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UMA LÉSBICA NÃO É UMA MULHER

UMA LÉSBICA NÃO É UMA MULHER

A Coluna Pachamama abre os trabalhos em 2023 com uma mulheragem à escritora Monique Wittig. Veja bem, utilizamos mulheragem para marcar uma diferença com relação ao termo “homenagem”, que pode ser desmembrado em “homem-nagem” e reafirma o tributo aos homens. Neste caso, usando as lentes lesbofeministas, embarcamos em corrente de pensamento que recria as palavras para escapar dos meandros da adulação falocrática.

Monique Wittig nasceu em 1935 e foi uma escritora, poetiza, filósofa, militante lésbica-feminista, enfim uma personalidade de forte atuação em muitas frentes. Ela nasceu em Dannemarie, na França, estudou na Universidade de Paris, trabalhou na Biblioteca Nacional de Paris e em uma editora. Traduziu Herbert Marcuse para o francês, foi colaboradora, juntamente com Simone de Beauvoir e Christine Delphy, da revista Questions Feministes. Dentre seus escritos mais conhecidos, destaco: L’Opoponax (novela, 1964), Les Guérrillères (novela, 1969), Le Corps Lesbien (poesia, 1973), Le Voyage sans fin (teatro), La Pensée Straight (ensaio, 1978) e One is not Born a Woman (1980).

Transgressora e ousada, fez uma crítica aos escritos de sua conterrânea Simone de Beauvoir, ao denunciar o mito “da mulher”, da maternidade e da heterossexualidade como regime político ao qual, entende ela, as lesbianas recusam submeter-se, por isso, as lésbicas, para ela, não são mulheres.

Ser mulher é estar inserida no domínio heterossexista, portanto a lésbica não é uma mulher, já que não está inserida na relação heterossexual. Além disso, o discurso opressor é o discurso da heterossexualidade, e as lesbianas escapam da programação inicial, não se submetendo à hierarquização heterossexista. Logo, o lesbianismo – tema central em seus estudos, teorias e escritos – é, para Wittig, algo que se situa além das categorias homem e mulher; é uma experiência revolucionária.

Nos Estados Unidos, desde 1980, ela atuou como educadora em algumas universidades. Participou do Mouvement de Liberation des Femmes (MLF), do primeiro grupo lesbiano em Paris, do Les Gouines Rouges, em 1972, e, em 1974 propôs a criação do Front Lesbien.

O livro Le corps lesbien gravita entre o universo das Amazonas, das assembleias de mulheres, das feiticeiras e marca a presença do desejo sexual e do gozo entre mulheres. Sem dúvida, esse livro foi paradigmático, marcou os estudos lesbianos com a afirmação de um corpo que não se dobra facilmente ao sistema de pensamento hétero. O corpo lesbiano reivindica uma identidade própria, e, ao poetizar a corporeidade lesbiana, Wittig fornece uma positividade na relação com o prazer sexual e com a materialidade da sua experiência no mundo, mas ela não se limita à reprodução do real. A autora cria a lesbiana de forma afirmativa, propositiva e positiva. Portanto, as lésbicas não são mulheres para a autora, pois não se dobram as injunções do “pensamento hétero”.

O Pensamento hétero foi um texto elaborado e apresentado pela autora durante a Convenção da Associação de Linguagem Moderna, realizada em 1978, em Nova Iorque, e publicado em seu livro The Straight Mind: and other essays, em 1992. No texto, ela defende o lesbianismo como uma categoria política e a heterossexualidade como um sistema social que se baseia na opressão das mulheres pelos homens, produzindo a doutrina da diferença entre os sexos como justificativa para essa opressão. É importante ressaltar que ela usa o termo “diferença de sexos” naquele contexto em que a categoria de gênero ainda não estava na pauta das discussões entre as feministas lesbianas. Na obra Le corps lesbien, os códigos masculinos são ignorados pela autora em sua narrativa e os desejos sexuais estão voltados exclusivamente ao prazer feminino. Ela escreve:

 

E/u sou aquela que guarda o segredo do seu nome […].

Tão bela sua nuca suas bochechas seu olhar seus ombros seus seios seus

braços seu ventre seu sexo suas costas sua bunda suas coxas suas pernas

seus tornozelos seus pés (WITTIG, 1973, p. 146-147 tradução nossa).

 

O nome em “segredo” pode ser visto como um recurso poético que a autora utiliza ao abordar o encontro de olhares e de corpos, que em um barco naufragado flutuam entre tubarões sedentos por suas carnes expostas. Podemos desdobrar as linhas e ir de encontro aos corpos lesbianos vigiados, cercados e perseguidos pelo olhar heteronormativo, punitivo e corretivo. Sua crítica é mordaz, não deixa margem para dúvida: as lésbicas se encontram nas assembleias e escapam ao domínio heterossexista.

É possível inferir que a sua obra seja a primeira narrativa de positividade com relação ao prazer sexual lesbiano, tendo em vista que, desde os poemas de Safo ao romance de Radclyffe Hall, a tragédia e a morte como castigo pesavam sobre os corpos lesbianos. Desde as poéticas wittigianas, vemos a erupção das vozes lesbianas tanto na literatura quando nos escritos teóricos.

Vale lembrar que ela viveu com a cineasta Sande Zeig com quem produziu o filme The Girl. Trabalhou até o seu falecimento, em janeiro de 2003, nos Estados Unidos e em companhia de Zeig. Vinte anos após a sua morte ainda há um escasso trabalho de análise e de tradução de suas obras no Brasil. Nos Estados Unidos, seu trabalho foi publicamente reconhecido. Quem sabe seja um bom momento para recuperarmos o seu legado e avançar nas discussões diante de um acalorado debate sobre gênero e sexualidade.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Como nascem os livros feministas?

Como nascem os livros feministas?

“O fim do patriarcado e o início de uma nova era.
A transformação será feminista!”

Cecília Castro

 

A Coluna Pachamama no mês de novembro é comemorativa ao aniversário da Editora Luas e abre o texto com a frase de Cecília Castro que está publicada na apresentação do site da editora. A autora da frase é a criadora e diretora editorial da Luas. Na citação, a premissa é de uma “nova era” marcada pela contundente presença das mulheres nas práticas sociais, culturais, políticas e econômicas. A ação feminista é transformadora na medida em que impulsiona as mulheres a problematizarem o seu lugar no mundo e abre espaços para as novas gerações. E foi acreditando nisso que, em 2019, Cecília criou uma editora voltada para os textos literários e não ficcionais escritos por mulheres. Ressalto, ainda, que todo o processo de produção envolve o trabalho das revisoras, tradutoras, ilustradoras, diagramadoras e outras tantas mulheres ligadas à criação dos livros. As publicações da Editora Luas nascem embaladas pelas mãos de muitas mulheres, declaradamente feministas ou não.

A inspiração de Cecília Castro foi a Editora Mulheres. Criada em 1995 por Zahidé Lupinacci Muzart. Sua fundadora era, então, docente aposentada pela Universidade Federal de Santa Catarina e sua pesquisa sobre o resgate de escritoras do século XIX rendeu um projeto maior, o projeto editorial voltado para a recuperação das vozes destas escritoras silenciadas ao longo da história. Sua ideia inicial foi então reeditar livros de escritoras, brasileiras ou não, que haviam ficado esquecidos na poeira do tempo. Seguiu-se daí a publicação de textos de não ficção sobre questões de gênero. Vale ressaltar que os estudos de gênero chegavam ao Brasil entre as décadas de 1980 e 1990 e avançavam não somente nas áreas de humanidades, como também nas áreas tecnológicas, da saúde, entre outras. Dentre as muitas publicações importantes, destaco o livro A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas, cuja terceira edição nasceu na Editora Mulheres, foi coordenada por Zahidé Lupinacci Muzart e apresentada ao público por Constância Lima Duarte, que, além disso, realizou o cotejo com a primeira edição, escreveu um texto introdutório e as notas explicativas para contextualizar a obra original de 1899. Trata-se do primeiro romance fantástico publicado no Brasil. Apesar do pioneirismo da escritora Emília Freitas, sua obra ainda era pouco conhecida antes da publicação supracitada.

Tanto Zahidé, ontem, como Cecília, hoje, demonstram a preocupação com relação ao apagamento das obras escritas por mulheres. Corrobora com suas inquietações a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, cuja edição publicada em setembro de 2020, sob a coordenação do Instituto Pró-Livro, está disponibilizada gratuitamente na internet. A pesquisa objetiva avaliar o comportamento e os hábitos de leitura da população brasileira por meio de registros estatísticos. Em sua última edição, os dados são preocupantes para as mulheres, tendo em vista que são as que leem mais, porém, são menos lidas. Dentre as obras citadas, a maioria é de autoria masculina. Reflexo da obliteração da escrita das mulheres. Com vistas a minimizar os danos causados pelo apagamento das escritoras e de suas obras é que ao redor do mundo as editoras protagonizadas por feministas, declaradas ou não, publicam exclusivamente livros escritos por mulheres. Eis uma política feminista para salvaguardar as nossas vozes.

No calor dos movimentos feministas das décadas de 1960 e 1970 nasceu uma das primeiras editoras europeia dedicada à produção de livros de autoria feminina. A Éditions des femmes foi fundada em 1973 por Antoinette Fouque e se dedica exclusivamente a publicar obras escritas por mulheres. No mesmo ano ela inaugurou a Librairie des femmes no coração do quartier Saint-Germain. Desde então foi um local de encontros entre as feministas francesas e de descobertas para as mulheres do mundo, que visitam a livraria situada na rua Jacob, em Paris. A criadora da editora e livraria des femmes é escritora, filósofa, psicanalista, foi deputada no Parlamento europeu, membra da Comissão de Direitos da Mulher nos anos 1990 e ficou conhecida historicamente entre as feministas como uma das fundadoras do Mouvement de Libération des Femmes (MLF) em 1968. O MLF teve impacto forte na França e repercussão mundial, apresentava em sua pauta questões como a descriminalização do aborto, paridade, licença maternidade, liberação sexual, combate à lesbofobia entre outros tantos temas.

Antoinette veio ao Brasil em 1974 para participar de encontros feministas e, doravante, começou a publicar as traduções de algumas das escritoras brasileiras, por exemplo, Carolina de Jesus e Clarice Lispector. Ela recuperou o termo feminologia, cunhado nos anos 1980, para propor um campo epistemológico ou uma “ciência das mulheres”, sobre o tema escreveu a obra Féminologie, dividida em três tomos. Um dos mais importantes livros da autora publicados pela des femmes é Géneration MLF: 1968 – 2008, trata-se de um documentário volumoso que conta a história do MLF e suas repercussões em outros países. A editora francesa sacudiu o mundo das letras e colocou as mulheres como protagonistas de suas histórias, reunindo livros escritos a partir das experiências do feminino na cultura, na arte, na política, nas ciências etc. Na página virtual da livraria lemos: “écrire ne sera donc jamais neutre”. A ideia central é de que a escrita não é e jamais será neutra, ela reflete as experiências de quem escreve no mundo no qual participa.

Na página da editora Luas lê-se o mesmo anseio que vimos nas editoras Mulheres e des femmes, ou seja, o de reunir mulheres em torno da linguagem escrita”. As mesmas estão cada vez mais em busca de grupos e coletivos para “exigir direitos e mudanças, transformar a realidade”, em cada encontro nota-se a troca de experiências e olhares sobre seus corpos e suas vivências no mundo. Com essas metas traçadas, a Editora Luas propõe a publicação de livros em três eixos: literatura contemporânea, não ficção, resgate de autoras do século XIX/XX, e, desde 2021, publica livros para crianças com o nascimento do selo Lunitas.

Apesar de criada recentemente, em meio a pandemia de Covid-19 e a crise econômica brasileira gerada por um governo golpista e avesso aos livros, à educação e à cultura, a editora já conta com quatro livros traduzidos, dois livros para crianças e 15 publicações até a corrente data. O livro Ecofeminismo, de Maria Mies e Vandana Shiva, publicado pela Editora Luas, pela primeira vez traduzido em português no Brasil, é uma das obras mais importantes na área que está avançando na academia e nos ativismos ecológicos. Na página da editora podemos acessar gratuitamente textos, manifestos feministas, entrevistas, matérias de divulgação na mídia e outras inovações. A Luas está nas redes sociais: Instagram, Facebook e no YouTube, onde encontramos lives com bate-papo, lançamentos de livros e entrevistas.

Retomo a questão inicial: como nascem os livros feministas? Para Cecília Castro, fundadora da Editora Luas, os livros feministas nascem do encontro de mulheres que anseiam dialogar sobre os seus corpos, os seus direitos, as suas demandas e agendas políticas, econômicas, sociais e culturais. Levantar a bandeira feministas em um país marcado pelo feminicídio, pelo machismo, pela misoginia é um ato revolucionário.

Vida longa à Editora Luas! Vida longa às editoras e livrarias feministas!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Leia para uma criança!

Leia para uma criança!

“Como adulto terei a coragem infantil de me perder?”

