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Ainda hoje, Maria Lacerda de Moura nasceria fora de seu tempo…

Ainda hoje, Maria Lacerda de Moura nasceria fora de seu tempo…

No dia 16 de maio de 1887 nasceu Maria Lacerda de Moura, na fazenda Monte Alverne em Manhuaçu-MG. Ela foi pacifista, vegetariana, escritora, oradora, educadora e, sobretudo, uma mulher à frente do seu tempo. Ainda pequena, sua família mudou-se para Barbacena, onde ela cursou a Escola Normal e, desde então, atuou em diferentes frentes educacionais, no ensino formal e informal. Casou aos 17 anos de idade e, enfrentando todas as convenções, divorciou e não teve filhos naturais, mas adotou, em 1912, Jair, um sobrinho, e Carminda, uma órfã. Na mesma época, iniciou sua carreira de professora, trabalhou para a construção de um lactário e para a criação da Liga contra o Analfabetismo em Barbacena. Durante esse período, Maria Lacerda relata, em sua autobiografia, que enfrentou problemas na sua família quando começou a publicar crônicas em jornais da cidade – típica do interior mineiro –, onde começou a perceber e se rebelar contra variadas formas de opressão e preconceitos.

Ao redor do mundo, os neofascistas se levantam das tumbas reagrupando líderes populistas que encenam diante da mídia uma falsa oposição para alimentar a fogueira da guerra econômica e, novamente, ampliar a distância entre as famílias mais ricas e poderosas da multidão faminta e doente. Maria Lacerda, uma das vozes libertárias que fez frente no combate ao nazifascismo, no início do século XX, foi contra a guerra e alertou sobre os perigos da indústria armamentista. Ela foi uma pacifista que levou muito a sério o “não matarás”, inclusive para as pessoas não humanas. O vegetarianismo vinha crescendo, sobretudo nos grupos anarquistas, e, para ela, era uma forma de resistência ao modelo econômico predatório, sanguinário e destrutivo.

Meu encontro com Maria Lacerda de Moura não aconteceu por acaso, desde muito jovem me alimento da literatura anarcofeminista. Faço minhas as palavras da historiadora Margareth Rago: “Mesmo nos países em que a literatura feminista logrou maior esplendor, escritoras do porte de Maria Lacerda não abundam” (2007, p. 266). Concordo com a autora, pois acredito que o pioneirismo da libertária brasileira esteja muito além do que os estudos mostraram, mesmo depois do aniversário de um século de sua primeira obra.

Em 2012 estive no Encontro Nacional de Direitos dos Animais, no Parque Ecológico Visão do Futuro, em Porangaba-SP, e, através da palestra do Promotor de direitos dos animais, Laerte Levai, tomei conhecimento de que as lutas da escritora eram também pela libertação animal. Veganistas e ecologistas hoje estão recuperando a trajetória de pessoas que foram pioneiras nas frentes de batalha pelo meio ambiente e pelas pessoas não humanas. Desde o momento de descoberta das conexões entre pensamentos libertário, feminista e a luta em defesa das pessoas não humanas, eu venho lendo e escrevendo sobre a obra de Maria Lacerda de Moura, que, em 2020, culminou no meu primeiro livro sobre ela, Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura, em que abordo a questão, sobretudo seus escritos sobre antivivissecção e vegetarianismo.

O termo que utilizo, “pessoa não humana”, foi cunhado pela primatóloga Barbara Smuts. O dicionário Michaelis online considera o termo “pessoa” como “criatura humana”, um “ser eminente ou importante”, com “caráter peculiar que dá distinção a alguém”. E vai além, diz que, na narrativa cristã, ser uma pessoa significa estar consciente de sua liberdade e responsabilidade, que são determinadas pela dimensão moral e espiritual. Já a gramática indica alguém que participa de um discurso. Por isso, entendo que utilizar “pessoa” para os animais não humanos significa transgredir um discurso criado pelo humano especista, que desconsidera todas as outras formas de vida, ou considera inferior, portanto passível de exploração.

