizador. Desde suas origens, havia uma perspectiva de equidade, espiritualidade e respeito à Terra. A militarização dos territórios responde aos interesses internacionais do imperialismo e do patriarcado.

 Maria Eugenia García Nemocon, Ana-Marcela Montanaro e Luisa Maria Ocaña Muñoz no livro Eco-feminismos decoloniales: abrir miradas afirmam que: “los feminismos decoloniales son aportaciones dispersas en la geografía, pero que están situadas geopolíticamente en el Tercer Mundo. Son parte de las epistemologías del sur, siendo los conocimientos geopolíticamente inspirados en los sures globales contrapuestos a las epistemologias dominantes de los nortes globales” [2].

Concorda com as autoras Aimé Tapia. Ela é autora da obra Mujeres indígenas en defensa de la tierra e nos instiga a pensar em alguns aspectos centrais dos feminismos indígenas, tais como a confluência de posturas críticas, a relevância das tarefas de reprodução, a recuperação de categorias indígenas, a relação entre os corpos e os territórios, a vinculação dos corpos com a biodiversidade da Terra e o fortalecimento dos processos organizativos indígenas que constituem sua capacidade para construir o comum sem renunciar a diversidade.

Para ela, os feminismos indígenas latino-americanos são portadores de uma episteme não ocidental que se fundamenta na comunidade, no respeito à igual dignidade para todos os seres vivos e em valores de reciprocidade e interdependência [3].

Uma das grandes contribuições de Moira está na luta contra o terricídio que, em sua cosmovisão, parte do pressuposto da luta pela vida planetária. O conceito de terricídio foi criado por Moira e suas companheiras do Movimento de Mulheres Indígenas pelo Bem Viver e pode ser definido como o assassinato dos ecossistemas, o extermínio dos povos que o habitam e, também, significa a destruição dos ciclos que regulam a vida na terra, ao que chamamos ecossistemas perceptíveis.

Patrícia Karina Vergara Sanches em seu livro Siwapajti: medicina da mulher, memória e teoria de mulheres concorda e afirma :

“Minha suspeita é de que um dos últimos bastiões dos conhecimentos originários é a certeza da terra como entidade viva. Na generalidade das populações racializadas, entre os saberes, entre as lendas, entre os costumes, no centro das mais poderosas cosmovisões, há um sentido comum, uma pauta que se repete: ‘a terra não nos pertence, nós que pertencemos a ela’. A terra é a nossa ancestral direta. É ela quem nos dá vida, água, casa e alimento. Então, quem habita hoje essa terra, esse lugar concreto nela, está cuidando desse território porque, antes, o cuidaram outras mulheres para nós” [4].

O livro El tren del olvido, de Moira Millán, é o primeiro romance escrito por uma mulher mapuche da Argentina, especificamente da Patagônia, terra que antes de ser invadida pelos colonizadores espanhóis era chamada de Puelwillimapu. É uma obra que cria pontes entre o passado e a atualidade. O título, “O trem do esquecimento”, em português nos remete à construção da ferrovia que traria o progresso, mas também tentaria apagar o povo originário da Patagônia e da história da Argentina.

Em suas páginas iniciais, ela escreve:

“Soy una mujer mapuche. ¿Qué es ser mapuche? Les diré: mapu es tierra, y che, gente; gente de la tierra. Pero no es la idea de tierra que todo el mundo tiene, es más que eso. Es el mundo tangible y el mundo perceptible, el mundo bajo nuestros pies y también el de arriba, y el que está alrededor nuestro. La mapu tiene vida. Es una fuerza, un newen. ¡Qué bella palabra! ¿No lo creen así? Newen: energía, fuerza, toda forma de existência que crea y alimenta el mágico círculo de la vida” [5].

Os povos originários caminham com passos suaves e firmes há milênios e chegam hoje para nos convidar a adentrar em sua cosmovisão e propor uma renovação fundada na energia, na força e no entendimento de que toda forma de existência cria e alimenta o círculo mágico da vida. Neste mês de maio de 2024 vivemos novas devastações causadas pela emergência climática. Nada mais será igual nestes locais afetados profundamente pelas ações humanas que causam as devastações na terra e na vida planetária.

