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Solta a voz, garota!

Solta a voz, garota!

O Dia Internacional das Meninas, 11 de outubro, foi criado pela Organização das Nações Unidas em 2012. A data é pouco conhecida e sua gênese colabora na reflexão acerca da educação de milhares de meninas ao redor do mundo. O que nos faz pensar sobre as oportunidades e os pilares que estamos construindo para o futuro delas.

Sabemos que no Sul Global crianças e jovens sofrem maior vulnerabilidade social. Dentre os agravos sociais estão: a falta de acesso aos estudos, a exploração do trabalho infantil, a violência doméstica, a pedofilia, a saúde precarizada, a vulnerabilidade territorial, a insegurança alimentar, dentre outros fatores. Segundo o Instituto Patrícia Galvão, o “estupro de vulnerável: crianças e adolescentes de até 13 anos são mais da metade das vítimas de violência sexual (57,9%)” [1]. O Brasil ocupa o 2º lugar no ranking de exploração sexual infantil, segundo a ChildFund Brasil.

Para uma análise do contexto brasileiro, é importante interseccionalizar as desigualdades de gênero, etnia/raça e classe. Segundo o Atlas da Violência produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: “Em 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Em termos relativos, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 2,5, a mesma taxa para as mulheres negras foi de 4,1. Isso quer dizer que o risco relativo de uma mulher negra ser vítima de homicídio é 1,7 vezes maior do que o de uma mulher não negra, ou seja, para cada mulher não negra morta, morrem 1,7 mulheres negras” [2]. Portanto, as mulheres e as meninas não brancas são mais vulneráveis ainda.

Muitas meninas do Sul Global são diretamente afetadas pelos horrores da pobreza extrema, das guerras, do trabalho infantil, da exploração sexual, da fome, da violência em suas inúmeras manifestações. Segundo o levantamento da UNESCO, em 2016, cerca de 16 milhões de meninas entre 6 e 11 anos nunca irão à escola [3]. Os dados são alarmantes e merecem um olhar cuidadoso.

Em face dos problemas que atormentam as jovens ao redor do globo, vemos um movimento nunca antes percebido ao longo da história. Para Philippe Ariès, em seu estudo sobre a representação da criança na iconografia medieval, o sentimento de infância, aqui entendido como a consciência de sua particularidade, estaria ausente na maioria das representações da criança, na medida em que nelas se retratava um ser com feições de adulto num corpo com pequenas proporções, uma miniatura de adulto. Para ele, “é difícil crer que esta ausência se devesse a incompetência ou a falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo” [4].

De uma ausência da infância na história vemos emergir, na atualidade, movimentos de grande alcance social idealizados por crianças e jovens. Nunca houve nada parecido na história. As crianças estão lutando para salvar o mundo que os adultos destroem continuamente. Muito ainda será estudado sobre esse fenômeno contemporâneo. Para tal propósito, é preciso entender o que as move, por exemplo, nesta declaração: “Como nossos líderes comportam-se como crianças, nós teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo atrás”, afirmou a sueca Greta Thunberg durante a Cúpula do Clima, realizada na Polônia em dezembro de 2018.

Enquanto os adultos se comportam de forma infantilizada e colocam em risco o futuro da humanidade, as crianças tomam a frente dos dilemas que atormentam o mundo. Para pensar nessa perspectiva, selecionei alguns nomes de meninas para conhecermos as suas bandeiras de luta. O nome de Greta Thunberg já ecoou por todos recantos e motiva afetos e desafetos, sobre ela existem vários livros traduzidos em muitos países. E em 2023 ela publicou sua primeira obra: The climate book. Com certeza muitas outras virão, aguardamos a tradução para o português.

Como ela, outras meninas fazem movimentos importantes para abordar temas urgentes. Você já ouviu falar na Ellyanne Wanjiku, Autumn Peltier, Txai Suruí, Malala Yousafzai ou Ahed Tamimi? Pois bem, são meninas que estão fazendo história e já são ativistas reconhecidas mundialmente.

O livro Trois filles debout: Greta, Ellyanne, Autumn, engagées pour le climat, escrito por Séverine Vidal e ilustrado por Anne-Olivia Messana, aborda a história do engajamento das jovens ativistas em prol da questão climática. Elas vivem em diferentes continentes, lutam contra o desmatamento, abordam alguns temas como as mudanças climáticas, o agronegócio, o envenenamento da terra, o veganismo, a ecologia, dentre outros. Todas são reconhecidas por suas ações e discursos bem fundamentados [5].

