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A bancada do cocar em luta contra o terricídio

A bancada do cocar em luta contra o terricídio

Aos poucos os povos indígenas estão conquistando espaço no campo político e colocando as suas pautas em discussão. Para além de suas propostas, eles estão em defesa do território e de sua existência. Muitos projetos de lei em pauta no Congresso Nacional e no Senado são tentativas de golpear a Constituição Federal e abrir as portas para o total extermínio das áreas de preservação ambiental e das reservas indígenas e quilombolas para privilegiar o garimpo, a extração de madeira, a produção de grãos transgênicos, regados a veneno, e a criação de gado. Nunca podemos esquecer que a extrema direita é negacionista climática.

A luta dos povos originários é diária e remonta a invasão colonialista. A visão colonialista e eurocentrada ainda é perceptível em alguns discursos políticos que tentam desqualificar a política de garantia de direitos aos povos indígenas. A questão da terra no Brasil é complexa. O país carrega a marca do coronelismo e, portanto, muitos crimes cometidos contra as comunidades rurais de pequenos produtores rurais, de quilombolas, de ribeirinhos e de indígenas são ocultados pela grande mídia – que é cupincha de coronéis, políticos e empresários corruptos. Ela nasceu na ditadura e se banha no neocolonialismo e no imperialismo norte-americano.

A luta dos povos originários tem uma longa história, mas somente nos anos 1980 começaram a aparecer os resultados na política institucional. Em 1982, Mario Juruna, cacique Xavante, foi eleito para o cargo de deputado federal pelo Rio de Janeiro. Ele teve o seu mandato balizado contra o Estatuto do Índio e em prol da criação da Comissão Permanente do Índio.

 O Estatuto do Índio permitia que o governo removesse os povos indígenas para usufruir de suas terras em benefício de terceiros. Criado pela Lei nº 6.001, de dezembro de 1973, o Estatuto seguiu o princípio do antigo Código Civil, de 1916, no qual os indígenas seriam “incapazes” e, portanto, deveriam ser tutelados pelo Estado até serem “integrados à comunhão nacional”. Esta é uma perspectiva assimilacionista que negava a sua cultura, língua e costumes.

Foi a partir dos anos 1980 que as Comissões pró-indígenas começaram a avançar na garantia de leis relacionadas ao direito à terra. Com a redemocratização do Brasil, o movimento pelos direitos dos povos originários avançou nas pautas e ocupou espaços antes negados pelo poder público.

Em 2022, a revista Time citou Sônia Guajajara como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Ela é uma das mais importantes lideranças indígenas brasileira. É formada em Letras e Enfermagem, especialista em Educação especial pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Em 2015, ela recebeu a Ordem do Mérito Cultural [1]. Nascida na Terra Indígena de Araribóia, no Maranhão, ela dedica a vida ao combate à invisibilidade dos povos originários e luta pelos seus direitos, atuando em várias frentes, dentre elas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Em dezembro de 2022, Sônia foi anunciada como a primeira ministra dos Povos Indígenas. Desde então ela vem se destacando na implementação de políticas públicas indigenistas e na retomada da demarcação dos territórios indígenas. Sônia Guajajara destaca que os territórios indígenas preservam 80% de toda a biodiversidade do planeta e são as áreas onde ocorre a menor taxa de desmatamento. Para ela, sem o cuidado com o meio ambiente, a crise climática se agravará, provocando secas, inundações, ciclones e outros eventos cada vez mais severos ao redor do mundo.

A caminhada para a garantia de direitos é longa e demanda luta constante, foi assim que, em 2020, foram eleitos 234 representantes de povos indígenas, sendo 10 prefeitos, 11 vice-prefeitos e 213 vereadoras/es, segundo dados da Apib. Para a deputada federal Célia Xakriabá:

 

Antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do Cocar. Antes do Brasil do verde e amarelo, existe o Brasil do jenipapo e do urucum. Não conheceremos o Brasil antes de conhecer a história indígena [2]

 

A sua frase diz muito para a história do Brasil. É uma pungente marca de que temos uma história anterior ao colonialismo. Para Célia, e outras/os ativistas indígenas, não existe dissociação entre o nosso corpo e a Terra, somos terra. O ser humano também é natureza e é terra. O ser humano depende da terra e não o contrário. A foto que ilustra este texto foi feita por Edgar Kanaykõ Xakriabá e expressa este vínculo, está disponível no Instagram da Célia Xakriabá.

