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Conversa suave, de Joyce Chopra

11 de agosto de 2023 Posted by admin In Colunas

Conversa suave, de Joyce Chopra

As histórias sobre amadurecimento (ou coming-of-age), em geral, possuem enredos bastante simples: em um recorte curto da vida dos protagonistas, eles passam por momentos transformadores que contribuem para a sua saída da adolescência e entrada na vida adulta.

Assim, os eventos retratados não costumam ser grandiosos e as narrativas pertencentes a esse estilo de cinema priorizam aspectos psicológicos. Então, processos internos têm tanta importância quanto o que vemos em tela, de modo que o coming-of-age exige investimento emocional por parte do espectador.

Na década de 1980, esse “gênero” se tornou popular pelas mãos de John Hughes, responsável por clássicos como Clube dos Cinco, Curtindo a Vida Adoidado e Gatinhas e Gatões. De uma forma bem-humorada, o diretor se valia do universo de adolescentes para estudá-los e fazia isso de um modo que a sua produção fosse acessível para os jovens, que eram o seu público-alvo. Essa escolha rendia tanto sequências engraçadas, como Ferris Bueller (Matthew Broderick) levantando a multidão com Twist and Shout em um desfile, quanto momentos de muita sinceridade, como a cena em que os personagens de Clube dos Cinco conseguem se enxergar para além dos estereótipos que assumem nos corredores da escola.

Apesar de Hughes ter sido o grande destaque mainstream do coming-of-age oitentista, o estilo de cinema também foi um terreno bastante frutífero para a produção cinematográfica feminina, visto que essa década marcou o começo da carreira de diretoras como Amy Heckerling (Picardias Estudantis), Penny Marshall (Quero Ser Grande), Susan Siedelman (Smithereens), Martha Coolidge (Sonhos Rebeldes) e Joyce Chopra, que assina uma das maiores pérolas do estilo quando se fala sobre retratos de garotas adolescentes: Conversa Suave (Smooth Talk, 1985), filme que passou anos esquecido e foi resgatado em 2020 após um relançamento em festivais e mídia física.

Baseado no conto Where Are You Going, Where Have You Been?, de Joyce Carol Oates, Conversa Suave nos coloca como observadores da rotina de Connie (Laura Dern), uma garota de 15 anos que mora com a sua família em uma casa de fazenda no subúrbio. Durante as suas férias de verão, ela faz uma série de atividades comuns com as suas amigas e evita ao máximo o ambiente doméstico, tanto pelo tédio quanto por sua relação conflituosa com Katherine (Mary Kay Place), a sua mãe.

Dessa forma, os dois primeiros atos de Conversa Suave se dedicam à construção da imagem de Connie nos espaços pelos quais ela transita. Ao lado de Jill (Sara Inglis) e Laura (Margaret Welsh), a menina vaga pelo shopping da cidade demonstrando autoconfiança, usa roupas que ressaltam os seus atributos físicos e está sempre prestando atenção nos garotos ao redor, bem como tentando encontrar situações nas quais possa se colocar em contato com eles.

Entre sequências em lojas e conversas na fila do cinema, o que mais chama a atenção são os momentos nos quais a protagonista aparece no dinner à beira da estrada. Nesse ambiente, ela flerta abertamente e, por vezes, aceita deixar o local na companhia de algum rapaz. Porém, não é difícil perceber que Connie está apenas replicando um comportamento que aprendeu em revistas femininas: o seu rosto parece concentrado demais e os seus gestos cuidadosamente calculados. Além disso, uma vez que a possibilidade de um contato íntimo se torna tangível, a personagem acaba abandonando os seus encontros sem maiores explicações. Logo, é possível notar que as suas idas ao dinner têm muito mais a ver com um desejo de ser apreciada do que com um interesse por sexo.

Isso pode ser corroborado pela cena na qual ela volta sozinha para casa. Nela, Connie está caminhando por uma estrada escura e praticamente deserta quando acaba chamando a atenção de um grupo de jovens que está passando de carro. Nesse momento, a garota se irrita pela forma como é abordada, visto que acredita existir um contraste entre ouvir cantadas sendo gritadas aos quatro ventos e ditas na forma de uma conversa suave. Ainda que os dois “modus operandi” partam do mesmo tipo de ideia e tenham a mesma motivação, Connie não é capaz de perceber essa sutileza devido à sua inexperiência. Então, para ela, os garotos com quem flerta estão lhe oferecendo afeto e atribuindo importância à sua presença; enquanto os que passam de carro estão somente avaliando-a pela sua aparência, algo que não faz com que ela se sinta vista.

Vale comentar também que essa necessidade de ser apreciada tem ligação direta com a dinâmica familiar da personagem, em particular com a sua relação com a mãe, que favorece abertamente June (Elizabeth Berrige), a filha mais velha. O clima de hostilidade e incompreensão é estabelecido ainda na primeira cena em que vemos Katherine e Connie interagindo: a menina está no seu quarto ouvindo música e se preparando para sair com as amigas quando a mãe entra, olha para ela e diz que só enxerga “devaneios inúteis”. Além disso, Connie é constantemente cobrada em assuntos relativos à reforma da casa da família, em especial sobre a sua incapacidade de ajudar a acelerar o processo. Embora esses diálogos sirvam para acentuar a sobrecarga materna, visto que o pai está constantemente ausente devido ao seu trabalho, a mesma cobrança não recai sobre June, o que demonstra que Katherine apenas não sabe acessar a sua filha mais nova e prefere assumir um tom condenatório diante da sua necessidade de se encontrar enquanto sujeito.