Provavelmente Maria Lacerda tenha sido a primeira pessoa no Brasil a adentrar profundamente nos temas referentes à defesa das pessoas não humanas e a relação destas com a má distribuição de terras e a produção de alimentos em escala industrial. Ela escreveu, em 1932 (p. 233), sobre o tema: “No dia em que a mulher se dispuser a libertar-se do jugo do estômago civilizado, passar a comer frutas e legumes, a apagar o fogo doméstico que é o fogo eterno do inferno feminino na sua escravidão ao estômago do homem – nesse dia ela recomeçará a sua autoeducação física e mental e iniciará a sua verdadeira libertação humana”.

A ciência e a tecnologia deveriam ter utilidade e proporcionar bem-estar social, em uma sociedade utópica, onde a propriedade coletiva dos meios de produção e a emancipação feminina prevalecesse, e o abandono das cidades, considerado um locus para a aplicação da ciência e da tecnologia, fosse seguido por uma integração orgânica com a natureza através do trabalho rural coletivo, eis a proposta de Maria Lacerda de Moura. A ideia de “estômago civilizado” é uma severa crítica ao modelo alimentar burguês centrado na carne e nos alimentos industrializados. Ela foi pioneira ao criticar o modelo industrial na produção de alimentos e as consequências devastadoras para as famílias de pequenas propriedades rurais. Os textos libertários de Maria Lacerda de Moura são narrativas de resistência feminista e libertária, são repletos de deslocamentos e ressignificações utópicas escritos em um momento de profunda transformação socioeconômica e estão em diálogo com um pensamento anarquista internacional que questiona a ideia de progresso prometido no processo de constituição e difusão massificada da ciência e da tecnologia.

Ela foi muito além dos seus direitos. Como mulher e como humana, ela lutou pela libertação das pessoas dos grilhões que as acorrentaram ao Estado, ao clero e às tradições. Mas, ela foi além, provavelmente, tenha sido a primeira mulher no Brasil a escrever e lutar pela libertação animal, pela libertação de Gaia ou Pachamama, nossa Mãe Terra das culturas e cultos andinos. Em muitos de seus escritos a luta antivivisseccionista soma-se ao vegetarianismo e ao trabalho na terra para produção de alimentos livres de veneno e da indústria. Nas palavras dela: “Se ninguém plantasse senão o estritamente necessário para si e para os seus filhos menores, para os velhos e para as mães e as crianças e os inválidos da sua família, ao mesmo tempo praticando o auxílio mútuo, – não se formariam ‘trusts’ de café, de açúcar, de algodão, de arroz, de trigo, de mate, de todos os gêneros de primeira necessidade, para fortuna dos reis da agricultura industrializada – que não plantam e enriquecem à custa do suor dos que plantam” (2020 [1931], p. 34).

Seus escritos sobre a crítica à agricultura industrializada e sua proposta de vegetarianismo avolumou-se depois de sua experiência em uma comunidade rural autogestionária. Em 1926 ela conheceu André Néblind, um francês desertor da Primeira Guerra Mundial, e, em 1928, ela vai viver com ele em uma comunidade agrícola em Guararema, interior de São Paulo. Vivendo na comunidade libertária, já divorciada, ela iniciou uma nova fase em sua vida, marcada por encontros com outras pessoas que compartilhavam os ideais anarquistas, revolucionários e pacifistas.

As abordagens sobre a exploração das pessoas não humanas tomam variadas formas na obra da autora mineira, são elas: a crítica à ciência e à vivissecção, a crítica à indústria da carne, à instrumentalização dos corpos humanos e não humanos e a proposta de uma alimentação vegetariana. Entre final do século XIX e início do século XX, é possível encontrar inúmeras mulheres escritoras feministas e abolicionistas que escreveram sobre o tópico: Annie Besant, Clara Barton, Matilda Joslyn Gage, Elizabeth Cady, Lou Andreas-Salomé, Alice Park, Agnes Ryan dentre outras. Maria Lacerda fez eco às mulheres de sua época e foi uma voz insurgente pelas pessoas não humanas.

Há ampla evidência de uma ligação clara entre a natureza dos experimentos com animais e da forma de opressão a que as mulheres da era vitoriana foram submetidas. A opressão feminina naquela época incluía as ideias de fragilidade e de propriedade. Os animais e as mulheres eram vistos como propriedade e sem os direitos que derivam de possuir a propriedade; é possível, assim, fazer comparação entre os dispositivos cirúrgicos utilizados em animais e o tratamento médico das mulheres, incluindo o parto e os costumeiros exames ginecológicos.