O agronegócio, o modelo de produção agrícola baseado na monocultura e na pecuária ostensiva, nos grandes latifúndios e no uso doentio de agrotóxicos, consome mais de 70% dos recursos da terra e produz menos de 20% dos alimentos, ele sustenta a produção industrial de alimentos ultraprocessados, nada saudáveis, e resulta em um dos grandes responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa. O atual modelo de agronegócio mata a terra, devastando florestas, animais, povos e, sem dúvida, é um dos maiores responsáveis pela emergência climática. Fica o convite para a renovação do pensamento, para o despertar telúrico e para a luta contra o terricídio. Vale lembrar que o ser humano depende da terra e não o contrário.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências:

[1] Tradução livre: “O verão aproximava-se e com ele o tempo das oferendas e o compromisso de renovar os votos de harmonia com a terra”. MILLÁN, Moira. El tren del olvido. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Planeta, 2019, p. 311.

[2] Tradução livre: “Os feminismos decoloniais são contribuições dispersas na geografia, porém estão situados geopoliticamente no Terceiro Mundo. São parte das epistemologias do sul, sendo os conhecimentos geopoliticamente inspirados nos suis globais contrapostos às epistemologias dominantes dos nortes globais”. NEMOCON, Maria Eugenia García; MONTANARO, Ana-Marcela; MUÑOZ, Luisa Maria Ocaña. Eco-feminismos decoloniales: abrir miradas. Madrid: Ecologistas em Acción, 2021, p. 16.

[3] GONZÁLEZ, Aimé Tapia. Mujeres indígenas en defensa de la tierra. Ediciones Cátedra, 2018.

[4] SANCHES, Patrícia Karina Vergara. Siwapajti: medicina da mulher, memória e teoria de mulheres. Belo Horizonte: Editora Luas, 2022, p. 37.

[5] Tradução livre: “Sou uma mulher mapuche. O que é ser mapuche? Eu direi: mapu é terra, e che, gente; gente da terra. Mas, não é a ideia de terra que todo mundo tem, é mais do que isso. É o mundo tangível e o mundo perceptível, o mundo abaixo dos nossos pés e também acima, e o que está a nossa volta. A Terra tem vida. É uma força, uma renovação. Que bela palavra! Não creem? Renovação: energia, força, toda forma de existência que cria e alimenta o círculo mágico da vida”. MILLÁN, Moira. El tren del olvido. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Planeta, 2019, p. 9.

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Conexões entre sexismo e especismo

Conexões entre sexismo e especismo

Cuando pasas

Y posas

Cuatro pies delicados

Em el suelo,

Oliendo,

Desconfiado

De todo terrestre,

Porque todo

Es inmundo

Para el inmaculado pie del gato

(Pablo Neruda) [1]

Em memória à Maju, uma das vítimas dos covardes torturadores de gatos de Caxias do Sul (RS), a foto dela na imagem que ilustra o texto deste mês está publicada no Instagram da @ongsrdoficial.

 

Especismo é a ideia de promover a espécie humana como superior e, além disso, capaz de deliberar sobre todas as outras, incluindo o direito sobre a vida e a liberdade. É a ideologia que justifica a exploração humana sobre as demais espécies. A relação com o sexismo está presente nas reflexões que pensam esse tipo de exploração. Sexismo é o nome que se dá à ideia de promover um gênero sobre o outro: a ideia de uma ordenação sexual, de subordinação do feminino ao masculino de forma hierárquica, como se houvesse uma ordem de importância social, e, nessa ordem, o masculino seria o padrão e a referência central. As feministas veganas estão se debruçando sobre a relação entre as violências sexistas, misóginas e contra as pessoas não humanas.

Utilizo o termo pessoa não humana emprestado do livro A vida dos animais, de J. M. Coetzee, nele a primatóloga Barbara Smuts convidou as pessoas humanas a “abrirem o coração para os animais à sua volta e descobrir por si mesmos como é fazer amizade com uma pessoa não humana” [2]. O termo “pessoa” no dicionário Michaelis online considera a “criatura humana” um “ser eminente ou importante”, com “caráter peculiar que dá distinção a alguém”. E vai além, na narrativa cristã, ser uma pessoa significa estar consciente de sua liberdade e responsabilidade, que são determinadas pela dimensão moral e espiritual. Já na gramática, “pessoa” indica alguém que participa de um discurso. Utilizar “pessoa” para os animais não humanos significa, portanto, transgredir um discurso criado pelo humano especista, que desconsidera todas as outras formas de vida, ou considera inferior, portanto, passível de exploração.

