+55 31 9 8904-6028

Monthly Archives: janeiro 2024

Vamos mulherizar a ciência!

Vamos mulherizar a ciência!

A ciência brasileira ainda é feita em grande parte pelos homens, brancos e cis, mas o empenho de algumas pessoas e grupos de mulheres que dedicam tempo de suas vidas para mudar essa realidade está começando a produzir resultados. Exemplar nessa frente de batalha é o trabalho da pesquisadora Fanny Tabak, fundadora de um dos primeiros grupos da área: Núcleo de Estudos sobre a Mulher (NEM), no final de 1980, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Tabak é autora do livro O laboratório de Pandora: estudos sobre a ciência no feminino, em que radiografa a condição das mulheres que fazem ciência no Brasil e alerta para a situação de desigualdade no mundo acadêmico – que, segundo ela, só deixará de existir se forem tomadas medidas de incentivo à participação das mulheres na ciência, tal como criação de grupos de pesquisa, núcleos, disciplinas, cursos de pós-graduação, linhas de pesquisa etc. [1]

Londa Schiebinger afirma que de todas as áreas das ciências naturais a Biologia é a que mais sofreu impacto dos estudos feministas e de gênero. O debate é recente, tem pouco mais de quatro décadas, e as causas e consequências são objetos da investigação de filósofas/os, cientistas naturais e sociais. Ela pergunta: O feminismo mudou a ciência? Nessa obra ela afirma uma série de mudanças nos processos de investigação de diversas áreas da ciência. Tais mudanças em áreas como arqueologia, primatologia e reprodução parecem ser mais sensíveis às análises de gênero, mostrando, inclusive, erros metodológicos no processo investigativo, os quais, por sua vez, geram diferentes interpretações da realidade fenomênica e, tão logo, de nossa história natural. Erros que são apontados pelas pesquisadoras e demonstram um olhar atento para resultados que reafirmam a prerrogativa excludente.

Escreve a autora: “A ciência moderna é um produto de centenas de anos de exclusão das mulheres, o processo de trazer mulheres para a ciência exigiu, e vai continuar a exigir, profundas mudanças estruturais na cultura, métodos e conteúdo da ciência. Não se deve esperar que as mulheres alegremente tenham êxito num empreendimento que em suas origens foi estruturado para excluí-las” [2]. As análises de Londa demonstram que a luta é necessária e não deve ser circunscrita a uma única área. Ela aponta que as instituições de ensino superior e de fomento à pesquisa, ao omitirem o debate feminista, pretendem com isso descaracterizar a questão política e reduzi-la a uma “questão de mulher”.

A discussão é longa e ajuda a compreender o fato ocorrido no final de 2023, no Brasil. A professora universitária Maria Caramez Carlotto, da Universidade Federal do ABC, fez uma denúncia em suas redes sociais a respeito da discriminação de gênero em parecer do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) com relação ao seu pedido de bolsa produtividade. Após a sua denúncia, uma avalanche de outros casos vieram à tona.

Segundo a docente, o parecer emitido pelo CNPq negou o seu pedido, apesar de reconhecer a importância de sua carreira, alegando que ela não fez pós-doutorado no exterior, pois “provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas”. Diante do acontecimento, vale ressaltar duas questões: o requisito de local de realização do pós-doutorado não estava previsto no edital e as gestações da docente não são relevantes para a sua profissão e jamais poderiam servir para desmerecer seu trabalho acadêmico.

A professora Cibele Russo, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade Federal de São Paulo teve o pedido de bolsa negado. O parecer mencionou a maternidade como justificativa para a baixa produtividade na produção científica, alegando que o período pós-parto afetou suas publicações e o número de orientações no programa de pós-graduação.

Os pareceres revelam um sistema de avaliação que resulta em desencorajamento para que as mulheres que são pesquisadoras e mães persistam na carreira acadêmica. Com a polêmica, o debate fomentou outros questionamentos: quais são os critérios para participar da seleção? Podem as agências de fomento utilizar dados da licença-maternidade? Quantas mulheres perderam suas bolsas de produtividade no período da pandemia por terem acumulado trabalho doméstico e ajuda na educação de suas crianças e jovens? Os resultados desse processo revelaram o machismo, a misoginia e o sexismo de uma sociedade pautada em valores coloniais e patriarcais.

Vários grupos de pesquisa e instituições estão fazendo forte pressão para que o governo federal adote medidas que garantam um processo justo e coerente. Como resposta, o CNPq emitiu uma nota no dia 06/01/2024 na qual admite “equívoco na avaliação”. Ao utilizar a gravidez e a maternidade como critério de exclusão, a agência fere os preceitos de representatividade e inclusão defendidos em suas proposições. A nota emitida não atende as demandas dos grupos que consideram que o processo de seleção deveria ser cancelado e refeito sob novas bases, com critérios mais justos e equânimes.

A divisão sexual do trabalho é uma das estratégias coloniais e patriarcais para a manutenção das desigualdades sociais. Alguns grupos irão participar da produção e outros da reprodução. Ela não é igual ao redor do mundo, portanto está intimamente afetada por questões étnicas, de classe social e de gênero. Patrícia Karina Vergara Sánchez escreve: “Teorizar é algo que não está ao alcance de qualquer mulher que não necessariamente entenda ou escreva as linguagens acadêmicas, que talvez não se utilize dos formatos impostos para escrever (…). Essa situação é muito conveniente para manter o mundo tal qual existe hoje!” [3]. Manter as mulheres circunscritas ao ambiente doméstico é uma estratégia política colonial/patriarcal. Enquanto isso, as mulheres pesquisadoras e cientistas seguem na luta.

Vamos aguardar os desdobramentos do caso da discriminação de gênero na distribuição de bolsas de pesquisa no Brasil. Não vamos aguardar paradas, o mais importante é a tomada de medidas para barrar este tipo de avaliação imparcial e, sobretudo, exigir que um número maior de mulheres, de pessoas negras, indígenas e LGBT participem destas avaliações e possam construir novas bases para uma educação que contemple as diferenças.

____________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

 Referências

[1] TABAK, Fanny. O laboratório de Pandora: estudos sobre a ciência no feminino. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

[2] SCHIEBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência? Bauru: Edusc, 2001. p. 37.

[3] SÁNCHEZ, Patrícia Karina Vergara. Siwapajti: medicina de mulher. Memória e teoria de mulheres. Belo horizonte: Editora Luas, 2022. p. 20.

[4] Na imagem, a primeira pessoa programadora de computadores do mundo: Augusta Ada Byron King, conhecida como Ada Lovelace.

Posted by admin