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Vozes das poetas mortas

26 de outubro de 2023 Posted by admin In Colunas

Vozes das poetas mortas

O início do mês de outubro de 2023 foi marcado pelo derramamento de sangue inocente no Oriente Médio. A Palestina, desde o inicio do século XX, sofre um brutal processo colonizador de apartheid social e de expropriação de seu território. O mundo árabe pós-otomano foi fragmentado pela Inglaterra e França e contou com o apoio das elites monárquicas locais. Foi um período de revolta nos países do Oriente Médio, sobretudo contra o imperialismo franco-britânico e em combate à colonização sionista da Palestina.

O Mandato Britânico da Palestina operou entre 1920 a 1948 com vistas à pilhagem e subtração de territórios e de seus povos, reconfigurando o mapa geopolítico. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, houve um esforço das Nações Unidas e das organizações sionistas para a criação de um Estado judeu. A justificativa seria uma forma de reparação do Holocausto. A Revolução Árabe (1936-1939) foi um marco na resistência e levou a uma longa greve anticolonial, foram seis meses de greve nacional árabe em 1936. Entre 1947 e 1948, aconteceu a Guerra Civil e a Guerra árabe-israelense que culminam na criação do Estado de Israel em 14 de maio de 1948 [1].

Para além da luta armada, existe uma guerra de narrativas que demoniza o povo palestino para gerar uma comoção pública e fomentar o ódio ao povo árabe. Por isso, acho importante documentar visualmente a expropriação de terras que vem ocorrendo desde a criação do Mandato Britânico.

Os 75 anos de apartheid e genocídio do povo palestino são percebidos como um holocausto, e as ações militares de Israel, com apoio dos Estados Unidos, estão sendo nomeadas de nazisionistas. Sabemos que o Oriente Médio, assim como a América Latina e a África, vivemos sob o jugo da política armamentista norte-americana. A diáspora palestina, iniciada nas guerras de 1948 e 1967, causou um enorme deslocamento de pessoas. A Faixa de Gaza é, atualmente, considerada a maior prisão a céu aberto da história mundial. O Hamas não representa a voz e o desejo de todo um povo. O Hamas nasceu da fúria contra quase um século de destruição, tortura, estupros e morte de toda uma população.

Sabemos que os EUA desempenham um papel decisivo nas guerras. Em 2007, das 27 maiores guerras, 20 delas foram financiadas pelos norte-americanos, garantindo, com isso, um lucro de mais de 30 bilhões de dólares com a venda de armas [2]. Em 2022, o valor passou dos 200 bilhões, segundo a Money Times. Decorre daí o interesse do “tio Sam” em manter sob o seu jugo o Sul Global e estar alinhado às grandes potências imperialistas. 

 Neste ano, ao final de outubro, dois casos envolvendo escritoras palestinas chamaram a atenção da imprensa transnacional. Uma delas assassinada brutalmente pelo exército israelense-estadunidense durante um dos bombardeios contra civis na Faixa de Gaza. A outra, morta simbolicamente pelos alemães organizadores da 75ª edição da Feira do Livro de Frankfurt. O terror vivenciado no Oriente Médio e a culpabilização do povo palestino pela mídia hegemônica reforçam a tese de um esforço imperialista para proteger os crimes de guerra perpetrados por Israel-EUA contra o povo palestino. A feira do livro, ironicamente, tem a mesma idade do apartheid e do genocídio palestino, sua atitude mostrou sua face imperialista, racista, machista e ultraviolenta.

No dia 20 de outubro de 2023, o Ministério da Cultura palestino anunciou que a poeta Heba Abu Nada foi uma das vítimas dos bombardeios em Khan Yunis, na Faixa de Gaza. Seu primeiro romance Oxygen is not for the dead (2017) rendeu-lhe o segundo lugar no Prêmio Sharjah de Criatividade Árabe. Ela nasceu em Meca, em 1991, estudou bioquímica na Universidade Islâmica de Gaza e concluiu um curso de mestrado em nutrição clínica. O assassinato da jovem poeta causou uma comoção no mundo das letras, das artes, da cultura ou mesmo entre pessoas com um mínimo de empatia. Nas redes sociais, estamos compartilhando um de seus recentes poemas:

“A noite a cidade é escura,

exceto pelo brilho dos mísseis.

Silenciosa,

exceto pelo som dos bombardeios.

Aterradora,

exceto pela promessa lenitiva da oração.

Tenebrosa,

exceto pela luz dos mártires.

Boa noite!”

As cidades na Faixa de Gaza são escuras, os déspotas cortaram água, luz, fornecimento de alimentos e remédios. É silenciosa. O povo palestino vive em uma prisão a céu aberto há quase um século – nada podem falar ou fazer, o inimigo não dorme. É aterradora, pois, ao viver sob as botas de um tirano e saber do pacto de silêncio internacional, resta-lhes acreditar na justiça divina. Hoje, Heba Abu Nada é mais um nome na história dos mártires de seu povo.

Poeta e novelista palestina, assassinada por um bombardeio sionista, tinha 32 anos e uma vida repleta de poesia pela frente. Assim como o seu povo, ela queria a libertação. Deixou-nos um poema que foi recitado por ela e postado no YouTube durante uma entrevista. É um poema sobre a solidão da/na Palestina. Foi traduzido para o espanhol e está gravado no Twitter de Dani Mayakovski [3]:

Oh, solitarios, todos ganaron sus guerras y tú te quedaste solo, desnudo.

Ninguna poesía, oh Darwish [4], restaurará lo que los solitarios han perdido.

Oh, solitarios, ésta es otra era de ignorancia.

Maldito el que usó la guerra para separarnos y estar juntos en tu funeral.