 

A pergunta que abre este texto foi feita por Clarice Lispector no livro A paixão segundo G.H. O perder-se é algo malvisto na perspectiva da racionalidade cartesiana, algo perigoso, pois pode levar uma pessoa adulta à loucura. Mas, na infância o perder-se pode ter um sentido físico relacionado ao comportamento curioso das crianças que vão adiante para descobrir algo novo e acabam por distanciar-se de suas mães ou tutoras/es em algum passeio. No sentido metafórico, o perder-se está relacionado ao mundo da imaginação, dos sonhos, das fantasias. Como Alice, a personagem central do clássico infantil Alice no País das Maravilhas, que é a história de uma menina que segue um coelho muito estranho e vai parar no País das Maravilhas.

A criança aprende se divertindo, imaginando, sonhando, fantasiando. A criança descobre o mundo através do brincar. A ludicidade não é característica da infância somente na espécie humana, em outros animais não humanos podemos observar comportamentos semelhantes quando vemos uma ninhada de gatinhos, de cães ou mesmo entre filhotes de animais silvestres, como, por exemplo, ao redor da leoa a sua ninhada brincando.  O livro de Johan Huizinga intitulado Homo ludens: o jogo como elemento da cultura aborda a questão. A descoberta da peculiaridade do aprender de forma lúdica na infância não é muito antiga em nossa história de tradição filosófica escrita pelos homens ocidentais racionalistas. É uma visão que atravessou os séculos pesando sobre as crianças e forjando o adultocentrismo. Se pensarmos que quem, em sua maioria avassaladora, cuida, educa e embala as crianças, desde o nascimento, são as mulheres, não é de se estranhar que os homens tenham escrito tantas bobagens sobre a infância ao longo da história. Vejamos algumas delas:

Descartes: “Enganamo-nos porque fomos crianças antes de sermos homens”;

Rousseau: “A infância é, por excelência, o período em que germinam o erro e o vício”;

Aristóteles: “Durante a infância não possuímos a faculdade de decisão senão sob forma imperfeita”;

Kant: “As crianças estão, por natureza, em estado de incapacidade, e os pais são os seus tutores naturais”.

A infância, então, para os filósofos citados é o locus do engano, do erro, do vício, da imperfeição e da incapacidade. Nenhum destes homens escreveu sobre a questão central da infância: o sentido do brincar, da imaginação, da fantasia e sua importância para a construção do conhecimento e para o reconhecimento do mundo ao seu redor.

Na Idade Média havia uma ausência do sentimento de infância. O historiador Philippe Ariès realizou um estudo iconográfico que mostra a criança quase sempre retratada com feições de adulto. Até a Idade Média a criança era um projeto de adulto, sua descoberta foi acontecer na Modernidade com os estudos relacionados ao papel do brinquedo e da ludicidade na educação.

Se hoje eu trabalho como educadora feminista devo isso aos meus estudos e aos trabalhos sobre a infância desde a minha primeira graduação em Educação Física, onde fiz estágio remunerado nas escolas e atuei em uma escola rural do MST. Após formada, fiz uma Especialização em Educação e defendi a monografia intitulada O Imaginário Infantil: do Mágico de Oz ao Space-man, em 1995. Nela fiz uma imersão etnográfica utilizando recortes do meu cotidiano entre as crianças. Além das crianças nas escolas onde atuei, havia em casa meu irmão e minha irmã, com, respectivamente, 16 e 17 anos de diferença de mim. Eram muitas vozes de crianças que eu escutava e que citei em minha monografia. Uma delas foi uma conversa entre meu irmão e minha irmã: “será que a mana é cliança?” A pergunta dele foi muito pertinente, denotou inteligência e a descoberta entre o que é ser criança e ser uma pessoa adulta, pois eu era uma adulta totalmente diferente do comportamento que ele via. Eu assistia desenho animado, brincava, lia literatura para crianças e inventava muitas histórias e personagens, algumas inclusive tinham figurino para caracterizar que não era a Patrícia. Além disso, naquela época eu atuava na companhia de teatro A Tua Ação, dirigida por Marta Garcia, e na ocasião minha mãe levou as crianças para me assistirem nas peças para crianças.

As crianças precisam da literatura, do teatro, da contação de histórias para auxiliar em seu processo cognitivo. Sônia Kramer, em seu livro Por entre as pedras: arma e sonho na escola, conta uma situação em que uma professora, sabendo da importância da literatura na vida das crianças, resolveu contar a história de Alice no País das Maravilhas. Porém a professora deixou essa atividade para o último dia de aula. Nesse sentido, Sônia, pergunta: “por que deixar a estória para o final, e durante todo o ano letivo trabalhar conteúdos vazios de significado para a criança?” No fundo a professora sabe que, além da dureza metálica da arma, existe a suave maciez poética do sonho. Então “será justo exigir que as crianças permaneçam na aridez da linguagem-mecânica-instrumento, distanciando-as ao invés de aproximá-las do significado da escrita como arma e sonho?”

Quem sabe isso acontece porque a escola tradicional não consegue acompanhar a vida, o desejo, os sonhos das crianças. Ela é obsoleta! As crianças querem descobrir o mundo agora, e não deixar para depois da aula suas curiosidades, inclusive seus questionamentos. Então o que ocorre é que ela acaba detestando a escola. É importante ressaltar que, para além das escolas tradicionais, existem escolas alternativas que buscam a construção da autonomia, da autogestão e, sobretudo, valorizam o conhecimento das crianças e fomentam a leitura, criatividade e espontaneidade. Mas, são poucas e não atendem o grande contingente de crianças.

As diferenças de classe devem ser analisadas neste ponto de vista. As famílias sem condições de pagar uma escola ficam sem direito de escolha, e há diferenças entre as escolas urbanas e rurais. Existe uma multiplicidade de formas de ver e de atuar na educação infantil, algumas experiências, sobretudo as libertárias, servem de modelo até hoje para pensar em alternativas, como, por exemplo: A Escola de Iasnaia Poliana, criada por Liev Tolstói; A Colméia, proposta por Sébastien Faure; as Escolas Modernas, de Francisco Ferrer y Guadia; e as experiências educativas das anarquistas Louise Michel, Anna Mahé, Émilie Lamotte, na França, e de Maria Lacerda de Moura, na comunidade agrícola libertária em Guararema, no Brasil.

As experiências educacionais alternativas, sejam elas libertárias ou não, surgiram a partir da crítica aos modelos tradicionais. Este foi e continua sendo um dos meus campos de estudo desde a minha monografia em Educação. Eu tinha 24 anos quando realizei a especialização e, de certo modo, foi uma maneira de pensar a minha própria dificuldade durante o meu período de escolarização. Eu só não fiquei de exame no último ano e creio que, por isso, escrevi:

 

Z, X, T…

Z, x, t, r, s, z…

Foi tudo que aprendi a fazê,

A escola foi isso que me ensinô,

O Alfabeto e em Santo Deus crê…

Jogá futebol na educação física,

P’rá algum dia um grande Pelé eu sê…

E hoje, fico aqui pensando… da vida,

eu, por lá, nada pude vê…

 

A literatura para crianças é uma das formas de expandir a imaginação, a criatividade e fazer florescer a ludicidade. Nas últimas décadas é incrível o salto qualitativo no que tange aos livros escritos para crianças. A literatura para bebes é algo extremamente inovador. As pesquisadoras estão estudando os processos cognitivos possibilitados pela interação não somente com os brinquedos, mas também com os livros. As bebetecas estão crescendo e são hoje estratégias pedagógicas para auxiliar o trabalho educacional desde as creches.

Estudiosas como Marisa Lajolo, Sônia Kramer, Regina Zilbermann nos ensinam que a literatura infantil, para além do papel educativo, é uma forma de arte que fomenta a imaginação e a criatividade. Mell Brites diz que “literatura infantil é literatura, se não fosse, não seria assim chamada. E literatura é arte. Como arte, ela tem o direito de não servir propriamente para nada, de não ter uma intencionalidade de antemão. Portanto, ela nos humaniza também porque conversa conosco por vias que não as da lógica, da hierarquia, da razão”.

Com a renovação na literatura para as infâncias, vimos crescer o número de editoras voltadas para este domínio da produção de livros. Além disso, a educação está utilizando a literatura infantil para abordar temas como gênero, sexualidade, etnias, raças, classe social etc. Os livros infantis estão cada vez mais sofisticados e as editoras estão abrindo as portas para um universo repleto de novidades e de beleza.

Foi em 2020 que a Editora Luas criou o selo Lunitas, um selo voltado para o público infantil, afinal em uma editora que promove a literatura escrita por mulheres é importante pensar que as mulheres estão protagonizando novas histórias para as crianças. O selo Lunitas foi inaugurado com o livro Sua primeira casa, de Rafaela Kalaffa, e o segundo, O resgate do Touro Vermelho, de minha autoria, com ilustrações de Nick Carmona. O primeiro aborda o útero e a gestação de uma forma poética e com uma belíssima arte que nos transporta para o momento da gestação. O segundo conta a história de Red Bull, um touro surfista que foi capturado, levado ao abatedouro e, logo depois, foi resgatado. Trata-se de um livro de aventura sobre a libertação animal.

Autoras como Clarice Lispector, Ruth Rocha e Eliane Potiguara são reconhecidas por seus trabalhos voltados ao público infantil. As questões étnico-raciais estão sendo protagonizadas por autoras que vivenciaram na pele a questão do racismo e, portanto, promovem uma literatura em que as crianças encontrem eco de suas vidas nas narrativas. Simone Mota é autora do livro Carolayne, Carolina e as histórias do diário da menina, dentre muitos outros; e Vãngri Kaingáng escreveu Estrela Kaingáng, a lenda do primeiro pajé, entre outras produções.

As biografias para crianças estão em expansão: Rosa Parks, Paulo Freire, Frida Kahlo, Clarice Lispector, Violeta Parra e tantas outras pessoas estão agora, também, nos livros para crianças. Eu, junto com a artista Jéssica Fiorini, estou dando início a Coleção Lute como uma garota, que sairá pela Editora Appris. A biografia de Nise da Silveira irá inaugurar o novo projeto voltado para a literatura infantil.

O Poema do Milho, de Cora Coralina, ilustrado por Lélis, é uma poesia que virou livro para crianças. Diz ela:

“O grão que cai é o direito da terra.

A espiga perdida – pertence às aves

que têm seus ninhos e filhos a cuidar.

Basta para ti, lavrador,

o monte alto e a tulha cheia.

Deixa a respiga para os que não plantam nem colhem.

– O pobrezinho que passa.

– Os bichos da terra e os pássaros do céu.”

A literatura para crianças está cada dia mais criativa, cativante e nos convidando a ler para a gurizada. Basta ativarmos a nossa criança interior, afinal, a imaginação, a criatividade e a ludicidade são a lenha desta fogueira.

Leia para uma criança!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Patriotismo e patriarcado

Patriotismo e patriarcado

O assunto abordado em setembro não poderia ser outro. Em meio as comemorações dos 200 anos de independência do Brasil, o evento social nomeado de 28º Grito dos Excluídos questionou: independência para quem? A pergunta é pertinente se pensarmos na relação de miséria que assola o país. Enquanto uma multidão de pessoas passa fome, outras tantas lutam diariamente em busca de emprego; vemos educação e saúde abandonadas pelo poder público, as taxas de feminicídio e violência contra as mulheres nos colocam entre os países mais machistas do mundo; o presidente genocida, novamente, envergonha a nação, em mais um surto machista gritando nas atividades comemorativas ao dia 7 de setembro, em Brasília: “imbrochável”. Vale ressaltar que ele, até o momento, foi o único presidente do Brasil a usar dinheiro público e o espaço de atividades do governo federal para campanha partidária e para uso pessoal.

Nas vésperas da eleição presidencial, vemos o atual presidente reproduzir inverdades sobre a situação caótica brasileira, agravada em sua gestão. As comemorações do 7 de setembro no Brasil estiveram à altura do atual governo: queda de paraquedistas militares em São Paulo, furgão entalado na marquise do Palácio da Alvorada – residência oficial do presidente da República –, propagação de fake news, surto ultramachista do presidente diante das câmeras da imprensa internacional, ameaças à democracia e violação de direitos foram algumas das notícias que nos colocaram no centro das piadas e chacotas internacionais nesta data comemorativa nacional.

O bolsonarismo, baseado na relação de ódio às mulheres, às minorias, sobretudo, às pessoas racializadas e periféricas, ódio aos povos originários, é o baluarte do patriotismo atual. Os mais ardorosos discursos de amor à pátria brasileira destoam nas cenas de culto aos símbolos norte-americanos. Curvado aos pés dos presidentes dos Estados Unidos, do atual e do anterior, o governante do Brasil implora ajuda para se manter no poder e bate continência para a bandeira azul e vermelha dos imperialistas ianques. O “véio da Havan”, como ficou nacionalmente conhecido o proprietário dessa rede de lojas, que vende produtos da China comunista, mas se diz anticomunista, ergueu réplicas da Estátua da Liberdade, que é um dos símbolos dos Estados Unidos. Ele se diz patriota e é um dos fiéis escudeiros e apoiadores do Golpe que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff.