Para pensar a relação entre a violência machista/sexista e a brutalidade contra a irmandade de outras espécies vamos analisar o caso do torturador de gatos de Caxias do Sul (RS). Anderson Lucas Maciel de Almeida foi denunciado por maus-tratos a animais pela ONG Sem Raça Definida (SRD) e encaminhado para prisão no dia 27 de setembro de 2023. A matéria da Petrus News mostra fotos dele usadas em suas redes sociais, em uma delas ele usa um pano no rosto para encenar de forma tosca a imagem de torturador [3].

Os celulares encontrados na casa dele apontam para uma rede de homens envolvidos na compra de vídeos onde o maníaco filma a mutilação e a tortura imputadas aos gatos. A polícia está investigando a rede de envolvimento no crime. No dia 29 de setembro de 2023, a ONG liberou notícias e atualizações sobre os gatos resgatados informando que ainda não estavam prontos para adoção, todos estavam internados, tiveram as unhas arrancadas, estavam com marcas de cordas enforcando a garganta e outras tantas pelo corpo, o laudo da veterinária ainda informou que eles tiveram os dentes quebrados ou arrancados. Todos estavam magros e debilitados. No momento do resgate foi constatado que um deles havia sido morto um pouco antes da polícia e da equipe da ONG chegarem na casa do delinquente.

Em dezembro, no dia 8, a ONG noticiou a libertação do facínora para passar um “Natal em família”. O advogado de defesa do torturador, Fabiano Huff, alegou que ele possui “grave transtorno psicótico” [4]. A desculpa de “transtorno mental” permite que homens altamente perigosos andem livremente pelas ruas cometendo crimes. Graças ao advogado, o algoz está nas ruas e agora matando mais animais, com mais requintes de crueldade e ameaçando as mulheres da ONG SRD (@ongsrdoficial). Nas redes sociais, ele demonstra sua inspiração nos joguinhos eletrônicos ultraviolentos e divulga imagens dos gatos amedrontados: https://www.facebook.com/mjuvenil.lobato?mibextid=ZbWKwL.

Depois de passar o “Natal em família”, o assassino passou a realizar ameaças às mulheres da ONG. No dia 10 de janeiro deste ano, as notícias na página da ONG informaram que às 3 horas da madrugada uma das ativistas voluntárias recebeu dois vídeos de visualização única, onde havia cena de gatos sendo torturados. Cito o relato: “No primeiro, um gato preto ainda vivo, com as patas abertas e amarradas, e parte do peito mutilado também.
E no segundo vídeo um gato branco com parte do focinho cortado.
Imediatamente a voluntária reconheceu o fundo como o mesmo local onde os gatos torturados foram resgatados dia 27/09. Em tom de deboche, complementou a mensagem com ‘Miauuu’. Minutos depois recebeu mais um áudio de visualização única, com música muito alta e um gato miando desesperadamente ao fundo. Com urgência foi contatada a advogada da ONG, onde começou a ligar sem retorno do tal número. Hoje à tarde, a mesma também começou a receber ameaças gravíssimas do mesmo contato, como consta no print e no b.o que já foi aberto no mesmo momento”.

Com o criminoso solto e protegido pelo escudo de “doente mental”, os crimes agravaram e agora caminham para o desfecho sexista/machista. O ódio às protetoras é o que motiva a tortura aos gatos e aos cães ou seria uma espécie de treinamento para seu desejo mórbido de torturar mulheres? A relação entre o especismo e o sexismo é visível.

O livro Crueldade com animais x violência doméstica contra mulheres: uma conexão real estuda a relação de duas formas de violência: especista e sexista. Segundo a autora, Maria Padilha, os números encontrados com relação à violência contra os animais parecem aumentar nas últimas décadas no Brasil, e os números apontam que os agressores, em sua maioria, são homens. Ela escreve: “Dentre os diversos tipos de violência praticadas contra os animais de companhia principalmente contra cães no contexto familiar, a violência física é a que predomina e tem como principal agressor o mesmo homem que agride a mulher” [5]. Em suas considerações finais, a autora nos diz que, em geral, as pessoas não enxergam que as agressões contra animais estão ligadas com as agressões contra mulheres e crianças. Todo agressor é um covarde que vai agredir aquelas pessoas mais vulneráveis: mulheres, crianças e pessoas não humanas.   