Oh, solitarios, la tierra es un mercado libre y tu gran país es una subasta aprobada.

Oh, solitarios, nadie nos apoyará, en esta era de ignorancia.

Así que borrad vuestros viejos y nuevos poemas y el llanto.

Oh país, sé flerte.

O sentimento de solidão transformado em poesia pode nos oferecer pistas para entender o isolamento e o apartamento que seu povo vive desde o início do século XX. Diz ela: “Ninguém nos apoiará, nesta era de ignorância”. Em sua página de Twitter é possível ver algumas das imagens que ela compartilhou nos últimos anos e ver a divulgação de seu livro [5]. Trata-se de um arquivo virtual da jovem poeta morta, nestes dias de campanha de genocídio, pela ira militar de Israel-EUA.

A outra poeta que quero trazer à luz desta reflexão é Adania Shibli. Ela nasceu na Palestina em 1974. É PhD pela University of East London na área de Mídia e Estudos Culturais. Estudou, também, em Berlin. Trabalhou na Universidade de Birzeit, na Palestina. É autora do romance Minor detail, escrito originalmente em árabe, publicado em alemão em 2022. A tradução para o inglês rendeu-lhe a indicação aos prêmios National Book Award, em 2020, e Booker Internacional Prize, em 2021.

No dia 20 de outubro de 2023, mesmo dia do assassinato da poeta Heba, Adania Shibli receberia o LIBeraturpreis, prêmio concedido a escritoras do Sul Global por obra publicada em alemão. A cerimônia de premiação que iria homenagear a escritora ocorreria na Feira do Livro de Frankfurt. A homenagem foi cancelada sob o argumento da guerra em Israel, informou a LitProm, associação literária alemã que organiza o prêmio.

O livro foi traduzido para o Brasil pela Editora Todavia. Trata-se de uma obra que aborda a história de uma menina beduína palestina. O cenário é o deserto de Neguev. No verão de 1949, um ano depois do êxodo de Nakba que forçou o deslocamento de mais de 700 mil árabes para promover o Estado sionista de Israel, soldados israelenses atacaram um grupo de beduínos no deserto. A menina foi a única sobrevivente, todo aquele povo foi dizimado. Ela foi sequestrada, torturada e estuprada.

No mesmo dia, 20 de outubro de 2023, as duas poetas são mortas. Uma fisicamente pelos bombardeios do exército de Israel-EUA contra civis. A outra, simbolicamente, por contar a história de seu povo, que há quase um século sofre as consequências da invasão, exílio, tortura, prisão e morte de sua população. Ironicamente, os nazistas da Alemanha de ontem mataram e torturaram judeus, e, hoje, a atitude destes revela o apoio ao genocídio palestino cometido por Israel. A Europa branca, civilizada e limpinha se cala diante da barbárie que é cometida na Palestina desde o século XX e, hoje, usa a retórica do ataque do Hamas. O povo palestino não é o Hamas!

O sionismo e o imperialismo estão promovendo um show de horrores no mês de outubro. A barbárie levou o povo às ruas para pedir que cesse a violência e violação dos direitos humanos em Gaza. No dia 21 de outubro, ao redor do mundo, a multidão tomou às ruas pedindo libertação, reivindicando o direito de um corredor humanitário para resguardar a vida de civis, crianças, mulheres, mães, pessoas idosas, doentes. A ação global gerou a fúria dos militares de Israel-EUA que encenaram um dos piores bombardeios do período. Gaza foi alvejada de norte a sul. Os alvos foram os civis, as crianças, as mulheres, as mães, as pessoas idosas, os doentes, os hospitais. Os protetores dos animais não humanos mostram os horrores que estes seres inocentes estão sofrendo. Seus corpos mutilados espalhados pelas ruas ou soterrados pelos escombros.

A luta global é pelas vidas, não somente do povo palestino, mas da Cisjordânia, do Líbano e, inclusive, do povo de Israel que não pode se opor ao terrorismo de Estado. Não se iluda, o pior terrorista é quem lucra com a venda de armas, quem se ocupa em fomentar guerras para gerar lucro com o sangue inocente. “Nesta era de ignorância”, precisamos abraçar o conhecimento e combater a bestialidade, a desumanidade, a estupidez. No Twitter do Hoy Palestina foi disponibilizada a tradução para o espanhol da última mensagem de Heba em sua rede social, ela escreveu: “Se morrermos, saibam que estamos firmes, e digam ao mundo o nosso nome, que somos pessoas justas, ao lado da liberdade”. Boa noite, Heba Abu Nada! Tua juventude foi ceifada, tua poesia reverbera ao redor do mundo.

Palestina livre do rio ao mar!

Notas:

[1] Dossiê Palestina. Letralivre: revista de cultura libertária, arte e literatura, a. 14, n. 50, Rio de Janeiro, 2009.

[2] Dossiê Palestina. Letralivre: revista de cultura libertária, arte e literatura, a. 14, n. 50, Rio de Janeiro, 2009.

[3] Ela fez referência ao poeta e escritor Mahmoud Darwish (1941-2008). Ele foi um poeta e escritor palestino, nasceu no período do Mandato Britânico. Entre 1961 e 1967, foi preso e torturado pelo Estado Islâmico. Em 1970 passou a viver como refugiado. Foi autorizado a retornar em maio de 1996 para o funeral. O poema de Heba fala dos malditos que usam a guerra para separar o povo e suas famílias e para reunir nos funerais.

[4] A tradução para o espanhol está publicada no Twitter:  https://twitter.com/DaniMayakovski/status/1715894280592453771.

O vídeo original está publicado no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=T65eqU3_NTI&t=33s.

[5] https://twitter.com/HebaAbuNada.

[6] https://twitter.com/HoyPalestina.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.