O patriotismo e o patriarcado estão intimamente vinculados, tendo em vista a ideia de propriedade privada e, com ela, as suas pessoas trabalhadoras, incluindo mulheres, filhas e filhos. O patriarca representa a figura do homem que lidera a família, inclusive se beneficiando do trabalho gratuito realizado pelas mulheres para os trabalhos domésticos e de cuidados das crianças, dos animais domésticos e das pessoas idosas. Com base nas relações de poder e de propriedade, o patriarca defende os interesses do Estado garantindo assim os seus privilégios. Pátria, família e propriedade são os pilares que criaram e sustentam o capitalismo.

Na obra Siwapajti (Medicina de mujer) – Memoria y teoría de mujeres, de Patricia Karina Vergara Sánchez, que terá tradução no Brasil pela Editora Luas ainda este ano, a crítica ao patriarcado está conectada na formação da família moderna, pautada na monogamia e centrada no casamento indissolúvel, que é um dos legados cristãos. Uma das formas de consolidar a sociedade patriarcal foi a ruptura dos vínculos das mulheres, de suas tradições e de seus conhecimentos ancestrais compartilhados, que foram aos poucos sendo criminalizados e apropriados pelos homens das ciências, pela tradição religiosa hegemônica e pelo pátrio poder do Estado e do Direito.

As anarcofeministas foram, sem dívida, críticas ferrenhas ao patriarcado e ao patriotismo. Maria Lacerda de Moura vislumbrava transformações amplas visando não à mera conquista de certos direitos, mas a libertação total das mulheres, por isso investiu duramente contra as formas de autoritarismo expressas na família, na igreja e, sobretudo, no Estado fascista que se instalou, com suas ideologias nacionalistas e patrióticas. Sobre a questão declarou: “a minha pátria é o Universo”. Ela percebeu o patriotismo e o nacionalismo como práticas políticas militarizadas criadas para aliciar o magote humano posto a serviço do Estado.

Ela era uma pacifista e via no patriotismo uma forma de aliciar jovens para as guerras, de promover a venda de armamentos e alavancar a indústria bélica. Ela usava, em consonância com sua época, o termo “carne de canhão” para designar quem servia ao exército. Sobre isso questionou: “qual é a função do Estado senão aliciar escravos para as guerras, através do ídolo do patriotismo” (Maria Lacerda de Moura, Amai e… não vos multipliqueis, 1932, p. 135). Para ela, as mães, por amor aos seus filhos, deveriam tentar impedir o alistamento no exército.

A autora viveu entre as duas grandes guerras e fez guerra à guerra através de sua escrita corajosa e pontual. Ao final da Segunda Guerra Mundial, não existia um número exato de mortos, mas foram aproximadamente 85 milhões de pessoas, sendo que mais de 51 milhões eram civis. Dentre estes figuraram pessoas idosas, deficientes, crianças, mulheres, jovens, homens e um número incontável – pois, até o momento, invisibilizado pela historiografia – de pessoas não humanas. Além disso, sabemos que o estupro é uma das violências comuns em tempos de guerra.

Outras libertárias como Luce Fabbri e Emma Goldman também escreveram sobre o patriotismo. Para Luce Fabbri (O Caminho até o socialismo sem Estado, 2004, p. 64): “Toda nacionalização é, no fundo, uma militarização”. Emma concorda: “O patriotismo é um princípio que justifica a instrução de indivíduos que cometerão massacres em massa”, e continua: “Segundo a teoria do patriotismo, nosso globo seria dividido em pequenos territórios […]. Aqueles que têm a oportunidade de ter nascido em um território particular consideram-se mais virtuosos, mais nobres, maiores, mais inteligentes do que os que povoam os outros países. É, pois, o dever de todo o habitante desse território lutar, matar ou morrer para tentar impor sua superioridade a todos os outros” (Emma Goldman, O indivíduo, a sociedade e o Estado e outros ensaios, 2011, p. 60).

Se no início do século XX Maria Lacerda, Emma e Luce já anunciavam a relação perversa entre o patriotismo e a indústria bélica, hoje, com a militarização voltada à cena internacional, podemos ver o mundo em ruínas com a possibilidade de mais uma grande guerra financiada pela indústria bélica que hoje possui um arsenal físico e químico de destruição em massa. Um massacre perpetrado por séculos em nome da pátria, da família e da propriedade do patriarca.

É tempo de relembrarmos as vozes das anarcofeministas!

Escutemos Maria Lacerda de Moura:

[…] Gloria à Liberdade!

Não mais nos sirvamos de capatazes e escravos, lacaios do dominismo ou do servilismo da covardia do rebanho social.

A minha pátria é o meu coração.

A minha pátria é a minha Razão.

A minha pátria é o Universo.

(Maria Lacerda de Moura, Oração, 1932).

 

Após os versos e vozes do início do século XX, voltamos a pergunta inicial: independência para quem? A independência está intimamente ligada aos processos de libertação. Um país onde a educação, a alimentação, a saúde, a moradia, a terra e a dignidade são para poucas pessoas não pode se vangloriar com a independência. Que nestas eleições de 2022 o povo brasileiro consiga se desvencilhar da trupe de milicianos, golpistas e narcogovernantes que tomaram o poder à força em 2016 e, aos poucos, se reerguer da lama que afundou e continua afundando o Brasil.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Chanacomchana: da tese ao livro

Chanacomchana: da tese ao livro

O livro Chanacomchana e outras narrativas lesbianas em Pindorama, publicado pela Editora Luas em 2021, nasceu da busca pela voz lesbiana na imprensa alternativa brasileira. Em 2003 ingressei no doutorado em História na Universidade Nacional de Brasília, na área, então recém-criada, de Estudos Feministas. O objetivo central era estudar a formação dos grupos lesbianos no Brasil a partir da construção de sua autonomia com relação aos grupos mistos, nomeados nos anos 1970 de LGBT, e com relação aos grupos feministas.

A ideia de lançar a tese em formato de livro está relacionada à necessidade de fomentar o debate em torno da visibilidade lesbiana e divulgar as suas produções ao longo do período que inicia em final dos anos 1970 e avança qualitativa e quantitativamente nos anos 2000. O livro amplia as possibilidades de diálogo entre quem escreve e o público, sobretudo, as maiores interessadas, as lesbianas participantes ou não de agrupamentos.

O marco inicial em minha pesquisa de doutoramento foi o encontro com o Jornal Chanacomchana, publicado em São Paulo em 1981. O jornal teve uma edição única e foi criado, em 1979, pelo coletivo lésbico-feminista (LF), formado pelas lesbianas integrantes do grupo homossexual (assim denominado na época) estatutário denominado Somos. No início dos anos 1980 formou-se o Grupo de Ação Lésbico-Feminista (GALF) e, em 1982, foi lançado o Boletim Chanacomchana. Foram 12 edições, publicadas até 1987. A criação do GALF era, sobretudo, um projeto de autonomia das lésbicas com relação aos grupos mistos e grupos feministas, muito embora a proposta deixava clara a necessidade de encontros com estes outros grupos para o fortalecimento das lutas sociais e de reconhecimento e avanço nos direitos.

Não foi sem conflitos que as lesbianas avançaram e conseguiram inserir suas pautas nas discussões, reuniões e encontros feministas. Neste contexto, houve proposições interessantes. A lésbica política foi uma proposta importante e nasceu no seio do movimento feminista na década de 1970, quando as mulheres, em sua avalanche de críticas dirigidas à violência do patriarcado, mostravam sua recusa ao sistema de dominação heterossexual, contexto no qual elas reivindicaram os direitos sexuais e reprodutivos, a libertação sexual, a maternidade por livre escolha das mulheres, o direito ao aborto, o combate ao patriarcado e à violência estrutural contra as mulheres. Foram teorias, práticas e poéticas insurgentes na construção de uma nova relação das mulheres com os seus corpos, com o prazer sexual e com o erótico. A lésbica política não tinha, necessariamente, relação sexual com outra mulher, sua identificação era política, era de apoio e de sororidade.

As disputas e as pautas das feministas, em alguns momentos, geraram tensão e rupturas. Um ótimo exemplo foi o grupo Radicalesbians. Criado em 1969, o grupo foi pioneiro no feminismo radical e ficou conhecido pela divulgação de um manifesto feminista intitulado: A mulher que se identifica com mulheres. Tal manifesto foi escrito no contexto de uma reunião organizada pela National Organization for Women (NOW), na qual Betty Friedan declarou que a ligação do grupo com as lésbicas poderia prejudicar suas reivindicações políticas e causar uma repulsa social. Em resposta, Rita Mae Brown e outras feministas lesbianas se afastaram do NOW e distribuíram o manifesto durante o II Congresso para Unir as Mulheres.

Voltando ao livro Chancomchana e outras narrativas lesbianas em Pindorama, um dos tópicos que é importante ressaltar é a base teórica ancorada nos estudos feministas e a apresentação de muitas autoras até então pouco estudadas no Brasil, sobretudo pela carência de traduções, das quais posso elencar: Leila Rupp; Verta Taylor; Adrienne Rich; Tânia Navarro Swain; Teresa de Lauretis; Luce Irigaray; Anick Druelle; Ochy Curiel; Christine Delphy; Judith Brown; Marie-Jo Bonnet; Ti Grace Atkinson; Line Chamberland; Norma Mogrovejo; Audre Lorde; Monique Wittig; Radicalesbians.

Algumas autoras como Monique Wittig, Luce Irigaray, Audre Lorde e Tânia Navarro Swain nos ajudam a pensar a multiplicidade inscrita nos corpos lesbianos. É importante retomar as obras dessas autoras para pensar/escrever sobre a corporeidade lesbiana como uma forma de amar outra mulher e amar a si mesma para além do esquema patriarcal e do sistema heterossexista.

Partindo dessas referências feministas, o livro aborda o surgimento da imprensa lesbiana no Brasil e avança na direção do estudo de outras fontes, tais como os Boletins Iamaricumá e Um Outro Olhar, a Revista Um Outro Olhar e a lista de discussão do Senale (Seminário Nacional de Lésbicas). Nesta avalanche de materiais trazidos à baila neste estudo, é possível entender que a história das lésbicas no Brasil ganha novos contornos e gera muita movimentação.

Tendo em vista a multiplicidade do movimento lesbiano no Brasil é que existem duas datas importantes. A primeira, 19 de agosto, dia Nacional do Orgulho Lésbico, é a data da ocupação, em São Paulo, de um local denominado Ferro’s Bar, onde seus proprietários haviam proibido a venda do Boletim Chanacomchana. Com o apoio de feministas, gays, intelectuais e advogados, e por intermédio da pressão política, as militantes do Galf entraram no local e obtiveram a permissão para vender o material. A segunda data é o dia 29 de agosto, Dia da Visibilidade Lésbica, escolhida em função da realização do I Senale, realizado em 1996, mediante uma ação conjunta do Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro (COLERJ) e do Centro de Documentação e Informação Coisa de Mulher (CEDOICOM).

O Boletim Chanacomchana divulgou o ato do dia 19 de agosto em matéria de capa como podemos ver a seguir:

Fonte: jornal O Globo, 2019.

A foto seguinte é de autoria de marian pessah, feita para o grupo lésbico-feminista Mulheres Rebeldes, de Porto Alegre (RGS). A foto monocromática apresenta uma tatuagem carregada da simbologia lésbico-feminista: o desenho de duas meninas de mãos dadas, os dois símbolos do feminino entrelaçados e a cor lilás dão o tom da simbologia lesbiana aqui retratada para anunciar o dia da visibilidade lésbica, ou seja, o dia 29 de agosto. Em sua matriz de definição, a imagem simboliza a luta inscrita nos corpos lesbianos como uma marca de sua historicidade incontornável.

 

 

Fonte: NUANCES, Porto Alegre, s/d.

Assim podemos pensar no encontro com os movimentos coloridos, com a força contestatória das suas precursoras, das suas inspiradoras, tal como Rosely Roth, todo ano lembrada por suas companheiras do GALF. Um movimento que é múltiplo, comemorado em duas datas, que simbolizam não um conflito, mas a diversidade, a liberdade, a ânsia por voz e representação social positiva e propositiva. Tendo este marco temporal, é possível dizermos que o mês de agosto é marcado pelo mês de lutas e de comemoração para as lesbianas.

Neste mês, importante para o movimento lesbiano, o livro Chanacomchana e outras narrativas lesbianas em Pindorama está sendo levado para discussão com vários grupos no Brasil e, ainda sem completar um ano de publicação, está esgotado na Editora Luas e aguarda a reimpressão em breve. Quem sabe seja este um indício de novos tempos para as teorias lesbianas e, sobretudo, para a escrita a partir de uma história feminista das lesbianas.

Sugestões de leitura:

LESSA, Patrícia. Chanacomchana e outras narrativas lesbianas em Pindorama. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021.

RADICALESBIANS [1970]. A mulher que se identifica com mulheres. Tradução: Natália Corbelo. Disponível em: http://editoraluas.com.br/wp-content/uploads/2021/07/MANIFESTO-3.pdf.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Marielle Franco e Tereza de Benguela: Tão longe, tão perto!

Marielle Franco e Tereza de Benguela:
Tão longe, tão perto!