O marginal foi preso pela segunda vez por torturar e matar gatos e agora com o agravante de ameaçar as mulheres da ONG SRD. Mas, já está solto novamente. Parece que a justiça está aguardando ele começar a torturar e matar as mulheres. Não é possível que o judiciário não perceba a periculosidade do marginal. Estariam aguardando que ele compre armas de fogo e mate algumas pessoas humanas para mantê-lo enjaulado na cadeia?

O caso ganhou contornos muito perigosos no período que ele ficou encarcerado no início de 2024. Outros gatos torturados e enforcados começaram a aparecer em Caxias do Sul – o que indica que a sua rede de “amigos” que compravam os vídeos de tortura e mantinham contato na Deep Web estão atuando em “solidariedade” no período em que o marginal estava preso. Reproduzo o informe realizado dia 16 de fevereiro de 2024 pela ONG:

 “Parece inacreditável, estamos apavoradas, mais uma resgatada com requintes de tortura. Na quarta-feira, às 21h recebemos um pedido de resgate inacreditável. Uma pessoa disse que encontrou uma gata em seu portão nesse estado. Ela pediu ajuda a outra que entrou em contato conosco. Pelas fotos, jurávamos que ela não estava mais viva. Porém, ao chegar na clínica, foi constatado que sim, por um milagre. Ela estava em completo estado de choque. Sem reação alguma. As veterinárias começaram a examinar com urgência, e foi aí que percebemos que não se tratava de um ‘incidente’. Ela teve uma lesão na face de aproximadamente 10 cm, tão funda que causou a exposição do osso mandibular. O estranho é que o formato do corte é ‘perfeito’. Não pode ser por mordida de animal, faca ou algo assim. Foi feito com bisturi ou algo próprio pra cortes nesse sentido. Nós ficamos realmente apavoradas! Já é o terceiro gato que aparece misteriosamente num estado do mesmo modus operandi, sem ser os resgatados do torturador. Quem lembra do Mingau? Resgatado com maxilar quebrado, unhas mutiladas, dedos cortados e também em estado de choque!
E o Frajola? Uma lesão na face muito similar a essa última resgatada. Todos eles apareceram em algum local onde vizinhos nunca haviam os visto anteriormente.
E além de tudo, essa gata teve dentes arrancados recentemente como mostra no laudo. Borramos as imagens porque são realmente muito difíceis de visualizar.
Se é difícil pra nós, pensem na gata que sofreu tudo isso!
Queremos justiça! Sabemos que existe muita gente maldosa que seguirá fazendo isso se não forem presos! Mais uma vez abrimos boletim de ocorrência e a polícia nos informou que estão investigando a similaridade desses casos para chegarem nos autores. Qualquer informação com fundamento pode ser enviada pelo direct do Instagram da ONG. A gata não consegue se alimentar, está com sonda e soro. Seu estado é gravíssimo, orem por ela”.

A gatinha do relato era a Maju, nome carinhoso dado pelas ativistas da ONG. Elas e a Maju lutaram pela vida, mas o quadro era grave, e no dia 5 de março a ONG noticiou o seu falecimento: “Nosso maior medo era ter que escrever esse texto. E hoje, com o coração despedaçado, perdemos nossa pequena […]. Uma dor inexplicável, sensação de derrota, a maldade humana venceu mais uma vez e levou nosso anjinho. Há dois dias ela decaiu bruscamente, mas ainda assim acreditávamos que ela iria se recuperar. Ela foi muito forte de chegar até aqui, agora teve seu descanso merecido. Até breve, nossa estrelinha brilhante Maju. Te amamos de todo o coração”.

Nos comentários, algumas mulheres falaram em uma rede de Incels – homens ultraviolentos que odeiam mulheres, odeiam pessoas não humanas, crianças, enfim, odeiam a vida. Suas redes instigam a violência e compartilham desejos de tortura e morte contra mulheres e animais não humanos. Para Silvia Federici (2017), a caça às bruxas inaugurou o uso científico da tortura. Sir Thomas Browne, assassino e médico, foi responsável pela morte de duas mulheres. Não por acaso, as bruxas e os gatos eram capturados, torturados e assassinados nas fogueiras da Inquisição pelos “homens de Deus”. “A magia mata a indústria” dizia Francis Bacon, sedento por sangue [6].