Outro ponto interessante sobre as sequências nas quais Connie aparece convivendo com a sua família é a forma como a sua postura muda drasticamente. Com os ombros arqueados e os braços entrelaçados ao redor do corpo, ela parece deslocada e incomodada. Além disso, está constantemente voltada para dentro de si mesma e não se parece em nada com a garota extrovertida que assistimos nas demais sequências. A única coisa que Connie conserva é o seu senso de rebeldia, visto que ela se recusa a participar de atividades como o churrasco de vizinhos que o seu pai estava ajudando a organizar. E é exatamente essa recusa que abre espaço para que Conversa Suave se transforme em um thriller psicológico no seu último ato.

A mudança de tom acontece por meio da introdução de Arnold Friend (Treat Williams) na história. Ele é um homem mais velho, na casa dos 30 anos, que tem acompanhado Connie à distância. Conforme o diálogo entre os dois avança, é notável que Arnold já observou o bastante para colher elementos que pudesse usar para intimidar a menina e convencê-la a dar um passeio de carro com ele. Friend assume um comportamento predatório desde o seu primeiro momento em cena, e, mesmo se deixamos de lado a linguagem corporal, o principal elemento que denuncia as suas intenções, é curioso notar como o que ele diz pra Connie não se difere tanto do que os garotos do dinner dizem. Inclusive, o tom suave também está presente, mas no caso de Arnold ele serve para esconder a ameaça velada e o fato de que ele não está disposto a aceitar um “não” como resposta.

Os elementos discursivos e as atuações são fundamentais para que a apreensão cresça na última meia hora de Conversa Suave e quando eles se somam à ambientação, tanto pelo isolamento da casa de fazenda quanto pela fragilidade da porta de tela que separa Connie e Arnold, quem assiste se vê tão encurralado quanto a protagonista. Para além da construção da tensão, tudo isso serve também para justificar o uso de dois terços do filme para a construção de identidade de Connie. Na reta final do longa, embora ela esteja sendo lida por Friend como uma garota de “espírito livre”, ela está ocupando um espaço no qual pode deixar de lado a sua imagem cuidadosamente construída e ser o que é: uma menina de 15 anos que está procurando afeto nas pessoas erradas através das ferramentas erradas. E uma vez que não existe ninguém para impressionar ou mesmo o desejo de impressionar, Connie está vulnerável e não há nada que ela possa fazer para se esquivar da atenção indesejada.

Ainda que Joyce Chopra escolha, acertadamente, não mostrar o que acontece entre os personagens depois que eles partem para o passeio de carro, as sequências finais de Conversa Suave nos dão elementos suficientes para concluir, seja pela expressão no rosto de Connie ou por sua tentativa de resgatar momentos da sua infância através da música. Depois de voltar para casa, ela está acompanhada de sua irmã no quarto. Então, assume comportamento frágil e coloca para tocar uma canção que as duas costumavam ouvir com a mãe. A trilha sonora, bem diferente do pop rock que Connie escuta quando está sozinha, nos faz perceber que algo mudou internamente e, de repente, é como se ela não tivesse mais pressa de ser percebida como uma mulher porque, na verdade, a sua busca dizia muito mais respeito à carência afetiva do que a vontade de assumir um papel de adulta.

É bastante comum que os coming-of-age protagonizados por meninas façam esse tipo de caminho porque o crescimento das personagens não está ligado somente a uma experiência transformadora, mas à percepção de que adentrar o universo de mulheres adultas é algo muito mais complexo do que explorar possibilidades, estejam elas ligadas ao campo afetivo ou não. É também aprender a estar em constante estado de alerta e ciente de que o mundo não foi pensado para que a sua liberdade seja exercida sem ressalvas. E, principalmente, é saber navegar por essas questões sem se deixar paralisar. Portanto, o desejo de Connie por um retorno à infância encontra ecos nesses pontos, que infelizmente chegaram até ela de uma maneira violenta, mas que teriam lhe alcançado de qualquer outra forma – e isso é algo que o coming-of- age das últimas duas décadas demonstra com clareza por meio de títulos que vão do horror de It – A Coisa (It, 2017) ao desconforto de Oitava Série (Eight Grade, 2018).

Então, o que separa Conversa Suave de outras histórias sobre amadurecimento é o entendimento das implicações de crescer sendo uma garota em um mundo que sequer oferece opções saudáveis de inspiração. Joyce Chopra consegue colocar essas discussões nas entrelinhas do seu filme sem se esquivar de temas difíceis ou tratá-los de maneira panfletária e verborrágica, o que seria um equívoco em uma arte que é, antes de tudo, imagem. Através dessas escolhas, a diretora demonstra entendimento não só de Connie, mas de uma geração que cresceu em um período histórico turbulento e marcado por diversas mudanças coletivas de mentalidade que impactaram significativamente a maneira de sujeitos jovens de se colocarem no mundo e, claro, à forma como o mundo respondia a essas novas formas de existir.

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Amanda Guimarães – Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), atua há mais de 10 anos como corretora de textos e redatora e escreve sobre cultura em vários sites pela internet afora desde 2012. Obcecada por cinema de horror, gatos e música dos anos 90, curte viajar para festivais e ficar em casa rodeada de suas gatas.