“Não podemos viver sem nossas vidas”

(Barbara Deming)

 

No Brasil, o dia 25 de julho foi instituído como data comemorativa no calendário nacional como Dia Nacional de Tereza de Benguela e Dia Nacional da Mulher Negra. A incorporação da data ocorreu em 2014, no governo da Presidenta Dilma Rousseff, transformando-se em dia de luta e de sororidade para as mulheres negras.

Naquele momento político do Brasil já havia um longo e exaustivo trabalho dentro da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), órgão federal ligado diretamente à Presidência da República, criado em 2003 e extinto após o Golpe de Estado, em 2016, que favoreceu a ascensão de uma política de extrema direita, com viés fascista e com incitação aos crimes de ódio. Desde a criação da SPM até a sua extinção houve avanço nas discussões sobre as mulheres, favorecendo a regulamentação de leis e de projetos sociais, sobretudo para atender as mulheres mais vulneráveis.

Com o Golpe de Estado e a escalada de violências promovida pelo bolsonarismo, os índices de feminicídio no Brasil, que já eram altos, cresceram assustadoramente, e hoje vemos, por um lado, a violência sexista aumentar, por outro, os nossos parcos direitos sociais serem eliminados um após o outro.

O Brasil tem o maior índice de feminicídio da América Latina. Sabemos que, dentro desse quadro alarmante, existem algumas características que acentuam a vulnerabilidade em alguns grupos, como os fatores étnico-raciais e as diferenças de classe. Nesse sentido, o termo colorismo foi criado, para combater as discriminações motivadas pela cor da pele. O tratamento diferenciado acarreta implicações sociais, como maior dificuldade no acesso à educação, saúde, trabalho e, sobretudo, maior exposição à violência. Segundo o Portal Geledés:

“Em um contexto de tanta violência, mulheres negras são mais vítimas de violência obstétrica, abuso sexual e homicídio – de acordo com o Mapa da Violência 2016, os homicídios de mulheres negras aumentaram 54% em dez anos no Brasil, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013 (enquanto os casos com vítimas brancas caíram 10%).

Barradas dos meios de comunicação, dos cargos de chefia e do governo, elas frequentemente não se veem representadas nem nos movimentos feministas de seus países. Isso porque a desigualdade entre mulheres brancas e negras é grande: no Brasil, mulheres brancas recebem 70% a mais do que negras, segundo a pesquisa Mulheres e Trabalho, do IPEA, publicada em 2016. Há 25 anos, um grupo decidiu que uma solução só poderia surgir da própria união entre mulheres negras.

Em 1992, elas organizaram o primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas, em Santo Domingos, na República Dominicana, em que discutiram sobre machismo, racismo e formas de combatê-los. Daí surgiu uma rede de mulheres que permanece unida até hoje. Do encontro, nasceu também o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha, lembrado todo 25 de julho, data que foi reconhecida pela ONU ainda em 1992” – (Ver matéria completa em: https://www.geledes.org.br/as-origens-do-dia-da-mulher-negra-latina-e-caribenha/).

Com o isolamento social exigido pela pandemia de COVID-19, durante o período de um governo autoritário e machista no Brasil, vimos o agravamento da violência de gênero, o aumento dos crimes de ódio, dos crimes de motivação política, dos assassinatos de pessoas ligadas aos movimentos e às causas sociais. Foi nos anos que antecederam esse contexto que o mundo assistiu estarrecido o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco.

Marielle Franco nasceu no dia 27 de julho de 1979 no Complexo da Maré, bairro localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. O complexo reúne um conjunto de favelas na periferia da capital fluminense. Seu nome de registro de nascimento é Marielle Francisco da Silva, porém ela ficou publicamente conhecida como Marielle Franco. Filha de Marinete da Silva e Antônio Francisco da Silva Neto e irmã de Anielle Franco. Desde cedo Marielle assumiu responsabilidades junto a sua família, tais como os afazeres domésticos e os cuidados de Anielle Franco, sua irmã caçula.

Aos 19 anos ela deu à luz a sua única filha, Luyara Franco, casou-se jovem em função da gravidez, sofreu violência psicológica e física do marido, fruto de um relacionamento abusivo. Em uma das violências cometidas por ele, Marielle sofreu descolamento do maxilar e registrou a ocorrência na delegacia. Ainda jovem, ela conheceu Mônica Benício durante uma viagem. Namoraram por, aproximadamente, 13 anos, até que Marielle e Luyara mudaram-se para o bairro carioca da Tijuca e passaram a viver com Mônica. Elas estabeleceram uma relação estável desde 2004 e planejavam se casar em setembro de 2018,  ano de sua morte, e do seu motorista Anderson Gomes, numa emboscada, no centro do Rio de Janeiro.

Marielle ingressou em 2002 no curso de graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio de Janeiro. Ela havia realizado o curso de Pré-Vestibular Comunitário da Maré, que é um projeto social destinado ao apoio a estudantes sem condições de financiarem seus estudos. Depois de graduada, ela ingressou no mestrado em Administração Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua dissertação versou sobre a atuação da polícia nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), analisou a política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro adotada em 2008 e a sua relação com o extermínio de pessoas moradoras das favelas cariocas, sobretudo a população negra. Teve uma forte atuação na militância pelos direitos humanos. Como socióloga, trabalhou em redes de apoio e de informação na Maré e foi crítica aos abusos de poder das forças policiais. Em 2007, entrou para a ONG Brazil Foundation, integrando a equipe de monitoramento de organizações sociais nacionais.

Em 2016 Marielle foi eleita vereadora pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) com 46.502 votos. Foi a quinta vereadora mais votada na cidade do Rio de Janeiro. Durante o seu mandato, presidiu a Comissão da Mulher da Câmara. Coordenou com Marcelo Freixo a Comissão de Defesa de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ao longo do período que atuou como vereadora, apresentou dezesseis projetos de lei, sobretudo, direcionados às políticas públicas para mulheres, à população negra e da periferia e à comunidade LGBTQIA+.   

Na noite de sua execução, Marielle foi mediadora de um debate promovido pelo PSOL na Casa das Pretas. O encontro reunia jovens negras e foi sua última atuação pública. Ela citou a poeta feminista norte-americana Audre Lorde. Agradeceu às organizadoras do evento pelo convite e se despediu: “Vamo que vamo. Vamos juntas ocupar tudo” (Instituto Marielle Franco).

O assassinato de Marielle é considerado um crime político. A equipe que investiga o caso foi substituída algumas vezes, alguns homens foram presos e depois constatou-se que não eram os executores do assassinato. Desde a noite do assassinato, jornalistas, amigos e colegas da vereadora constataram irregularidades e divergências nas investigações. O horário de crime foi um deles, pois, segundo um morador de rua que estava dormindo na calçada no dia do assassinato informou, a execução ocorreu às 21h14, de acordo com informações do livro Mataram Marielle: como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca (2020). Além disso, ao longo do período de investigação foi constatado o profissionalismo do atirador.

Houve algumas tentativas de federalizar a investigação, porém os pedidos foram negados. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, tentaram entrar com um pedido de deslocamento de competência sobre o processo para federalizar as investigações, mas o Ministério Público Estadual não recuou. Os pedidos foram rejeitados e o caso continuou circunscrito ao local do crime, no estado do Rio de Janeiro.

Após a morte de Marielle, sua família criou o Instituto Marielle Franco com a “missão de inspirar, conectar e potencializar milhares de jovens, negras, LGBTQIA+ e periféricas a seguirem movendo as estruturas da sociedade”, conforme consta no site do Instituto. O instituto foi criado com o objetivo de buscar resposta e justiça com relação ao caso, além de defender a memória da vereadora e colaborar na articulação e na formação política para mulheres, população negra e favelada. A irmã, Anielle Franco, é a diretora.

Dentre as ações do Instituto Marielle Franco, destaco: a construção de um arquivo sobre as atividades de Marielle e os materiais produzidos sobre ela; a atividade Março por Marielle, que são manifestações espontâneas e coletivas, já são mais de 270 atividades cadastradas, dentre elas a parceria com a Anistia Internacional; o espaço Casa Marielle, um espaço para formação política e atividades culturais criado por meio de financiamento coletivo e está localizado no Largo de São Francisco da Prainha, região portuária do Rio de Janeiro. 

No site do Instituto Marielle Franco lê-se a frase: “Quem mandou matar Marielle mal podia imaginar que ela era semente e que milhões de Marielles em todo mundo se levantariam no dia seguinte”. Uma de suas frases mais conhecidas foi proferida em um pronunciamento na Câmara Municipal do Rio de Janeiro no dia 8 de março de 2018, no qual ela disse: “As rosas da resistência nascem do asfalto. A gente recebe rosas, mas estaremos de punho cerrado, falando do nosso lugar de existência contra os mandos e desmandos que afetam nossas vidas”.

Tão longe e tão perto de Tereza de Benguela, podemos inferir que as duas mulheres distanciadas pelo tempo e próximas em suas lutas sociais nos fazem pensar quantos séculos ainda serão necessários para que as mulheres negras sejam devidamente respeitadas no Brasil? Até quando vamos assistir aos assassinos serem blindados por outros homens e seus crimes passarem impunes?

Tereza de Benguela, entre tantas outras mulheres negras brasileiras, marcou a história da resistência negra fortalecendo a luta que atravessa os tempos. Ela foi uma importante líder do Quilombo de Quariterê, no Mato Grosso. Lutou contra a escravização negra e indígena que era usada para trabalhar na exploração das riquezas minerais na região do Rio Guaporé, localidade invadida pelos colonizadores portugueses. Ela liderou o Quilombo até 1770, quando foi capturada e assassinada junto a outras pessoas em uma emboscada planejada pelos colonizadores europeus.

Tão longe e tão perto Marielle Franco e Tereza de Benguela ajudam a compor a narrativa das mulheres que há muito tempo marcham em busca de direitos e de possibilidades de vida. “Nossos passos vêm de longe”, como diria Jurema Werneck, referindo-se à ancestralidade de mulheres negras, mulheres que como Marielle e Tereza foram líderes e protagonistas em várias frentes de lutas.

Concluo a reflexão concordando com bell hooks: “Precisamos de um mapa para nos guiar em nossa jornada até o amor – partindo de um lugar em que sabemos a que nos referimos quando falamos de amor”. Diante de uma política movida pelo ódio, precisamos construir novos espaços de sororidade.

Abaixo indico alguns sites sobre Marielle Franco:

 Perfil VQQ/Marielle Franco – Psol, Mídia Ninja.

https://www.youtube.com/watch?v=IKSWfgZLKMA

Marielle, 8 de março. Discurso de Marielle Franco na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro no dia 8 de março de 2018, Página Plínio Melo, 19 de março de 2018.

https://www.youtube.com/watch?v=G5sjJvK_Txs

Falas Negras: Marielle Franco por Taís Araújo, Instituto Marielle Franco, Rede Globo.

https://www.youtube.com/watch?v=YJE6ayEsnxY

Especial de aniversário Marielle Franco. Participação especial Elza Soares. Instituto Marielle Franco, 27 de julho de 2020.

https://www.youtube.com/watch?v=CQHhSdRLZ74

Livros sobre Marielle Franco:

Mulherio das Letras. Um girassol nos teus cabelos: poemas para Marielle Franco. Belo Horizonte: Quintal Edições, 2018. 

Otavio, Chico; Araújo, Vera. Mataram Marielle: como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

Ramos, Leuvis Manoel Oliveiro. Memória viva. Rio de Janeiro: Câmara Brasileira do Livro, 2020.

Ramos, Leuvis Manoel Olivero. Enquanto o ódio governava a rua falava. Rio de Janeiro: Câmara Basileira do Livro, 2020.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Quem foi Nise da Silveira?

Quem foi Nise da Silveira?

 

O mês de junho da Coluna Pachamama será dedicado à médica Nise da Silveira, cujo reconhecimento internacional não bastou para que o atual presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, aceitasse a homenagem que seria prestada a ela. A médica foi indicada para constar no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria de 2022. Segundo o governante, seu veto foi devido ao fato de não haver um “registro dos feitos da médica”.

A médica não será homenageada, já o ex-policial, Adriano Magalhães da Nóbrega, ainda que seja um dos suspeitos no envolvimento do assassinato da vereadora Marielle Franco, recebeu uma moção de louvor, em 2003, e a Medalha Tiradentes, em 2005, por indicação de Flávio Bolsonaro. Adriano foi apontado como chefe de milícia no Rio das Pedras e acusado de liderar o Escritório do Crime. Ele foi executado em fevereiro de 2020 em um sítio na cidade de Esplanada, distante 170 km de Salvador. Foi morto em uma ação conjunta da Polícia Militar da Bahia e do setor de inteligência da Polícia Civil do Rio de Janeiro. O Brasil de Bolsonaro é um país onde criminosos recebem homenagens e lideranças políticas são apagadas dos registros históricos.