A diferença do período inquisitorial e a atual caça às bruxas e aos gatos é que os homens estão mais covardes do que na Idade Média. Naquela época, a acusação era pública, nenhum homem se escondia para fazer a denúncia. Hoje, os homens se escondem na Deep Web para instigarem suas seitas lotadas de homens jovens, fracassados, sem uma vida sexual satisfatória, covardes e ultraviolentos. Incel, Redpill, MGTOW ou qualquer outra designação, representam grupos de machos ressentidos, amargurados, com uma sexualidade frágil e estéril, incapazes de amar, preferem a violência, e as redes de apoio entre seus iguais são usadas para fortalecer a violência, a propagação do ódio e o planejamento de seus crimes.

Desejo muita força para as mulheres corajosas da ONG SRD e peço apoio às pessoas que são contra a barbárie: sigam a ONG nas redes sociais e, se possível, ajudem financeiramente, pois os inimigos não dormem. Eles passam a noite acordados torturando gatos e tramando contra a vida das ativistas.

Maju, eu também te amo! Muito obrigada às ativistas da ONG SRD vocês são inspiração de afeto e coragem.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] SILVEIRA, Nise. Gatos, a emoção de lidar. Fotos: Sebastião Barbosa. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1998. p. 18.

[2] SMUTS, Barbara. Reflexões. In: COETZEE, J. M. A vida dos animais. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 145.

[3] DIAS, Ailton. Homem é preso acusado de mutilar e gravar tortura de gatos em Caxias do Sul. Petrus News, 28 set. 2023. Disponível em: https://www.petrusnews.com.br/homem-e-preso-acusado-de-mutilar-e-gravar-tortura-de-gatos-em-caxias-do-sul/. Acesso em: 30 mar. 2024.

[4] MORIGGI, Ranieri. Suspeito de torturar gatos e ameaçar integrantes de ONG é preso preventivamente em Caxias do Sul. Jornal Semanário, 15 jan. 2024.  Disponível em: https://jornalsemanario.com.br/suspeito-de-torturar-gatos-e-ameacar-integrantes-de-ong-e-preso-preventivamente-em-caxias-do-sul/. Acesso em: 30 mar. 2024.

[5] PADILHA, Maria José Sales. Crueldade com animais x Violência doméstica contra mulheres: uma conexão real. Recife: FASA, 2011. p. 48.

[6] FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

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Dia Internacional da Mulher: para quais mulheres?

Dia Internacional da Mulher: para quais mulheres?

“O choro da menina foi se transformando em um gemido quase inaudível, fazendo os latidos do cão diminuírem aos poucos”

(Adania Shibli) [1].

A imagem que ilustra a divulgação deste texto é de Shamsia Hassani e foi criada em 2020. Ela nasceu em abril de 1988 no Afeganistão e aborda a situação das mulheres no Oriente Médio. A artista é grafiteira, professora universitária nas áreas de escultura, arte digital e urbana. A obra em destaque mostra uma maternidade nada romantizada. A gestante segura o ventre onde vemos um feto formado e posicionado com a cabeça para baixo. Seria, em condições comuns, um indício de que a criança está pronta para vir ao mundo. No entanto, a mãe e a criança estão com seus corações partidos, pois vivem em uma zona de guerra. O futuro dela é incerto! O tanque de guerra no segundo plano nos possibilita entender a dor da mãe que chora [2].

Ao redor do mundo, muitas mulheres nem lembram que existe um dia para “elas”, para “nós”. Sabemos que nas zonas de guerra as mulheres e as crianças são as maiores vítimas. No dia 8 de março, as redes sociais divulgaram o discurso proferido às turmas da escola religiosa Shirat Moshe pelo diretor, o rabino Eliyahu Mali, que abordou os escritos sagrados do judaísmo. Segundo o rabino, está havendo uma “guerra santa” em Gaza e todo soldado deve atentar para a regra básica prescrita no Torah: “Não poupem nenhuma alma! Não há pessoas inocentes. Se você não os matar, eles irão te matar. São vocês ou eles. A próxima geração e as mulheres que dão à luz a próxima geração serão os terroristas de amanhã”. Ele é enfático: “Não poupe nenhuma mulher, nem gestante, nem criança, nem bebê, nem idosa”.