Ellyanne Wanjiku nasceu em 2011 na República do Quênia, na África Oriental, é vencedora do prêmio Eco Warrior. Em 2018, ela foi nomeada a Mashujaa mais jovem do Quênia, título dado para pessoas que desenvolvem projetos que ajudam a população. É a embaixadora mais jovem das mudanças climáticas do Quênia. Aos 4 anos, na escola, fizeram um projeto sobre heróis/heroínas. A lista incluía Martin Luther King, Henry Wanyoike, Uhuru Kenyatta, Florence Nightingale, Barack Obama, Wangari Maathai, Nelson Mandela e Mahatma Gandhi. Inspirada neste trabalho, ela começou a estudar e trabalhar para reflorestar. Wangari Maathai, educadora e ativista política do meio ambiente do Quênia, tornou-se uma referência para a menina que decidiu seguir os seus passos. Foi assim que, aos dez anos, Ellyanne se tornou a força motriz para a plantação de milhares de árvores em seu país.

Ela participou da COP28 e, em junho de 2023, ministrou palestra junto com Licypriya Devi Kangujam – ativista da Índia, com 12 anos de idade – e Chloe Ochalik – de 11 anos, nascida em Fiji, hoje vive na Polônia. As três meninas ministraram conferência em evento online internacional sobre a questão ecológica. Em um contexto onde muitos adultos fogem dos estudos e usam as redes sociais para falar todo tipo de absurdo, é inusitado ver meninas criando propostas, estudando e discursando em eventos internacionais sobre o que devemos fazer pelo nosso planeta para “adiar o fim do mundo”, como diz Ailton Krenak.

Autumn Peltier é uma indígena Anishinaabe que nasceu em 2004 no Canadá. Ela é a protetora chefe da Água da Nação Anishnabek, é conhecida como a guerreira da água.  Aos 13 anos ela discursou na Assembleia Geral da ONU, recebeu a Medalha Soberana de Voluntariado Excepcional do Governador-Geral do Canadá e do Vice-Governador de Ontário. Ela foi palestrante de destaque no Fórum Econômico Mundial, foi selecionada quatro vezes para o Prêmio Internacional da Paz para Crianças e, em 2021, foi incluída na lista das 50 maiores personalidades canadenses da Macleans Canada’s Magazine. Em 2022, Peltier foi homenageada com Honoris Causa da Royal Roads University, recebeu o prêmio Daniel Hill da Comissão de Direitos Humanos de Ontário e o prêmio de líder canadense emergente do Fórum de Políticas Públicas. Em 2023 foi lançado na HBO Canadá o documentário The Water Walker, sobre a jovem indígena.

Outra indígena com reconhecimento internacional é Txai Suruí, nascida em Rondônia, em 1997. Ela é uma conhecida ativista brasileira da etnia suruí, é feminista, participante ativa do Movimento da Juventude Indígena e integrante do Kanindé, movimento em defesa dos direitos indígenas. Foi a primeira indígena a discursar na abertura de uma Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas, COP26, em 2021.

Ela é poliglota, e foi na “escola de brancos” que ela descobriu o que significa racismo. Sempre foi uma aluna de destaque, o que a levou a entrar na faculdade antes mesmo de terminar o ensino médio. Foi aprovada no Enem na Universidade Federal de Rondônia para cursar Direito e teve que entrar com um mandado de segurança para que a aceitassem. Ela cursou o último ano do ensino médio e o primeiro de faculdade juntos, onde seguiu enfrentando a rotina do preconceito e do bullying. Foi a única indígena de sua turma. Ela é conselheira do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia, da World Wildlife Fund (WWF) e do Pacto Global da ONU, além de voluntária da ONG Engajamundo. Txai Suruí é exemplo para outras meninas indígenas.

A dificuldade de acesso à educação é uma questão que remete ao sexismo, ao racismo e ao classismo. Uma das barreiras é a falta de acesso a escolas e falta de apoio do Estado. Há casos mais graves nos quais o Estado proíbe as meninas de estudar, foi o que ocorreu com Malala Yousafzai – nasceu no Paquistão em 1997 e mora na Inglaterra.  Aos 13 anos, ela alcançou notoriedade ao escrever para um blog explicando sua vida sob o regime do Tehrik-i-Taliban Pakistan (talibã paquistanês). O regime fechou escolas públicas e proibiu a educação de meninas entre 2003 e 2009.