Então, quem foi Nise da Silveira? Nise nasceu em Maceió, estado de Alagoas, em 1905, filha da pianista Maria Lídia da Silveira e do matemático, jornalista e educador Faustino Magalhães da Silveira. Ainda na infância, ela foi matriculada no Colégio Santíssimo Sacramento, tradicional escola de freiras para meninas. Aos 16 anos, ingressou na Faculdade de Medicina, em Salvador, Bahia, local em que foi a única mulher de sua turma em meio aos 157 colegas homens. Entre 1921 e 1926, Nise cursou medicina e foi uma das primeiras mulheres a exercer a profissão no Brasil. Sua tese defendida ao final do curso, Ensaio sobre a criminalidade da mulher no Brasil (1926), buscava traçar um perfil das mulheres que cometiam crimes, assim fazendo emergir temas ainda vistos como tabu, tais como prostituição e aborto.

Sua experiência com o autoritarismo e a crueldade dos homens das ciências médicas foi relatada por ela em ocasião de uma aula prática, quando ainda era uma jovem estudante de medicina, que ela considerou seu primeiro encontro com “o mal”. O fato aconteceu durante uma aula de parasitologia no primeiro ano de medicina. O então famoso professor Pirajá da Silva, ao entrar na sala de aula lotada, lançou a ideia de criação de um serpentário na faculdade e pediu a colaboração de toda a turma, e, ao receber seu assistente trazendo um recipiente de vidro com uma serpente, retirou-a e pediu para a jovem Nise da Silveira segurá-la, garantindo que não era uma cobra venenosa. Ao segurar a serpente e encarar o autoritário professor, ela criou um novo elo entre sua capacidade de aprendizagem e as limitações das ciências médicas tradicionalistas e misóginas. Ocasião, dentre outras, que fortaleceu seu caráter e a fez romper as barreiras de acesso às mulheres tornando-se a psiquiatra mais conceituada no tratamento humanizado de transtornos mentais do Brasil no século XX. 

Nise casou com o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira, não tiveram filhos e viveram juntos até o falecimento dele em 1986. Em 1927 morreu o pai de Nise, sua mãe já havia falecido e, naquele ano, junto com seu marido, mudou-se para o Rio de Janeiro para atuarem no campo da medicina. Lá, em 1933, passou em um concurso público para o Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, iniciando assim o trabalho que a tornaria um exemplo de mudança na forma invasiva e autoritária de tratamento psiquiátrico adotado na época. Por discordar dos métodos praticados nas enfermarias e se recusar a aplicar eletrochoques em pacientes, Nise foi transferida para o cargo de “terapeuta ocupacional”, atividade então menosprezada pelos médicos.

No Rio de Janeiro, ela escreveu sobre medicina no jornal A Manhã, realizou estágio na clínica do Doutor Austregésilo, considerado precursor da neurologia no Brasil, e atuou no Hospital da Praia Vermelha. Entre os anos de 1928 e 1935, envolveu-se nas atividades da Liga Anti-Imperialista do Brasil, do Comitê Feminino Contra a Guerra, em Defesa da Paz Universal, da Cultura e da Humanidade e da União Feminina do Brasil.

Nise revolucionou o ambiente hostil e torturante dos centros psiquiátricos através da terapia assistida por animais e da arte como elemento terapêutico e preferia chamar as pessoas que atendia de “clientes” ao invés de “pacientes”. A psiquiatra se destacou em seus estudos sobre o comportamento humano e o tratamento de patologias psicológicas influenciados pelas ideias de Carl Gustav Jung (1875-1961) e pelo conceito de imaginação criadora de Gaston Bachelard (1884-1962). Revolucionou a maneira de tratar os portadores de sofrimento mental utilizando técnicas artísticas como pintura, escultura e desenho. A obra de Nise da Silveira foi marcada pelo debate sobre os laços afetivos entre pessoas e animais – por ela nomeados “animais não humanos”. Foi pioneira nas práticas de adotar as relações emocionais entre clientes e animais não humanos como parte do tratamento e foi forte opositora dos tratamentos tradicionais usados naquele período: eletrochoque, drogas, que ela nomeava de “camisa de força química”, e o confinamento clínico.

Nas décadas de 1950 e 1960, Nise investiu nas relações afetivas entre os animais não humanos e os/as clientes internos para criar um elo de comunicação que havia sido rompido graças aos modelos tradicionais. Ela percebeu a facilidade com que os/as esquizofrênicos/as se vinculavam aos cães. Em seu trabalho, desenvolveu o conceito de “afeto catalisador”. Ela partiu da ideia de que é importante que o paciente conte com a presença não invasiva de co-terapeuta (o animal não humano) que irá permanecer com o/a cliente e funcionará como um apoio seguro a partir do qual ele possa se organizar psiquicamente. Após ilustrar exemplos de co-terapeutas, Nise afirmou que os animais são excelentes catalisadores, pois reúnem qualidades que os fazem muito aptos a tornarem-se ponto de referência estável no mundo externo, facilitando a retomada de contato com a realidade.

A aproximação dos internos com os animais não humanos do Centro Psiquiátrico Pedro II começou por acaso quando foi encontrada uma cadelinha abandonada e faminta no terreno do hospital. Nise pegou-a, e, percebendo a atenção de um dos internos, perguntou-lhe se gostaria de tomar conta do bichinho “com muito cuidado”. Diante da resposta afirmativa, deu o nome à cachorrinha de Caralâmpia (inspirada em uma personagem do livro A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos).

Em 1952, no Rio de Janeiro, Nise fundou o Museu do Inconsciente, um centro de estudo e pesquisa, criado para abrigar o acervo de obras e a preservação dos trabalhos produzidos nos ateliês inaugurados no Centro Psiquiátrico Pedro II, valorizando-os como documentos que abriram novas possibilidades para uma compreensão mais profunda do universo interior do/a esquizofrênico/a. Dentre os artistas-clientes que criaram obras incorporadas na coleção da instituição, estão: Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Emygdio de Barros e Octávio Inácio. O acervo alimentou a escrita de seu livro Imagens do Inconsciente, bem como de filmes e exposições, como a Mostra Brasil 500 anos. O trabalho foi reunido no Museu de Imagens do Inconsciente que ganhou projeção internacional. Alguns dos quadros foram levados para o II Congresso Internacional de Psiquiatria, em 1957, na cidade suíça de Zurique. A exposição foi inaugurada pelo próprio Carl Gustav Jung, um dos maiores nomes no estudo da psique humana, que, na ocasião, encontrou a Nise.

Entre 1983 e 1985, o cineasta Leon Hirszman realizou o filme Imagens do Inconsciente, trilogia mostrando as obras realizadas pelos internos a partir de um roteiro criado por Nise da Silveira. Depois, foram feitos muitos outros filmes documentários e biográficos. Em 2016, foi lançado o longa metragem intitulado Nise: o coração da loucura, dirigido por Roberto Berliner. O filme destacou o período que Nise atuou no Hospital Psiquiátrico e foi resultado de 13 anos de pesquisa. No mesmo ano, o espetáculo Nise da Silveira: Guerreira da Paz narrou o encontro da médica alagoana e a obra de Carl Jung. A peça foi dirigida e interpretada por Daniel Lobo com a coreografia da renomada bailarina Ana Botafogo e ficou em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (MASP) durante uma temporada de grande sucesso.

Nise viveu em uma época de acirramento da política totalitária no Brasil e, por isso, foi presa por mais de um ano, denunciada por manter, em sua biblioteca, livros considerados subversivos. No presídio, conviveu com o escritor Graciliano Ramos, que narrou essa amizade em seu livro Memórias do Cárcere. Nise da Silveira foi presa pela primeira vez dia 20 de fevereiro de 1936, mas logo em seguida foi liberada. No dia 26 de março de 1936, foi novamente encarcerada no presídio da rua Frei Caneca na cidade do Rio de Janeiro. Foi liberada só no ano seguinte, no dia 21 de junho de 1937. O caso foi relatado no livro Sala 4: primeira prisão política feminina, que registra o encontro das “irmãs de cela”: Olga Benário, Maria Werneck, Beatriz Ryff e Valentina Leite. Em 1944, Nise foi reintegrada ao serviço público e iniciou seu trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, onde retomou a sua luta contra as técnicas psiquiátricas que considerava agressivas e cruéis aos pacientes.

Em 2017, seu arquivo pessoal foi considerado Memória do Mundo pela UNESCO. O Centro Psiquiátrico Nacional do Rio de Janeiro recebeu em sua homenagem o nome de Instituto Municipal Nise da Silveira. Em 2015, foi incluída na lista das “Grandes mulheres que marcaram a história do Rio de Janeiro”. Seu legado é gigante e longínquo, suas ideias inspiraram a criação de museus educativos, centros culturais e instituições terapêuticas, no Brasil e no exterior – Museu Bispo do Rosário (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil), Centro de Estudos Nise da Silveira (Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil), Espaço Nise da Silveira (Recife, Pernambuco, Brasil), Núcleo de Atividades Expressivas Nise da Silveira, no Hospital Psiquiátrico São Pedro (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil), Associação de Convivência, Estudo e Pesquisa Nise da Silveira (Salvador, Bahia, Brasil), Centro de Estudo das Imagens do Inconsciente, Universidade do Porto (Porto, Portugal), Association Nise da Silveira: Images de l’Incoscient (Paris, França) e Museo Attivo dele Forme Inconsapevoli (Genova, Itália) – posteriormente renomeado Museoattivo Claudio Costa.

Nestas linhas, procurei elencar alguns dos grandes feitos da médica Nise da Silveira, que, segundo o atual governante do Brasil, não possui méritos suficientes para ser homenageada. Considero que ser homenageada por um presidente que faz apologia ao crime organizado, à tortura e à distribuição de armas entre civis pode até mesmo ser negativo para a obra da autora, já reconhecida internacionalmente, como vimos.

Fontes:

Itaú Cultural. Ocupação Nise da Silveira, São Paulo, 2017. Disponível em: file:///C:/Users/Patricia/Desktop/ocupacao_nise_da_silveira.pdf. Acesso em: jun. 2022.

LESSA, Patrícia. “Nise da Silveira”. In: Diccionario biográfico de las izquierdas latinoamericanas. Argentina, 2021. Disponível em: http://diccionario.cedinci.org. Acesso em: jun. 2022.

Museu de Imagens do Inconsciente. Disponível em: http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/#chegando. Acesso: jun. 2022.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1953.

SOIHET, Rachel. Mulheres e biografias: significados para a História. In: Locus, Revista de História, v. 9, n.1. p. 33-48, 2004.

WERNECK, Maria. Sala 4: primeira prisão política feminina. Rio de Janeiro: Editora CESAC, 1988.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Ainda hoje, Maria Lacerda de Moura nasceria fora de seu tempo…

Ainda hoje, Maria Lacerda de Moura nasceria fora de seu tempo…

No dia 16 de maio de 1887 nasceu Maria Lacerda de Moura, na fazenda Monte Alverne em Manhuaçu-MG. Ela foi pacifista, vegetariana, escritora, oradora, educadora e, sobretudo, uma mulher à frente do seu tempo. Ainda pequena, sua família mudou-se para Barbacena, onde ela cursou a Escola Normal e, desde então, atuou em diferentes frentes educacionais, no ensino formal e informal. Casou aos 17 anos de idade e, enfrentando todas as convenções, divorciou e não teve filhos naturais, mas adotou, em 1912, Jair, um sobrinho, e Carminda, uma órfã. Na mesma época, iniciou sua carreira de professora, trabalhou para a construção de um lactário e para a criação da Liga contra o Analfabetismo em Barbacena. Durante esse período, Maria Lacerda relata, em sua autobiografia, que enfrentou problemas na sua família quando começou a publicar crônicas em jornais da cidade – típica do interior mineiro –, onde começou a perceber e se rebelar contra variadas formas de opressão e preconceitos.

Ao redor do mundo, os neofascistas se levantam das tumbas reagrupando líderes populistas que encenam diante da mídia uma falsa oposição para alimentar a fogueira da guerra econômica e, novamente, ampliar a distância entre as famílias mais ricas e poderosas da multidão faminta e doente. Maria Lacerda, uma das vozes libertárias que fez frente no combate ao nazifascismo, no início do século XX, foi contra a guerra e alertou sobre os perigos da indústria armamentista. Ela foi uma pacifista que levou muito a sério o “não matarás”, inclusive para as pessoas não humanas. O vegetarianismo vinha crescendo, sobretudo nos grupos anarquistas, e, para ela, era uma forma de resistência ao modelo econômico predatório, sanguinário e destrutivo.

Meu encontro com Maria Lacerda de Moura não aconteceu por acaso, desde muito jovem me alimento da literatura anarcofeminista. Faço minhas as palavras da historiadora Margareth Rago: “Mesmo nos países em que a literatura feminista logrou maior esplendor, escritoras do porte de Maria Lacerda não abundam” (2007, p. 266). Concordo com a autora, pois acredito que o pioneirismo da libertária brasileira esteja muito além do que os estudos mostraram, mesmo depois do aniversário de um século de sua primeira obra.