A fala do rabino não é algo novo, sabemos que a dominação colonialista tem como alvo as mulheres e as crianças. O colonialismo, desde seus primórdios, é escrito com o sangue das mulheres e de suas crianças. A obra de Shamsia é bela e triste. Retrata a dor das mães cujo futuro é incerto e repleto de medo e melancolia. As mulheres que sofreram ou sofrem os processos colonizadores estão à margem desta e de outras comemorações tão caras às instituições tradicionais. As mulheres indígenas e as mulheres negras da América Latina, as do Oriente Médio, da África não receberam flores neste dia.

O dia da mulher é para quais mulheres, afinal? Desde o século XIX vemos as mulheres reivindicarem direitos. As libertárias, as anarquistas, as sufragistas, as mulheres negras, as marxistas, as campesinas deram passos importantes desde o alvorecer feminista. A marcha das mulheres é marcada pelas batalhas, vencidas ou perdidas, elas abriram caminhos.

Os feminismos contemporâneos necessitam viver a relação interseccional para dar voz e vez para as mulheres em suas diferentes etnias, gerações e orientações de gênero. Para reforçar o trabalho de criar novas pontes para além da normatização, é preciso descolonizar os corpos e as ações, já que as marcas das violências ainda refletem as heranças da sangrenta colonização e da cultura escravagista europeia e norte-americana. O conhecimento na perspectiva das mulheres que lutam pela libertação é um processo, uma jornada, um caminhar que ilumina novos horizontes não capturados, como diz a cineasta e escritora vietnamita Trinh T. Minh-Ha:

“O significado move-se com o caminhar e, como se diz frequentemente na Ásia, milagre é caminhar no chão, e não na água. Caminhar é uma experiência de indefinição e infinitude. A cada passo adiante, o mundo vem a nós. A cada passo adiante, uma flor brota sob nossos pés. […] Um cinza multicolorido cujo tempo resiste à captura e cujas cores desafiam toda formação em preto e branco. A cada passo, o mundo vem ao caminhante” [3].

Mulheres indígenas

Mulheres do Congo

Mulheres de Gaza

Mulheres negras do Brasil

Mulheres latino-americanas

Resistem e caminhando constroem pontes e novas perspectivas.

A jornada é longa, entre flores e serpentes, a andança torna-se aprendizado!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências: 

[1] Adania Shibli. Detalhe menor. Tradução de Safa Jubran. São Paulo: Todavia, 2021, p. 46.

[2] Shamsia Hassani. The Artist. Disponível em: https://www.shamsiahassani.net/. Acesso em: 17 mar. 2024.

[3] Trinh T. Minh-Ha. Milhas de estranheza. AREND, Silvia; RIAL, Carmen; PEDRO, Joana Maria. Diásporas, mobilidades e migrações. Florianópolis: Editora Mulheres, 2011, p.18-19.

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“Tudo bem ser lésbica, mas não precisa parecer homem!”

“Tudo bem ser lésbica, mas não precisa parecer homem!”

A saída do armário não acontece de forma abrupta, em um único momento. Muitas lésbicas passam a vida toda evitando assumir publicamente sua sexualidade graças ao preconceito que atravessou o tempo e as diferentes geografias. Em maior ou menor grau, ele incide sobre alguns corpos.

O termo “entendida” era comum nos anos 1980/1990. Era uma forma de falar em público sobre as preferencias de outras mulheres sem o temor da discriminação social. “Fulana é entendida!”, era uma frase comum entre amigas lésbicas. O uso da palavra “entendida” não tinha uma associação direta com o lesbianismo, por isso ajudava a manutenção de certo anonimato.

O medo da violência e da repulsa social levou toda uma geração a manter um silêncio sobre as suas preferências sexuais, sua forma de viver e de se relacionar, evitando, assim, problemas familiares, no trabalho e nas relações comuns do cotidiano. Por longo tempo, casais de mulheres viviam juntas como “amigas”. Era uma forma de evitar o conflito e garantir um mínimo de liberdade dentro de suas casas. A hipocrisia da família tradicional foi sendo desmascarada graças às críticas feministas, libertárias e, mais adiante, LGBT e queer. Por trás da ideia de “tradição”, há um “contrato sexual” que foi abordado por Carole Pateman [1]. O contrato sexual foi um dos pilares para a manutenção do patriarcado.