É possível analisar a visão de Maria Lacerda sobre a ciência e a tecnologia, como descrito na obra Civilização: tronco de escravos, sobretudo, no capítulo intitulado “A ciência a serviço da degenerescência humana”, em que a autora critica o modelo de apropriação do conhecimento científico e tecnológico do capitalismo. Seguindo a tradição anarquista, ela percebe a ciência e a tecnologia como potencialmente emancipadoras. Ela denuncia essa produção de conhecimento como “pervertida e prostituída”, já que “o capitalismo industrializado assume todo esse esforço científico, mesmo enquanto ainda é um embrião, de tal maneira que a energia humana é canalizada para uma única direção: a luta para a competição, a concorrência econômica, o poder econômico bélico, o nacionalismo e, fruto dos anteriores, a guerra” (2020 [1931], p. 10).

Ela buscou a paz mesmo em um momento de guerras e, depois de sua morte silenciosa, um texto anônimo publicado em São Paulo, em 1945, deixou-nos uma pista sobre a magnitude de sua busca: “Um dia, desgostosa da multidão, retirou-se para Guararema e lá viveu num rancho, à beira da estrada. Mais tarde, lá mesmo, não encontrou a paz que desejava e retirou-se para o Rio de Janeiro, fixando-se num daqueles subúrbios que parecem a mil quilômetros do mundo. Estudava, como sempre. E o seu estudo foi tão profundo que ela acabou por perder contato com os homens. Penetrou pela porta estreita da metafísica, libertou-se, alcançou climas tão altos e tão diferentes que quando ela falava os homens do quarteirão sorriam” (1945, p. 6).

 Maria Lacerda faleceu no dia 20 de março de 1945, na cidade do Rio de Janeiro, aos 57 anos. Teve uma vida curta, mas muito intensa, que precisa ser lembrada, contada, reverberada. Sua experiência em Guararema pode nos dizer muito sobre a necessidade de economias solidárias, sobre o vegetarianismo e a ética com relação às outras espécies, sobre as comunidades libertárias, a vida no campo, o meio ambiente, a produção e o consumo de alimentos orgânicos, sobretudo nestes tempos de envenenamento dos nossos corpos, do nosso solo, das nossas águas e, por que não dizer, da vida planetária. Seus diversos escritos estão espalhados por aí em jornais, livros, livretos, revistas etc. à espera de outros diálogos. 

Pachamama está em chamas e os sinais da catástrofe já foram denunciados por ecofeministas, ambientalistas e ecologistas. A pandemia e todas as outras doenças criadas nos grandes cativeiros de dólar e de sangue da indústria da carne são consequências da exploração capitalista e patriarcal. Os “estômagos civilizados”, como dizia Maria Lacerda de Moura, são os estômagos que ardem pelo peso de uma alimentação industrial, regada a veneno, com o dissabor dos transgênicos, dos alimentos ultraprocessados e, sobretudo, com o peso da carne de outra pessoa, que, como nós, humanos, nasceu para viver livremente.

O respeito às pessoas não humanas pode ser o início de uma transformação na vida planetária, na relação humanidade-animalidade-plantas, para avançarmos em direção aos modos de existência mais afetivos e criativos. A empatia e o amor interespécie significa pensar que as outras formas de vidas importam, que nos modificam e que criam novas formas de convívio.

Lutemos pela libertação humana, não humana e planetária como queria Maria Lacerda de Moura!

 Sugestão de leituras:

LESSA, Patrícia. Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Entremares, 2020.

MOURA, Maria Lacerda [1931]. Civilização, tronco de escravos. 2. ed. LESSA, Patrícia; MAIA, Cláudia (org.). São Paulo: Entremares, 2020.

MOURA, Maria Lacerda. Amai e… não vos multipliqueis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1932.

RAGO, Margareth. Ética, Anarquia e Revolução em Maria Lacerda de Moura. In: REIS, Daniel Aarão; FERREIRA, José (org). As esquerdas no Brasil, v.1, A formação das Tradições, 1889-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 262-293.

UMA ESCRITORA. Notícias diversas, O Estado de São Paulo, n. 23, a. 165, p. 6, 29 mar. 1945.


Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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