Em 2012 estive no Encontro Nacional de Direitos dos Animais, no Parque Ecológico Visão do Futuro, em Porangaba-SP, e, através da palestra do Promotor de direitos dos animais, Laerte Levai, tomei conhecimento de que as lutas da escritora eram também pela libertação animal. Veganistas e ecologistas hoje estão recuperando a trajetória de pessoas que foram pioneiras nas frentes de batalha pelo meio ambiente e pelas pessoas não humanas. Desde o momento de descoberta das conexões entre pensamentos libertário, feminista e a luta em defesa das pessoas não humanas, eu venho lendo e escrevendo sobre a obra de Maria Lacerda de Moura, que, em 2020, culminou no meu primeiro livro sobre ela, Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura, em que abordo a questão, sobretudo seus escritos sobre antivivissecção e vegetarianismo.

O termo que utilizo, “pessoa não humana”, foi cunhado pela primatóloga Barbara Smuts. O dicionário Michaelis online considera o termo “pessoa” como “criatura humana”, um “ser eminente ou importante”, com “caráter peculiar que dá distinção a alguém”. E vai além, diz que, na narrativa cristã, ser uma pessoa significa estar consciente de sua liberdade e responsabilidade, que são determinadas pela dimensão moral e espiritual. Já a gramática indica alguém que participa de um discurso. Por isso, entendo que utilizar “pessoa” para os animais não humanos significa transgredir um discurso criado pelo humano especista, que desconsidera todas as outras formas de vida, ou considera inferior, portanto passível de exploração.

Provavelmente Maria Lacerda tenha sido a primeira pessoa no Brasil a adentrar profundamente nos temas referentes à defesa das pessoas não humanas e a relação destas com a má distribuição de terras e a produção de alimentos em escala industrial. Ela escreveu, em 1932 (p. 233), sobre o tema: “No dia em que a mulher se dispuser a libertar-se do jugo do estômago civilizado, passar a comer frutas e legumes, a apagar o fogo doméstico que é o fogo eterno do inferno feminino na sua escravidão ao estômago do homem – nesse dia ela recomeçará a sua autoeducação física e mental e iniciará a sua verdadeira libertação humana”.

A ciência e a tecnologia deveriam ter utilidade e proporcionar bem-estar social, em uma sociedade utópica, onde a propriedade coletiva dos meios de produção e a emancipação feminina prevalecesse, e o abandono das cidades, considerado um locus para a aplicação da ciência e da tecnologia, fosse seguido por uma integração orgânica com a natureza através do trabalho rural coletivo, eis a proposta de Maria Lacerda de Moura. A ideia de “estômago civilizado” é uma severa crítica ao modelo alimentar burguês centrado na carne e nos alimentos industrializados. Ela foi pioneira ao criticar o modelo industrial na produção de alimentos e as consequências devastadoras para as famílias de pequenas propriedades rurais. Os textos libertários de Maria Lacerda de Moura são narrativas de resistência feminista e libertária, são repletos de deslocamentos e ressignificações utópicas escritos em um momento de profunda transformação socioeconômica e estão em diálogo com um pensamento anarquista internacional que questiona a ideia de progresso prometido no processo de constituição e difusão massificada da ciência e da tecnologia.

Ela foi muito além dos seus direitos. Como mulher e como humana, ela lutou pela libertação das pessoas dos grilhões que as acorrentaram ao Estado, ao clero e às tradições. Mas, ela foi além, provavelmente, tenha sido a primeira mulher no Brasil a escrever e lutar pela libertação animal, pela libertação de Gaia ou Pachamama, nossa Mãe Terra das culturas e cultos andinos. Em muitos de seus escritos a luta antivivisseccionista soma-se ao vegetarianismo e ao trabalho na terra para produção de alimentos livres de veneno e da indústria. Nas palavras dela: “Se ninguém plantasse senão o estritamente necessário para si e para os seus filhos menores, para os velhos e para as mães e as crianças e os inválidos da sua família, ao mesmo tempo praticando o auxílio mútuo, – não se formariam ‘trusts’ de café, de açúcar, de algodão, de arroz, de trigo, de mate, de todos os gêneros de primeira necessidade, para fortuna dos reis da agricultura industrializada – que não plantam e enriquecem à custa do suor dos que plantam” (2020 [1931], p. 34).

Seus escritos sobre a crítica à agricultura industrializada e sua proposta de vegetarianismo avolumou-se depois de sua experiência em uma comunidade rural autogestionária. Em 1926 ela conheceu André Néblind, um francês desertor da Primeira Guerra Mundial, e, em 1928, ela vai viver com ele em uma comunidade agrícola em Guararema, interior de São Paulo. Vivendo na comunidade libertária, já divorciada, ela iniciou uma nova fase em sua vida, marcada por encontros com outras pessoas que compartilhavam os ideais anarquistas, revolucionários e pacifistas.

As abordagens sobre a exploração das pessoas não humanas tomam variadas formas na obra da autora mineira, são elas: a crítica à ciência e à vivissecção, a crítica à indústria da carne, à instrumentalização dos corpos humanos e não humanos e a proposta de uma alimentação vegetariana. Entre final do século XIX e início do século XX, é possível encontrar inúmeras mulheres escritoras feministas e abolicionistas que escreveram sobre o tópico: Annie Besant, Clara Barton, Matilda Joslyn Gage, Elizabeth Cady, Lou Andreas-Salomé, Alice Park, Agnes Ryan dentre outras. Maria Lacerda fez eco às mulheres de sua época e foi uma voz insurgente pelas pessoas não humanas.

Há ampla evidência de uma ligação clara entre a natureza dos experimentos com animais e da forma de opressão a que as mulheres da era vitoriana foram submetidas. A opressão feminina naquela época incluía as ideias de fragilidade e de propriedade. Os animais e as mulheres eram vistos como propriedade e sem os direitos que derivam de possuir a propriedade; é possível, assim, fazer comparação entre os dispositivos cirúrgicos utilizados em animais e o tratamento médico das mulheres, incluindo o parto e os costumeiros exames ginecológicos.

É possível analisar a visão de Maria Lacerda sobre a ciência e a tecnologia, como descrito na obra Civilização: tronco de escravos, sobretudo, no capítulo intitulado “A ciência a serviço da degenerescência humana”, em que a autora critica o modelo de apropriação do conhecimento científico e tecnológico do capitalismo. Seguindo a tradição anarquista, ela percebe a ciência e a tecnologia como potencialmente emancipadoras. Ela denuncia essa produção de conhecimento como “pervertida e prostituída”, já que “o capitalismo industrializado assume todo esse esforço científico, mesmo enquanto ainda é um embrião, de tal maneira que a energia humana é canalizada para uma única direção: a luta para a competição, a concorrência econômica, o poder econômico bélico, o nacionalismo e, fruto dos anteriores, a guerra” (2020 [1931], p. 10).

Ela buscou a paz mesmo em um momento de guerras e, depois de sua morte silenciosa, um texto anônimo publicado em São Paulo, em 1945, deixou-nos uma pista sobre a magnitude de sua busca: “Um dia, desgostosa da multidão, retirou-se para Guararema e lá viveu num rancho, à beira da estrada. Mais tarde, lá mesmo, não encontrou a paz que desejava e retirou-se para o Rio de Janeiro, fixando-se num daqueles subúrbios que parecem a mil quilômetros do mundo. Estudava, como sempre. E o seu estudo foi tão profundo que ela acabou por perder contato com os homens. Penetrou pela porta estreita da metafísica, libertou-se, alcançou climas tão altos e tão diferentes que quando ela falava os homens do quarteirão sorriam” (1945, p. 6).

 Maria Lacerda faleceu no dia 20 de março de 1945, na cidade do Rio de Janeiro, aos 57 anos. Teve uma vida curta, mas muito intensa, que precisa ser lembrada, contada, reverberada. Sua experiência em Guararema pode nos dizer muito sobre a necessidade de economias solidárias, sobre o vegetarianismo e a ética com relação às outras espécies, sobre as comunidades libertárias, a vida no campo, o meio ambiente, a produção e o consumo de alimentos orgânicos, sobretudo nestes tempos de envenenamento dos nossos corpos, do nosso solo, das nossas águas e, por que não dizer, da vida planetária. Seus diversos escritos estão espalhados por aí em jornais, livros, livretos, revistas etc. à espera de outros diálogos. 

Pachamama está em chamas e os sinais da catástrofe já foram denunciados por ecofeministas, ambientalistas e ecologistas. A pandemia e todas as outras doenças criadas nos grandes cativeiros de dólar e de sangue da indústria da carne são consequências da exploração capitalista e patriarcal. Os “estômagos civilizados”, como dizia Maria Lacerda de Moura, são os estômagos que ardem pelo peso de uma alimentação industrial, regada a veneno, com o dissabor dos transgênicos, dos alimentos ultraprocessados e, sobretudo, com o peso da carne de outra pessoa, que, como nós, humanos, nasceu para viver livremente.

O respeito às pessoas não humanas pode ser o início de uma transformação na vida planetária, na relação humanidade-animalidade-plantas, para avançarmos em direção aos modos de existência mais afetivos e criativos. A empatia e o amor interespécie significa pensar que as outras formas de vidas importam, que nos modificam e que criam novas formas de convívio.

Lutemos pela libertação humana, não humana e planetária como queria Maria Lacerda de Moura!

 Sugestão de leituras:

LESSA, Patrícia. Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Entremares, 2020.

MOURA, Maria Lacerda [1931]. Civilização, tronco de escravos. 2. ed. LESSA, Patrícia; MAIA, Cláudia (org.). São Paulo: Entremares, 2020.

MOURA, Maria Lacerda. Amai e… não vos multipliqueis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1932.

RAGO, Margareth. Ética, Anarquia e Revolução em Maria Lacerda de Moura. In: REIS, Daniel Aarão; FERREIRA, José (org). As esquerdas no Brasil, v.1, A formação das Tradições, 1889-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 262-293.

UMA ESCRITORA. Notícias diversas, O Estado de São Paulo, n. 23, a. 165, p. 6, 29 mar. 1945.


Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Mulheres fortes e mulheres de força: para não esquecer de Sandwina

Mulheres fortes e mulheres de força: para não esquecer de Sandwina

Ao longo da história, as mulheres reivindicaram os seus direitos e foram, pouco a pouco, criando espaços, deixando suas marcas e derrubando muros para que outras pudessem avançar. No campo dos esportes não poderia ser diferente. Sou formada em Educação Física e, ainda na graduação, atuei como árbitra na Liga Pelotense de Futsal, depois de realizar o curso e prestar a seleção teórico-prática, em 1990. Foi uma época em que havia poucas mulheres na arbitragem do futebol e, sobretudo, havia muito preconceito. Recordo-me de uma partida em que atuei arbitrando o final de uma competição no ginásio de esportes do Colégio Municipal Pelotense. O jogo estava empatado, havia decidido junto à equipe de arbitragem que seria necessário fazer uma prorrogação. Na prorrogação, um dos times fez o gol que lhe daria a vitória. Foi um estrondo! As torcidas se alvoroçaram e digladiaram-se. Naquele momento, escutei todo tipo de insulto comumente dirigido às mulheres. Um deles foi que “o lugar de mulher é na cozinha”. Buenas! Confesso que sempre gostei de cozinha e não tenho nada contra ser associada ao trabalho neste local, o problema é achar que nosso local ainda está circunscrito ao reduto do lar. Enfim, permaneci mais algum tempo no trabalho de arbitragem e me envolvi em muitos esportes que, historicamente, foram considerados impróprios para as mulheres.

Muitas práticas desportivas foram e ainda são interditadas às mulheres em diferentes geografias. A invenção científica da “vulnerabilidade biológica” e da “fragilidade inata” deixou as mulheres de fora de muitos eventos desportivos. Fragilidade, vulnerabilidade e passividade são características totalmente desfavoráveis às exigências da performance atlética, em que tanto as mulheres quanto os homens devem extrapolar suas capacidades físicas. Os esportes são repletos de hierarquias, de processos longos e nem sempre justos, quando pensamos em esportes competitivos ou em esporte espetáculo, que exige disciplina, mas também, às vezes, alguns requisitos sociais para além da performance.

O futebol feminino no Brasil está repleto de histórias bizarras, como foi o caso do Saad (clube de futebol feminino de São Paulo) que nos anos 1990 exigia beleza e feminilidade das atletas. Em 1996, o Brasil fez sua estreia olímpica no Futebol Feminino, o que repercutiu um jogo de marketing nada coerente com os atributos exigidos pelo esporte. Alguns clubes como Fluminense, Grêmio e Corinthians seguiram as recomendações do projeto de marketing do Saad, o qual dizia que, além de competência técnica, era necessário ter beleza para entrar em campo. O critério era totalmente generizado, pois jamais seria exigido o mesmo dos homens que participavam de equipes de futebol. Deles, espera-se performance, resultado, independentemente de sua beleza ou do seu caráter, haja vista o número de atletas envolvidos em crimes tais como tráfico, estupro, falsidade ideológica e outros, mesmo assim eles seguem sendo ídolos depois de o caso ser “abafado”. Além disso, beleza é um critério totalmente frágil, pois a aparência é julgada de acordo com normas geralmente sexistas, classistas, racistas do senso comum. Uma mulher negra e lésbica passaria no crivo deste julgamento? Pois bem, as mulheres negras e lésbicas levaram o nome da seleção brasileira de futebol para todos os cantos do mundo: Marta, Formiga, Cristiane são alguns deste nomes que não podem cair no esquecimento.