Em uma sociedade baseada na violência patriarcal, o lesbianismo representa uma afronta. A ausência de interesse pelos homens é uma pedra no coturno dos machistas de plantão. Daí advém o título desta reflexão: tudo bem ser lésbica, mas não precisa parecer homem! Somente em uma sociedade androcêntrica é possível um pensamento reducionista baseado na falsa crença que a não adoção dos códigos socialmente aceitos de feminilidade representam masculinidade.

O arrimo do androcentrismo é voltado para o movimento de contornar e retornar sempre para o mesmo lugar comum: o mundo soletrado no masculino. Assim é com a linguagem universal, com a ideia de competitividade, de pensamento e de forma de se vestir, para citar alguns exemplos. Embora as coisas estejam mudando, vemos uma turba de trogloditas clamando pelo retorno à barbárie, ao modelo da masculinidade tóxica, dominadora e doutrinária.

Neste movimento de grande retrocesso social, vemos ao redor do mundo o fantasma do fascismo assombrando. Ora, o fascismo é alimentado pela violência, pelo tradicionalismo, pela intolerância, pelo machismo, colonialismo, racismo, especismo, capacitismo e todas as formas de brutal exclusão social.

A lesbofobia significa o medo e a repulsa contra as lesbianas. As mulheres que se relacionam afetiva e/ou sexualmente com outras mulheres geralmente são etiquetadas de invertidas, de mulher-macho, fancha, machorra, butch, sapatão, ou, no pior caso, anuladas da vida pública. As lesbianas foram tornadas invisíveis na vida pública, nos livros de história, excluídas por meio da linguagem, excluídas por meio de ações. Reverter essa exclusão foi possível graças aos movimentos sociais, à divulgação e promoção de ações propositivas.  

Aos poucos vimos os insultos sociais serem ressignificados pelas lesbianas. Ser sapatão, lésbica, fancha, butch é uma forma de ser e estar no mundo. Mas, até que ponto o “mundo” respeita essas diferentes formas de ser e estar? Será que as distintas expressões da lesbianidade são aceitas da mesma forma? Quantas vezes ouvimos a frase: “Tudo bem ser lésbica, mas não precisa parecer homem”?

A violência incide sobre os corpos lesbianos em vários momentos e situações, dependendo de um conjunto de fatores ambientais. As diferentes formas de violência previstas na Lei Maria da Penha são: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Todas elas são, em algum momento, usadas para humilhar ou apagar a existência das mulheres que ousam viver apartadas dos homens.

Este foi o caso de Ana Carolina Campelo. Vítima de lesbocídio, Carol, como era carinhosamente conhecida, foi perseguida, torturada e assassinada em dezembro de 2023, em Maranhãozinho no Maranhão. Ela tinha 21 anos e havia se mudado para o local para viver com a sua namorada. Seu rosto foi desfigurado e seu corpo jogado em uma estrada como se fosse lixo. O caso comoveu os grupos lesbianos, que fizeram manifestações em várias regiões do Brasil.

Este, infelizmente, não é um caso isolado. O dossiê sobre lesbocídio no Brasil [2] é um documento fundamental para entendermos o atroz cenário nacional. As autoras iniciam a publicação diferenciando o feminicídio do lesbocídio. As especificidades do segundo levam a uma tipologia definida em lesbocídios declarados – como demonstração de virilidades ultrajadas, cometidos por parentes, por homens conhecidos sem vínculo afetivo-sexual ou consanguíneo, assassinos sem conexão com a vítima, suicídio ou crime de ódio coletivo, múltiplas opressões e tráfico de drogas – e o lesbocídio como expressão de desvalorização das lésbicas.

Os números são aterradores e nos levam a inferir que há uma política de extermínio camuflada de “casos isolados”. A violência machista no Brasil é um caso de patologia social. São mais de 10 estupros coletivos por dia no país. Ao ver os números, ficamos pensando: quantos homens a nossa volta participam ativamente ou como cumplices nesses crimes? O caso de Ana Carolina Campelo ainda está sendo investigado. Somente em 2024 houve a identificação de um possível assassino.