Célia é uma educadora e ativista indígena representante de Minas Gerais, filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Ela vem se destacando por suas campanhas em prol da demarcação de terras indígenas. Sabemos que isso é uma urgência diante da emergência climática. Para ela, a tese do Marco Temporal é um retrocesso que pode corroborar nas catástrofes climáticas, tendo em vista que a sua proposta visa destruir áreas de preservação para favorecer o agronegócio, a mineração e o extrativismo predatório. O Marco temporal – conhecido como Tese de Copacabana – é uma tese jurídica que foi construída jurisprudencialmente durante o julgamento do caso Raposa da Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, o qual propõe que os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

Para Célia Xakriabá, a demarcação das terras indígenas é uma urgência diante da emergência climática. O marco deve ser ancestral em respeito aos povos que aqui estavam antes da invasão colonialista. A definição de uma data recente demonstra a má fé com a qual o poder político e judiciário trata a questão indígena no Brasil, pois sabemos que as leis anteriores à Constituição Federal negavam a existência e a cultura ancestral indígena. Contra a PEC 48/2023 e várias outras propostas imorais estão os povos indígenas e as pessoas que entendem que o Marco Temporal é uma artimanha político-jurídica para acelerar a devastação de terras neste país. A bancada do cocar significa a representatividade indígena na política federal. 

Da política para as poéticas indígenas, nota-se um avanço nos ativismos. A indígena feminista mexicana escreveu um poema para enraizar a sua luta:

INDIA [3]

Patricia Karina Vergara Sánchez

 

Soy india.

Morena, chata de la cara,

en un país racista

hasta la obsesión.

Soy lesbiana,

en una nación

que compulsivamente me persigue.

Insisto,

en la libertad de decidir sobre mi cuerpo,

en territorio

de quienes realizan leyes

que buscan doblegarme.

No creo en su dios,

aún cuando habito un Estado

opresivamente católico.

Invoco a las diosas,

Entre los engranes de un patriarcado

que hace miles de años intenta ocultarlas.

Participo en la lucha laboral,

de un pueblo

ya comerciado y en las manos del patrón.

Conozco la importancia

de la labor contestataria,

cuando en esta patria

se encarcela a quien disiente.

[…]

Es por todo ello,

Que no tengo más remedio

que darles la mala noticia

a las buenas y tranquilas conciencias:

Estoy aquí.

Exigiendo a gritos,

la parte que me corresponde del mundo.

Y no voy a callarme la boca, ni a desaparecer.

 

Sabemos que o colonialismo trouxe o racismo e a exclusão social das etnias não brancas. Combater o colonialismo é combater o racismo, por isso a teoria decolonial é tão forte na América Latina, cuja força ancestral a renomeia de Abya Yala.

No Brasil, as políticas estão em disputa e em acelerado processo de construção da diversidade cultural. Na última eleição, tivemos alguns parcos avanços. Por exemplo, em 55 anos, Joenia Wapichana foi a primeira mulher indígena advogada no Brasil e a assumir a Presidência da Funai. Pela primeira vez em 55 anos de história, o órgão federal responsável pela política indigenista brasileira é presidido por uma mulher indígena.

Segundo o portifólio da exposição Mundos indígenas: “O Brasil abriga o maior número de comunidades indígenas no mundo: são mais de 300 etnias, espalhadas por todo o território nacional. Este é um patrimônio social que não encontra similaridade em nenhum outro lugar do mundo. São idiomas, costumes, canções, vestimentas e histórias inigualáveis, que têm suas raízes em um Brasil pré-colonização” [4].

Como diz Célia Xakriabá, a chegância dos povos indígenas na política, nos espaços culturais, educacionais, nas múltiplas esferas de poder está desestabilizando a ordem colonizadora e mostrando que temos uma longa história a ser resgatada e, sobretudo, uma dívida histórica que deverá ser paga aos povos originários.

A bancada do cocar luta pelo marco ancestral.

A bancada do cocar luta contra o terricídio.

A bancada do cocar luta pela preservação da natureza.

A mãe do Brasil é indígena!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] COELHO, Rodrigo. Sônia Guajajara entra na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. Brasil de fato, Rio de Janeiro, 23 maio 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/23/sonia-guajajara-entra-na-lista-das-100-pessoas-mais-influentes-do-mundo-pela-revista-time. Acesso em: 11 jul. 2024.

[2] MURAD, Fernando. Narrativas ancestrais. Rio2C2022, 22 abr. 2022. Disponível em: https://rio2c.meioemensagem.com.br/noticias2022/2022/04/28/narrativas-ancestrais/#:~:text=%E2%80%9CAntes%20do%20Brasil%20da%20Coroa,de%20conhecer%20a%20hist%C3%B3ria%20ind%C3%ADgena%E2%80%9D. Acesso em: 11 jul. 2024.

[3] SANCHEZ, Patrícia Karina Vergara. Indómita versa: poesia feminista. Chile: Ginecosofía ediciones, 2017, p. 57-60.

[4] GOMES, Ana Maria (org.). Mundos indígenas. Belo Horizonte: Espaço do Conhecimento UFMG, 2020, p. 11. Disponível em: https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/wp-content/uploads/2018/03/ec-ufmg_2020_mundos-indigenas_catalogo_web.pdf. Acesso em: 11 jul. 2024.

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