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Glória! O adeus de uma mulher livre

Glória! O adeus de uma mulher livre

Dois de fevereiro é um dia de comemorações no Brasil. Dia de Iemanjá, para as religiões de matriz afro-brasileiras, e Dia de Nossa Senhora dos Navegantes, para os cristãos. O sincretismo religioso faz com que a festa ganhe grande repercussão. De ponta a ponta do país, fieis se reúnem em procissão para levar oferendas e imagens da orixá ou da santa para o mar. E foi embalada nas águas salgadas que as festividades, em 2023, foram um misto de comemoração e de despedida.

Glória Maria Matta da Silva nasceu no Rio de Janeiro no dia 15 de agosto de 1949 e faleceu no dia 2 de fevereiro de 2023 vitimada pelo câncer. O reconhecimento público de sua magnitude fez das festividades religiosas também uma grande despedida. Envolta nas águas salgadas da mãe dos orixás, Glória recebeu homenagens nas emissoras de televisão, nas redes sociais e na grande imprensa nacional e internacional.

A Ministra da Cultura, Margareth Menezes, postou em seu Instagram:

“No dia da Rainha das Águas nossa querida Glória Maria nos deixou.
As águas rolaram nos olhos e corações de milhões de brasileiros que certamente amavam e admiravam essa que foi uma mulher negra pioneira em muitas conquistas. A maior da sua geração!

Uma mulher incrivelmente livre, uma profissional à frente do seu tempo. Inspiração para tantas mulheres iguais a ela e para muitos jornalistas, homens e mulheres, de várias gerações.

Ela deixa um legado imenso, inaugurou um estilo próprio e conquistou com muito talento e trabalho um lugar de destaque no jornalismo nacional e internacional.

Aplausos, aplausos, aplausos!

Muitas flores para nossa querida, grande, imensa e maravilhosa Glória Maria.

Adeus e obrigada!”

Glória foi jornalista, repórter e apresentadora, durante muito tempo, na TV Globo. Uma questão importante para se destacar foi o seu protagonismo como mulher negra. Foi a primeira repórter a realizar matérias ao vivo e a cores na televisão. Graduou-se em jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) nos anos 1960, deu início aos trabalhos na emissora de TV, onde fez uma carreira ao longo de 50 anos.

Seu protagonismo se deve, em parte, a uma personalidade forte que não se dobrou às injunções da mesmice, disse ela:

“Eu não gosto de fazer nada igual, então na hora que começa a ficar chato, eu sei lá… eu acho um caminho novo”

(Observação: os depoimentos da jornalista foram selecionados da matéria dedicada a ela no Jornal Nacional do dia 02/02/2023).

A personalidade mutante de Glória fez dela um ícone do jornalismo brasileiro. Ela foi uma mulher culta, que navegou pelas redes sociais, pelas diferentes mídias, foi capa de revistas, viajou mundo a fora, adentrou palácios e palafitas, locais luxuosos e humildes. Entrevistou muita gente famosa e muita gente do povo. Creio que essa tenha sido a sua marca, o gosto pela vida, pela mudança, pelo movimento e pela circulação em diferentes espaços.

Como mulher negra enfrentou esse duplo preconceito: o sexismo e o racismo, sem nunca esquecer a lição deixada pela sua avó: “A minha avó me ensinou uma coisa, a mais importante, desde pequenina: ‘Você tem que ser livre. Porque a nossa história é uma história de escravidão’. A minha vida é ser livre. Não há nada, nem casamento, nem trabalho… Só filho, talvez, agora, é que tira um pouco minha liberdade. Mas o resto, não”.

Foi assim que ela preferiu não publicizar seus relacionamentos afetivos, negando-se a aceitar a condição da obrigatoriedade do casamento e da união nos moldes normativos. Adotou duas meninas baianas, Laura Matta da Silva e Maria Matta da Silva. Daí sua conhecida frase: “Solteira, sim. Sozinha, nunca!” Ela preferiu seguir os conselhos da avó que dizia da importância de buscar a liberdade na alma.

Ser uma mulher de alma livre em um mundo onde, ainda, predomina o casamento indissolúvel e as juras de amor eterno pode ser um ato de coragem, sobretudo para as mulheres, que, como ela, estiveram diante das câmeras durante grande parte de sua vida. Como mulher negra ela foi um exemplo de coragem e determinação. Uma vez, ao ser barrada em um hotel de luxo, ela acionou a Lei Afonso Arinos. Chamou a polícia após de ter sido impedida de entrar pela porta da frente e afirmou: “Foi quando percebi que tudo o que eu tinha tentado aprender na minha vida deu resultado. Não me fiz de vítima, não me fiz de algoz. Simplesmente soube usar a lei”.

Noutra ocasião, em plena ditadura militar, afrontou o general Figueiredo afirmando: “O senhor me desculpa, mas o senhor precisa aprender um pouco mais da gramática portuguesa porque isso que você falou não existe mais na gramática”. Como consequência, o ditador mandou que a retirassem do local. Vale lembrar que, em momentos de política autoritária no Brasil, a liberdade de imprensa e de manifestação social é reprimida. Glória não se dobrou à repressão, nem ao sexismo e nem racismo. Portanto, sua presença no cenário jornalístico teve a marca da coragem e da resiliência.

Ela partiu, mas as suas marcas ficam entre nós. Como diria bell hooks em seu livro Tudo sobre o amor:

“Ao aprender a amar, aprendemos a aceitar a mudança. Sem mudança, não podemos crescer. Nosso desejo de crescer no espírito e na verdade é como nos posicionamos diante da vida e da morte, prontos para escolher a vida”.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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