Em 9 de outubro de 2012, ela foi atacada por um miliciano talibã, foi alvejada na cabeça e passou por várias cirurgias. Assim como ela, outras meninas também foram baleadas quando saíam da escola. Ao redor do colégio onde as meninas estudavam, uma multidão foi protestar. O caso ganhou repercussão mundial. Malala ficou quase um ano internada e recebeu apoio de figuras ilustres como Susan Rice, Desmond Tutu, Barack Obama, Madonna dentre muito outros nomes. Em 12 de julho de 2013, Malala comemorou seu aniversário de 16 anos discursando na Assembleia da Juventude na ONU em Nova Iorque. Ela falou sobre o direito das meninas aos estudos. Desde então, ela tornou-se um símbolo global na luta pelo direito das meninas aos bancos escolares. Em 2014, ela tornou-se a pessoa mais jovem a ter ganhado o Prêmio Nobel da Paz.

E por fim, não podemos esquecer de Ahed Tamimi, que luta desde a infância pela libertação da palestina. Ela nasceu na Cisjordânia em 2001. Ficou mundialmente conhecida em 2012, aos 11 anos de idade, quando foi filmada resistindo à prisão de sua mãe. Em 2017, esteve nas manifestações contrárias à decisão dos Estados Unidos de reconhecerem Jerusalém como capital de Israel. Foi pressa em 2018 e no dia 6 de novembro de 2023. A notícia de sua prisão chegou em meio ao novo massacre perpetrado por Israel, que alega estar em guerra contra o Hamas, mas mata civis e explode crianças e bebês. O Hamas é uma milícia de resistência palestina fundada nos anos 1980. A invasão de terras, a tortura, o trabalho escravo, a expulsão e o extermínio do povo palestino começaram em 1948 [6]. Vale lembrar que violência gera violência, portanto não é possível imaginar um povo sendo exterminado de forma pacífica. Como dizia Mahatma Gandhi, “olho por olho” e um dia toda humanidade estará cega.

Sabemos que o exército e a polícia de Israel são extremistas, violentos e uma das forças armadas mais cruéis da história. Lamentavelmente, o povo judeu sofreu as consequências do nazismo na Alemanha, agora os sionistas reproduzem a violência e o genocídio de um povo. O holocausto palestino é um projeto colonizador sionista dos Estados Unidos e da Europa para exterminar um povo e “recompensar” os judeus, que foram algumas das vítimas do nazismo. Ironicamente, hoje os sionistas são nomeados nazisionistas, e o extermínio de palestinos já é bem maior que o de judeus promovido por Hitler.

O mundo está indo às ruas pelo povo palestino. A jovem Ahed Tamimi foi uma das reféns liberadas durante o período de trégua para troca de prisioneiros políticos. Muito foram os relatos de tortura e crueldade dentro das prisões israelenses. Hoje as pessoas do mundo todo estão acordando e lutando contra o sangrento colonialismo perpetrado contra os palestinos por Israel, com apoio e financiamento de armas dos EUA e da Europa. Assim como os povos indígenas da América Latina e o povo negro da África, a Ásia e o Oriente Médio são sempre os alvos dos imperialistas no Norte Global que, para saquear terras e recursos naturais, perpetua a barbárie durante séculos.   

Ao ler e saber sobre as meninas ativistas, podemos arrancar um sopro de esperança para o futuro. Esperamos que os meninos sejam ensinados e aprendam a gostar mais dos livros e dos estudos do que das armas e da violência. No início do século XX, anarquistas pacifistas usavam o termo “bala de canhão” para os homens que se alistavam nos exércitos para matar quem eles não conheciam e morrer em nome dos imperialistas, que nunca vão para a guerra. Quem sabe deixando de sonharem em tornar-se uma “bala de canhão” e se empenhando nos estudos, os meninos poderão se engajarem em alguma causa coletiva e, lado a lado com as meninas, construírem um futuro melhor para as próximas gerações.  

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] VIOLÊNCIA CONTRA as mulheres em dados: plataforma reúne pesquisas, fontes e sínteses sobre o problema no Brasil. Agência Patrícia Galvão. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/sobre-esta-plataforma/. Acesso em: nov. 2023.

[2] CERQUEIRA, Daniel. Atlas da violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. p. 38.

[3] TOKARNIA, Mariana. Unesco: quase 16 milhões de meninas de 6 a 11 anos no mundo nunca irão à escola. Agência Brasil, 3 mar. 2016. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-03/quase-16-milhoes-de-meninas-entre-6-e-11-anos-nunca-irao-escola-diz-unesco. Acesso em: nov. 2023.

[4] ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 54.

[5] VIDAL, Séverine. Trois filles debout: Greta, Ellayanee, Autumn, engagées pour le clima. Anne-Olivia Messana (ilustradora). Paris: Jungle, 2022.

[6] SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

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