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Nem toda feiticeira é corcunda

Nem toda feiticeira é corcunda

Texto dedicado à minha avó materna, Conceição Nunes Lessa, benzedeira.

 

Na letra da música Pagu, de Rita Lee, as feiticeiras não obedecem aos clichês de corcundas ou feias. Estão por toda parte. Fazem da sua história um grito de alerta. A roqueira escreve:

“Mexo, remexo na inquisição

Só quem já morreu na fogueira

Sabe o que é ser carvão”

(Rita Lee – 2004).

A história das bruxas merece ser recontada para que não se apague da memória coletiva a apropriação dos conhecimentos tradicionais das mulheres realizada para facilitar a aceitação da medicina como ciência da cura.

As mulheres reconhecidas como bruxas eram membros fundamentais da comunidade campesina na Europa medieval. Elas eram as médicas, as conselheiras, as parteiras, as guardiãs da vida e da morte. Além disso, as mulheres foram pioneiras nos estudos e nas práticas de cultivo e manejo de plantas medicinais. Não somente na Europa, mas ao redor do mundo. Elas eram médicas sem diploma, passavam seus conhecimentos de geração em geração de forma oral. Bruxas, feiticeiras, parteiras, rezadeiras, curandeiras, erveiras, eram, portanto, mulheres sábias que ajudavam a comunidade e aconselhavam na tomada de decisões. 

O período caracterizado pela caça às bruxas foi amparado por justificativas inventadas pelo clero europeu. O mais famoso documento criado para fundamentar a perseguição às mulheres foi o Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum), primeiro manual inquisitorial endossado pelo papa, publicado em 1486. O livro defendia que a feitiçaria era resultado direto de um pacto com o demônio, que a mulher era sexualmente insaciável e, portanto, vulnerável às tentações do diabo. Foi uma invenção da igreja para facilitar a aceitação dos homens como terapeuta, pois, “durante a caça às bruxas, a igreja legitimou a profissão dos médicos, já recomendada pelo Martelo das Feiticeiras, que declarava: “uma mulher que tenha a ousadia de curar sem haver estudado é uma bruxa e deve morrer” (Telles, p. 45).

A repressão, perseguição e extermínio de mulheres acusadas de estarem “endemoniadas” foi uma disputa pelo monopólio político e econômico. Os algozes visavam uma institucionalização da teoria e da prática medicinal. Para alcançarem o seu objetivo, fizeram uma campanha de terror contra as mulheres. O Martelo das Feiticeiras oferecia instruções detalhadas para o uso da tortura com a finalidade de arrancar confissões e denúncias de novas acusadas de pacto com o diabo.

A apropriação dos saberes e das práticas de curandeirismo das mulheres se deu à custa de muita violência e terror. A medicina nasceu do sangue derramado das mulheres. As feiticeiras já utilizavam, muito antes da medicina e da farmacologia, os analgésicos, digestivos e tranquilizantes. Usavam a beladona, entre outras funções, para inibir as contrações uterinas quando havia risco de aborto espontâneo. Existem indícios de que a digitalina (extraída da Digitalis purpúrea), fármaco usado para tratamento de doenças cardíacas, foi descoberto por uma bruxa inglesa. Apesar dos registros históricos, os livros de medicina inventam nomes de homens que supostamente teriam “descoberto” a planta séculos depois de seus usos pelas bruxas. Muitos registros mostram o uso das plantas durante os trabalhos de cura: “A beladona cura a dança fazendo dançar” (Michelet, p. 107).

As benzedeiras e rezadeiras foram perseguidas com aval do Estado e, para elas, muitas dedicatórias são feitas hoje por mulheres, como o poema de Keyane Dias:

 

Benza

Por Keyane Dias

 A bença da velha, eu peço,
Pra bem ficar protegida.
Em mão rugosa, confio
A benza da fé acolhida.

Com ramo tira quebranto,
Mistério pouco revelado.
Ave Cruz, canto em credo!
Sara do mau olhado.

Socorro de mulher prenha,
Aconchego para criança.
Ajuda com erva santa
Corpo fraco que se cansa.

É dom, fonte ancestral,
Quem recebe esse saber.
E se tiver pouca fé,
Nem adianta se benzer.

Elas resistem na cidade
E nas matas do interior.
Senhoras de valentia,
Guerreiras do bom senhor.

Trabalho de caridade,
Auxílio pra alma sofrida.
Com jejum e bom respiro
Apruma espinhela caída.

Sincretismo de benfeitura,
Catolicismo popular.
No terreiro, na pajelança,
Baixinho a sussurrar:

“Quem pra ti olhô
Com os olho malvado
Eu vou jogar nas onda
Do mar sagrado.”

Tal qual essas senhoras,
Tem os velho rezador.
Trabalham com a mesma fé,
Com a força do mesmo amor.

Salve Deusa!, essas mão santa.
A cura do benzimento!
Escudo da santa cruz.
A graça que traz alento.

(Poesia dedicada à Dona Pedralina, benzedeira de Ribeirão da Areia – MG.)

As bruxas verdes estão redescobrindo o valor das plantas e seus usos nas infusões, nos chás medicinais, nos banhos de ervas e noutras práticas. Suas práticas, somadas aos benzimentos e banimentos, estão sendo recuperadas por mulheres e grupos de mulheres empenhadas no resgate de uma história secular. Vale lembrar o registro de Jules Michelet: “O obstáculo não é o rancor. Os mortos estão mortos. Os milhões de vítimas – albigenses, valdenses, protestantes, mouros, judeus, índios da América – dormem em paz. O mártir universal da Idade Média, a feiticeira, nada diz. A cinza está ao vento” (p. 274). Bruxas, feiticeiras, benzedeiras, curandeiras, erveiras, mulheres da terra, parteiras, rezadeiras estão entre nós para reconstruir a história e registrar novas formas de ver, sentir e agir em meio à natureza. 

 

Sugestões de leitura:

EHRENREICH, Barbara; ENGLISH, Deirdre. Bruxas, parteiras e enfermeiras: uma história das curandeiras.

ILHEO, Mariana de Carvalho. Tradição e prática: um estudo etnográfico do benzimento em Campestre (MG). Campinas: Setor de publicações, 2027.

MILHELET, Jules. A Feiticeira: 500 anos de transformações na figura da mulher. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

TELLES, Norma. Ronda das feiticeiras. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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