Para além da violação física e sexual, existe a violência psicológica, moral e patrimonial. Muitos casais de lésbicas são instigadas a providenciar a união estável para garantir que as suas famílias não se achem no direito de roubarem os bens em caso de óbito de uma delas. Tive o desprazer de acompanhar um caso em que o irmão mais velho queria saber com quem ficaria o imóvel do casal de lésbicas diante do leito de morte da sua irmã. Ele simplesmente ignorou o fato de as duas terem construído juntas o patrimônio durante mais de 20 anos de união. Com certeza, cientes da ganância de alguns familiares, elas já haviam providenciado a união estável e um testamento.

Como teria ficado a viúva caso não houvesse a documentação? Sabemos que a justiça, feita em sua maior parte por homens, os acoberta. Ao falar sobre o caso em um grupo de pessoas, um homem cis, esquerdo-macho, branco, hétero e privilegiado vomitou a seguinte frase: “Para vocês tudo é preconceito, preconceito seria se a família espancasse e jogasse na rua”. A frase diz muito sobre as crenças machistas. Muitos homens acreditam que violência é somente “espancamento”. Violação sexual, psicológica, moral e patrimonial são, para muitos homens, “coisa de feminista” querendo direitos iguais. A luta lesbiana é longa e cotidiana!

Nos anos 1970, o amor entre mulheres ficou conhecido como um ato político. O feminismo lesbiano, representado por nomes como Monique Wittig, Ti-Grace Atkinson e Adrienne Rich, pensou e propôs a desconstrução dos corpos naturais, ou seja, a ideia de que existe algo natural na heterossexualidade e, em consequência disso, de contranatural na lesbianidade. Ser lesbiana, para essas autoras, era opor-se à hierarquia sexual, que divide o mundo em masculino e feminino. Ser lesbiana era, então, uma política contra a divisão assimétrica dos gêneros [3].

Estima-se que a cada ano cresce o número de vítimas da violência lesbofóbica, transfóbica e homofóbica. São muitos exemplos de situações que vão do insulto verbal até violências físicas e assassinatos covardes. Cabe aos grupos e ativistas a árdua tarefa de pressionar para a consolidação de leis, exigindo justiça e criando as contranarrativas e imagens propositivas. Como disse no início desta reflexão, o preconceito incide em maior ou menor grau sobre alguns corpos. As mulheres desfem, como são nomeadas as lésbicas desfeminilizadas, são acusadas de “parecer homem”. A ideia de uma masculinidade hegemônica, natural e legítima é uma das bandeiras do machismo. É graças a essa crença que é possível imaginar que as lésbicas desejam “imitar os homens”.

Para Luce Irigaray, o corpo feminino apresenta uma sexualidade plural e é imprescindível inventarmos uma linguagem do nosso corpo para além das palavras criadas pelos homens e consolidadas nos saberes hegemônicos, sejam os biomédicos ou os psicossociais. Os encontros de mulheres marcam nos corpos novas conexões e linguagens para além das marcas impostas pelo patriarcado [4].

Uma lésbica desfem assume uma postura social contra-hegemônica. Ser sapatão, caminhoneira, fancha é motivo de orgulho para muitas lésbicas. A sexualidade calcada nos polos ativo-passivo é uma invenção baseada na visão masculinista. O corpo feminino é múltiplo! Combater a tirania machista é uma árdua tarefa que começa pela construção de modos de vida mais críticos e criativos para além dos tentáculos do patriarcado.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4403853/mod_resource/content/1/O%20Contrato%20Sexual%20-%20Carole%20Pateman.pdf. Acesso em: 19 fev. 2024.

[2] PERES, Milena Cristina Carneiro; SOARES, Suane Felippe; DIAS, Maria Clara. Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2018. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/fontes-e-pesquisas/wp-content/uploads/sites/3/2018/04/Dossi%C3%AA-sobre-lesboc%C3%ADdio-no-Brasil.pdf. Acesso em: 19 fev. 2024.

[3] LESSA, Patrícia. Chanacomchana e outras narrativas lesbianas em Pindorama. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021.

[4 ] IRIGARAY, Luce. Ce sexe qui n’em est pás un. Paris: Éditions de Minuit, 1977.

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