Nos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, as mulheres não podiam competir. Sua inserção nas competições internacionais foi acontecendo de maneira gradativa, e ainda mais lenta naqueles esportes que eram socialmente considerados masculinos, tais como: as lutas, o halterofilismo, o fisiculturismo, o futebol, dentre outros. Em todas essas modalidades, entretanto, o tempo mostrou competência e talentos reconhecidos. Hoje o fisiculturismo feminino escreve sua história através da resistência que as bodybuilders empreendem em nome do esporte, crescendo gradativamente, mesmo sem incentivo financeiro e com alta carga de preconceito em relação aos corpos fortes e à musculatura delineada nas mulheres.

O fisiculturismo é um dos esportes em que as mulheres encontraram forte resistência – também as praticantes de esportes como ciclismo, halterofilismo, futebol e lutas de todo gênero carregaram o estigma de praticarem “esportes masculinos”. Em 14 de abril de 1941, o Conselho Nacional de Desportos (CND), então vigente naquele período, no Brasil, criou o Decreto Lei nº 3.199, o qual, no artigo nº 54, constava que as mulheres não poderiam praticar esportes “incompatíveis com sua natureza”. Em 1965, com a deliberação nº 7, definiram-se regras para a participação das mulheres nos esportes, não sendo permitida a elas a prática do futebol, do futsal, do futebol de praia, do polo, do halterofilismo, do baseball e das lutas de qualquer natureza. Foi somente em 1979, com a deliberação nº 10, que o decreto foi revogado. Apesar disso, é importante ressaltar que, mesmo com a lei vigorando, as mulheres participavam de treinamentos e de competições regionais, muito embora os longos períodos ditatoriais brasileiros tenham imposto regras que fomentavam um ideal de feminilidade baseado na fragilidade, docilidade e submissão das mulheres. As atletas escapavam como podiam e praticavam esportes, apesar de a lei impedir competições nacionais naquelas modalidades supracitadas.

No universo dos esportes, como em outras esferas sociais, os avanços são, muitas vezes, intercalados com retrocessos, como é o exemplo das competições femininas de musculação, que, depois de um longo tempo de evolução, as mulheres receberam um boicote: uma importante federação internacional divulgou que atletas de todas as categorias “devem reduzir a sua massa muscular em 20% do estágio individual atual”, com o argumento de perda da feminilidade. A musculação foi um dos esportes em que houve uma grande resistência quanto à participação das mulheres. Só muito tempo depois dos homens que elas puderam ser inseridas em campeonatos de halterofilismo e fisiculturismo. Além disso, a utilização da musculação nos programas de treinamento das atletas também se deu mais tarde, em função da crença de que as mulheres eram incapazes de realizar atividades que exigissem grande força física.

Uma clara distinção entre os gêneros é feita, e, nessa diferença, as mulheres levam a pior: falta de investimentos, de campeonatos e de patrocínios são alguns exemplos da desigualdade de gênero nos esportes. O exemplo do Miss Olímpia de 1987, realizado pela International Federation of Bodybuilding and Fitness (IFBB), nos Estados Unidos, é paradigmático. Cory Everson mais uma vez sagrou-se campeã e levou o prêmio de US$ 25.000. Naquele mesmo ano, Lee Haney ganhou o prêmio de US$ 55.000 pelo primeiro lugar. O prêmio masculino foi mais que o dobro do valor dado à Cory, porém o trabalho, o desgaste, os investimentos não podiam ser computados dessa forma, pois ambos fizeram um esforço heroico para chegarem ao pódio da competição de fisiculturismo mais prestigiada na segunda metade do século XX.

Muito antes de Cory Everson nascer, havia uma mulher que atravessou o oceano e rompeu as barreiras de gênero. Trata-se de Katie Brumbach. Ela nasceu em Viena, na Áustria, no dia 6 de maio de 1884, e faleceu no dia 21 de janeiro de 1952, em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Em Viena, ela era a estrela de um espetáculo no qual desafiava homens e mulheres em um ringue. Ela era filha do casal de artes circenses Johanna e Philippe Brumbach. Desde jovem, Katie atuou com a família, e, em uma de suas exibições, seu pai oferecia um valor em dinheiro para qualquer homem da plateia que fosse capaz de derrotá-la em um combate de força conhecido como wrestling. Nos registros históricos, nota-se que nenhum homem conseguiu derrubar a jovem Katie.

Em 1910, ela media 1,82cm de altura, pesava quase 100 kg e exibia um bíceps de mais de 40 cm de diâmetro. Apresentava-se como a mulher mais forte do mundo e fez exibições em vários países na Europa e no continente americano, local para onde se transferiu, definitivamente, na década de 1920. Foi em 1902, nos Estados Unidos, que vivenciou a experiência que lhe conferiu uma mudança radical: em um pequeno clube atlético de Nova York, ela participou de um desafio de força com Eugene Sandow no qual sagrou-se vencedora ao levantar 130 kg acima de sua cabeça, enquanto o conhecido fisiculturista não conseguiu erguê-la além da altura do peito. O nome Sandwina passou a circular ao redor do mundo desde aquele dia.  Após a vitória, ela adotou o nome artístico Sandwina, tendo em vista a importância de Sandow no cenário internacional dos esportes de força.

Sandwina trabalhou durante anos, nos Estados Unidos, com o Ringling Bros e Barnum & Bailey Circus, até quase os 60 anos de idade. Apresentava-se realizando feitos como: dobrar barras de aço, levantar três ou mais homens com a força dos braços, resistir à tração de cavalos, realizar levantamento de peso com mais de 100 kg acima da cabeça. Seu recorde no levantamento de peso foi de 296 lb (libras), equivalente a 129 kg, e foi superado somente em 1987 por Karyn Marshall. Sobre a Sandwina, é possível ver um filme disponibilizado no YouTube:  https://www.youtube.com/watch?v=NP7m5JQKkMc.

Escrevi sobre a Sandwina em artigos acadêmicos e no meu livro sobre musculação intitulado Mestre Puma e Larissa Cunha: na história da musculação competitiva, publicado pela Appris em 2020. Porém, nas revistas comerciais para as quais eu escrevi, sempre foi retirada a parte do texto em que diz que Sandwina venceu Eugene Sandow. A censura, neste caso, é uma das formas de apagamento de nossas memórias, por isso fiz questão de retomar aqui, na Coluna Pachamama, a história de Sandwina e alguns aspectos da história das mulheres nos esportes. Embora a história seja sempre marcada por indícios do que se passou, sabemos que, quando se trata da história das mulheres, muitas vezes, os acontecimentos são mitificados e transformados em lendas, causos e ficção. 

Independente de você ser contra ou a favor do esporte competitivo ou do esporte espetáculo, é importante observar as marcas de gênero impressas em diferentes modalidades ao longo da história. Portanto, convido você a ler sobre a história das mulheres nos esportes e tenho certeza de que perceberá surpreendente pluralidade e diversidade de lutas que as mulheres enfrentaram em diferentes temporalidades e geografias. Contornando as marcações de gênero, as atletas imprimiram uma marca de força e de resiliência em todas as modalidades desportivas.   

As imagens de Sandwina foram retiradas do livro de Josef Švub, Historie síly, publicado na República Tcheca pela editora Svet Kulturistiky em 1997.

Outras histórias de mulheres nos esportes de força podem ser encontradas em meu artigo, escrito junto com Iasmim Santos, publicado em: http://www.crc.uem.br/departamento-de-pedagogia-dpd/koan-revista-de-educacao-e-complexidade/edicao-n-5-dez-2017/edicao-n-5-dez-2017/as-strongwomen-da-belle-epoque-e-a-quebra-do-mito-da-fragilidade-inata.


Patrícia Lessa Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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O resgate histórico de obras escritas por mulheres e a importância do movimento feminista – Entrevista com Constância Lima Duarte

(Elaboração e realização: Patrícia Lessa e Andrea Conceição – entrevista realizada ao vivo via meet e transcrita depois.)

Nossa entrevistada do mês é a professora e pesquisadora Constância Lima Duarte. Ela possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1973), mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), e doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1991). Cumpriu programas de Pós-Doutorado na UFRJ e UFSC (2002-2003). Aposentada pela UFRN em 1996, ingressou como professora de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da UFMG em 1998, aposentando-se em 2005. Atualmente, é professora voluntária junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários, da UFMG. Tem experiência na área de Literatura Brasileira, com ênfase nos seguintes temas: literatura de autoria feminina e crítica literária feminista. Dentre as publicações, destacam-se Nísia Floresta: vida e obra; Mulheres em Letras – Antologia; A escritura no feminino; Mulheres de Minas: lutas e conquistas; Dicionário de Escritoras Portuguesas; Dicionário de escritores mineiros; Escritoras do Rio Grande do Norte – Antologia; Imprensa feminina e feminista no Brasil, século XIX, entre outros. Atua como pesquisadora junto ao NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, ao Centro de Estudos Literários e Culturais, da UFMG, e coordena o Grupo de Pesquisa Letras de Minas, cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq. Atualmente, compõe o Conselho Editorial da Editora Luas e é uma das curadoras da nossa Coleção Precursoras (Conheça a Coleção aqui).

 

1 – Constância, em sua trajetória, vemos que exerceu trabalhos e pesquisas em diferentes regiões do Brasil e em diferentes universidades, tais como Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Universidade Católica do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade de São Paulo. De que forma estas experiências contribuíram para a sua formação? Os cursos de pós-doutorado na UFRJ e na UFSC trouxeram quais novidades para as suas pesquisas?

Constância Lima Duarte: Essas universidades representam, cada uma, diferentes momentos da minha vida. Como já estava dentro de mim, entranhado em mim o desejo de investigar a história das mulheres, de conhecer as pioneiras da nossa literatura e de compreender essas nuances do movimento feminista, em todas essas instituições eu desenvolvi pesquisas sobre essas temáticas. Por exemplo: sobre Nísia Floresta, no Rio Grande do Norte, comecei lá e terminei na USP. À Nísia Floresta, nossa primeira feminista, dediquei anos de pesquisa, e continuo dedicando, e também às antigas escritoras da literatura nordestina. Sobre as antigas escritoras da literatura mineira, me dedico desde quando cheguei aqui na UFMG, enfim, tenho alguns livros sobre elas. Por fim, a história do feminismo, que também sempre me interessou. Eu adoro conhecer, saber histórias daquelas loucas, utópicas mulheres antigas que enfrentaram os preconceitos de seu tempo de peito aberto, destemidas. Eu fico pensando assim, onde é que elas encontraram tanta coragem? Porque as histórias que a gente vê da Maria Lacerda de Moura, Ercilia Nogueira Cobra, anarquistas, eu estou citando anarquistas. Naquele momento escrever “Virgindade Inútil e Anti-Higiênica”. Imagina uma novela com esse nome nos anos 20? “Virgindade inútil”! É louca! É de uma utopia inimaginável. Então eu adoro saber histórias dessas mulheres. Maria Lacerda de Moura tem um livro, ela é de Barbacena, ela é mineira, ela teve jornais e tudo, ela tem um livro “Amai e… Não Vos Multipliqueis”. Imagine falar isso nos anos 20? “A mulher é uma degenerada?”, ela põe uma pergunta. O mundo cientista tinha falado que a mulher era louca e degenerada, aí ela faz uma pergunta “a mulher é uma degenerada?”, e então ela vai responder nesse livro. Então são personalidades que nós tivemos na nossa história que são incríveis, eu fico então pesquisando.

 

2 – O seu livro: Nísia Floresta: vida e obra é uma importante contribuição para o campo dos estudos feministas, das biografias e o campo da literatura de autoria feminina, como foi a recepção dele no meio acadêmico?  

Constância Lima Duarte: Nísia Floresta é uma querida, foi meu tema de tese de doutorado que defendi na USP, em 1991. Na época, eu morava em Natal e me incomodava muito ver o pouco ou nada que sabiam sobre ela. A verdade era essa. Foi isso! Eu botei na cabeça que ia pesquisar Nísia Floresta. Não havia nada em Natal, no Rio Grande do Norte, nenhum livro dela.

Na época dessa tese, nos anos de 1980, quando comecei a pesquisar a Nísia, em 1984, eu viajava e procurava sobre a Nísia Floresta. E não havia nada sobre ela. Quer dizer, havia histórias: “Dizem que publicou muitos livros”… Outro falava assim: “será que foi ela que escreveu?”, “Será que é dela?”, “Dizem que ela teve muitos amantes na Europa”. Então aquelas histórias desencontradas. É como se naquele tempo tivesse um mito em torno de Nísia, a mulher mais brilhante das nossas letras, as pessoas falavam assim. Outros diziam assim “Era uma puta erudita”. Então havia um estigma também. Porque não conheciam nada. E quando se quer ofender uma mulher, vai pela moral, né? Para pesquisar sua obra, ninguém nem sabia quantos livros ela tinha publicado. Eu fui visitando bibliotecas e acervos por todo o país. Aproveitava minhas férias e ia para Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, onde ela morou, em várias cidades e estados do país, eu fui atrás das principais bibliotecas. Encontrava o mesmo livro. Não encontrava nada mais. Depois fui à Europa, porque ela viveu a metade da sua vida na Europa. Inclusive ela morreu e foi enterrada em Rouen, no interior da França. Lá nas bibliotecas da França, em Paris, em Florença, de Roma, eu encontrei edições de Nísia Floresta escritas em inglês, em francês, em italiano, que ainda não tinham sido nem citadas nos dicionários bibliográficos brasileiros. Ninguém sabia desses livros. Então, eu fui recolhendo livros dela e sobre ela, informações sobre ela nos jornais, nas notícias, encontrei o passaporte dela em um arquivo nacional da França. Foi assim que fiquei sabendo das viagens, das datas das viagens etc. E com essas informações valiosas, eu fui escrevendo a sua biografia. Há grandes lacunas, ainda assim. Há anos em que não sei onde ela estava nem o que ela fez. Alguém vai descobrir, eu espero que descubra. E, desde então, eu me dedico a reeditar. Já reeditei alguns livros dela. E me dedico a falar dela para quem quiser ouvir. Sempre que me chamam, sempre que querem, eu vou falar de Nísia Floresta.

Nísia nasceu em 1810 e morreu em 1885. Seu primeiro livro é uma tradução de um livro inglês que estava traduzido para o francês, que ela traduz do francês para o português, chamado “Direitos das mulheres e injustiça dos homens”. É o primeiro livro em língua portuguesa que chega aqui para nós que fala em direitos das mulheres. Adoro esse título! Você pergunta como foi a recepção dele no meio acadêmico. Havia uma curiosidade, um interesse. Eu costumo dizer que é como se Nísia estivesse no inconsciente coletivo de toda a feminista. Todo mundo parece que já ouviu esse nome, a impressão que eu tenho é essa. Então há muito interesse. E hoje, o feminismo que estamos vivendo, há uma nova onda, uma grande e forte onda. Podemos falar disso depois, e é nascente, é muito grande este interesse em saber sobre Nísia Floresta, por exemplo, sobre as primeiras feministas, as primeiras que tiveram ideias feministas.

 

3 – O livro: Imprensa feminina e feminista no Brasil: século XIX nos leva a pensar muitas questões, dentre elas: no século XIX quais eram as reivindicações das mulheres na imprensa? Quais as diferentes pautas das mulheres e daquelas que se declaravam feministas?

Constância Lima Duarte: Ótima pergunta, ótima questão. Eu costumo dizer que cheguei nos periódicos da imprensa pela literatura, porque, quando eu procurava as antigas escritoras, eu encontrava os títulos dos jornais em que elas tinham publicado, pois os jornais foram o primeiro veículo de divulgação do trabalho intelectual feminino. O primeiro não foi o livro, primeiro elas publicavam nos jornais, depois aparecia o livro. Às vezes ele nem aparecia… Obras inteiras eram publicadas nos jornais ao longo de anos. Então, foi a literatura que me levou aos periódicos. Nesse sentido, eu penso que as primeiras escritoras eram todas feministas, compreende? Porque eu sempre enxerguei no gesto de uma mulher publicar, tornar público um pensamento, uma opinião sobre qualquer coisa nos séculos XVIII e XIX, quando isso não era permitido, um gesto feminista. Achar: eu posso! Eu quero! Ir contra todos e tudo. Eu já parto por aí. As primeiras escritoras, só por terem sido escritoras, eram feministas, porque eu gosto de pensar no feminismo sempre no sentido bem amplo. Antes de ser um movimento organizado, articulado em grupos, visando à construção de um mundo que a igualdade de gênero seja uma realidade. Antes disso, o feminismo surgiu através de iniciativas individuais. E era um projeto feminista. Junta duas mocinhas, duas amigas, duas irmãs e vão formar um jornal para defender as mulheres, isso é feminismo, não é? Isso é feminismo. Então, eu cheguei nos jornais procurando as mulheres. Quer ver um exemplo de escritora, no século XIX, Emília Freitas. É uma cearense, bárbara, gosto muito dela. Ela tem um romance chamado A Rainha do Ignoto. Ignoto é o desconhecido. A rainha do desconhecido. O enredo é a história de uma sociedade de mulheres, e essa rainha traz as mulheres espancadas, sofridas, maltratadas para sua terra, é uma terra que ninguém vê, é uma sociedade escondida, desenvolta, e a função dessas mulheres é resgatar outras mulheres que estão em situação de opressão. Quer mais feminismo que isso? Não existe a palavra feminista, mas o romance é isso. A Emília Freitas, no livro, retrata as mulheres, aquela sociedade – uma era general, a outra era advogada, a outra era engenheira, a outra era médica, estavam em todas as funções – em que elas podiam tudo. Tudo que não existia no mundo real ela constrói no mundo ficcional, fictício.

Você pergunta quais eram as reivindicações das mulheres na imprensa. A primeira bandeira que está desde Nísia Floresta, em 1830, até no final do século XIX, é a educação. A luta pela educação feminina, para abrir escolas de meninas, para mudar e melhorar o ensino delas. Primeiro para abrir escolas primárias. Conseguem escolas primárias, em 1827, por meio da lei que autoriza a abertura de escolas para meninas nas vilas mais populosas: Salvador, Vila Rica, Recife, Olinda, Rio de Janeiro e outras. E essas escritoras, essas jornalistas, elas pleiteavam, elas ficavam em cima, querendo o melhor ensino, porque as escolas, quando foi permitido o ensino e a abertura de escolas para meninas, eram escolas que privilegiavam o ensino doméstico, a função doméstica; o futuro da menina era para ser dona de casa. Era um verniz de cultura que as meninas tinham: bordar, algumas palavrinhas de francês, para falar nos salões, pois eram meninas da elite, tocar piano para agradar, cantar, desenhar e ler, soletrar alguma coisa. Então, é engraçado isso, você observa, nas décadas de jornais, primeiro: abrir escolas para meninas, permitir que as meninas estudassem o primário. Logo começam a pleitear o ensino secundário. E muitas dessas jornalistas tinham escolas. Nísia Floresta teve uma escola em sua casa e depois um colégio, o colégio Augusto, no Rio de Janeiro, que tinha o primário e o secundário. Ensinavam línguas estrangeiras. Então foi assim: primário, secundário e universidade. Nos anos 70, 80, começam as mulheres a falar em permitir que as moças, as jovens, fossem para as universidades, as faculdades, porque isso não podia, na verdade.

 

4 – Você possui trabalhos e pesquisas dedicadas à emancipação feminina. Sobre isso, gostaríamos de perguntar: De que forma você acredita que a autoria feminina confere legitimidade frente ao processo de emancipação feminina?

Constância Lima Duarte: Eu penso que a autoria feminina é um dos mais importantes passos para dar legitimidade à emancipação. As mulheres podem escrever, concorrer a prêmios, pleitear reconhecimento nas academias literárias, e por aí vai. Então, eu considero a autoria feminina absolutamente necessária, fundamental para legitimar essa emancipação.

 

5 – Você acredita que as mulheres continuam sendo invisibilizadas na historiografia? Caso afirmativo, o que atribui a isso?

Constância Lima Duarte: Veja, se pensarmos em termos acadêmicos, eu estou pensando na minha área, a literatura, até bem pouco tempo, as disciplinas dos cursos de Letras estavam pautadas pelo cânone, que é majoritariamente masculino e branco. As poucas escritoras que estudadas, eram sempre as mesmas, que de certa forma também já estavam canonizadas – Clarice Lispector, Cecília Meireles, Lygia Fagundes Teles, e só. Raramente incluíam em disciplinas outros nomes como Raquel de Queiroz, Gilka Machado (uma anarquista), Hilda Hilst (outra anarquista). Porém, nos últimos anos, houve uma renovação do corpo docente da universidade. Todo curso é se renovou! Saíram os antigos e chegaram novas cabeças, jovens professores. E acredito que aconteceu em todas as áreas. A partir daí temos notícias de que muitas escritoras contemporâneas se tornaram objetos de cursos, de disciplinas, porque começaram a entrar nas aulas. Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis estão em alta nesse momento, e todas as três são negras, o que significa uma abertura inédita aos estudos literários, entende? É uma renovação revolucionária. O feminismo negro, por exemplo, tem suas pautas específicas. A mulher negra mais que nunca, porque está correndo atrás de um prejuízo. Ficou sem voz por muito tempo e de repente tem que falar tudo, fazer tudo. Veja, é esta questão: esse novo feminismo também entrou na universidade e provocou mudanças, virou tema de teses, dissertações, monografias. Conceição Evaristo está em alta, Carolina Maria de Jesus também. Maria Firmina, a primeira escritora brasileira, ficou absolutamente esquecida por décadas, muitas décadas, e de repente descobrem que foi a primeira mulher escritora negra a falar em abolição em nosso país. Poxa, não existe nenhuma história literária falando disso. Agora, isso está sendo dito em sala, compreende?

 

6 – Em 2020 vimos muitas iniciativas voltadas para a visibilidade da voz das mulheres nas artes. Como a criação de editoras e de livrarias voltadas para a escrita das mulheres pode contribuir para a valorização de suas vozes?

Constância Lima Duarte: Eu penso que a criação de tantas editoras de mulheres voltadas especialmente para esse nicho da literatura de autoria feminina é da maior importância, porque vai ampliar, de forma inédita, a produção das mulheres. Vai permitir um alcance, uma distribuição que ainda não temos como avaliar, mas eu acredito no potencial dessas “pequenas”, entre aspas, “pequenas editoras”, porque elas se somam. A Luas publica aqui, mas, agora com a internet, vende para qualquer lugar, outra em São Paulo. E assim elas vão se somando. Eessas editoras, no momento pequenas, vão se tornar gigantes, porque o nicho, o tema com que elas trabalham, a produção de autoria feminina, é tudo muito amplo e está absolutamente em alta. Eu acho que é excelente.

 

7 – A Editora Luas está anunciando o primeiro volume do livro: Memorial do Memoricídio, organizado por você e que sairá ainda em 2022, nos parece uma iniciativa bastante ousada. Poderia falar um pouco do projeto?

 Constância Lima Duarte: Claro! É um projeto que nasce do coração. É um projeto que pretende contribuir para divulgar escritoras que são pouco conhecidas, apesar das contribuições que deram em vida, apesar da produção intelectual que tiveram. É aquele conceito do memoricídio, porque (estou falando na minha área, da literatura), se você pega qualquer grande história da literatura brasileira, parece que não existe mulheres no século XVII, XVIII e XIX, só homens. Só os homens escreveram. Sim, era outra vida que as mulheres levavam, claro, mas, existiram as escritoras. Algumas, apesar de tudo e todos, apesar das limitações, do preconceito, algumas romperam esse preconceito, esse círculo vicioso em que estavam. “Mulher só tem que casar”, “mulher não tem que aprender a ler e escrever” etc. etc., e publicaram. Publicaram romances, contos, novelas, peças de teatro. Só que suas obras desapareceram, e quando eu falo de memoricídio, quer dizer, as mulheres sofreram, essas primeiras escritoras foram apagadas da história, foram apagadas da memória oficial, não entraram em livros nenhum, em dicionário nenhum. Se você olha nos grandes historiadores, parece que a  participação da mulher na literatura começou nos anos 1930. Os primeiros nomes que aparecem, em todos os livros, é Raquel de Queiroz, na ficção, e Cecília Meirelles, na poesia. De repente, eles não tinham mais como não ver, sabe? Estavam ali. As mulheres estavam publicando. Então, a partir dali começam a falar em mulheres. Poucas. Bem poucas. Mas começam ali.

Então, essa ideia do memorial, assim como o nome quer dizer, que é um monumento, é fazer um monumento. Eu acho que para quem é escritor/a, o melhor monumento é um livro. Foi isso que eu pensei com a Cecília, da Luas. Então, o Memorial do Memoricídio. O título é meu, eu gostei, porque a ideia é esta: eu convidei algumas colegas, fiz uma seleção de escritoras, de nomes de escritoras bárbaras, todas elas ótimas. Então, cada pesquisadora fez pequenas biografias de escritoras brasileiras, completamente, ou praticamente, desconhecidas da historiografia literária. Eu estou feliz com essa publicação. Eu acho que vai ser uma contribuição. Vão aparecer nomes ali que muita gente nunca ouviu falar e vai ficar surpreso/a. Como o exemplo que eu citei, da Emília Freitas, escritora fantástica, uma obra incrível que ninguém fala, que ninguém estuda. Então é isso, a ideia desse livro é ousada, eu concordo, eu acho também. Vai sair o primeiro volume do Memorial do Memoricídio, com quarenta escritoras, todas do século XIX para trás, e o volume dois está já sendo produzido também.

Então é isso, a ideia do projeto é contribuir para divulgar escritoras que não são conhecidas, ou praticamente desconhecidas, mas que merecem estar na história, porque também produziram. Também deram uma contribuição intelectual. Eu costumo falar com meus alunos e alunas que parece que a literatura brasileira só tem um lado. E é o lado que só homens escreveram, só homens brancos, sabe? Mas e as mulheres? Que história da literatura é essa? Cadê essas mulheres? Então, é o outro lado da literatura que a gente tenta mostrar.

                                                           Obrigada, Constância!

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