Resenha do livro “Não escrevo poemas de amor” – por Maria do Rosário A. Pereira
DIÓ, Camila. Não escrevo poemas de amor. Guaratinguetá: Penalux, 2020.
Não escrevo poemas de amor (2020) é o primeiro livro da poeta mineira Camila Dió – que, a propósito, acaba de publicar seu segundo título, Quando versos gotejo (2021), ambos pela Penalux. O modo como seu primeiro livro foi organizado lembrou-me A vida submarina, de Ana Martins Marques, primeira obra de uma hoje renomada poeta mineira: muitos livros estavam contidos neste livro, isto é, cada bloco poderia ser, por si só, uma obra à parte – ao menos foi a impressão que tive na época. A mesma impressão tive na leitura dessa estreia promissora de Camila Dió: ainda que o livro não seja dividido em partes, é possível visualizar conjuntos de poemas que poderiam formar obras à parte, o que aponta para a diversidade do trabalho dessa poeta.
É assim que há poemas metalinguísticos como o de abertura, “A poesia é”: neste poema, Camila trabalha belas imagens e metáforas para mostrar ao leitor que a poesia encontra-se nos pequenos elementos ou gestos do cotidiano, que ela não é algo hermético, destinada a uns poucos “sábios”. Vejamos algumas dessas definições: “Um suspiro de alívio ante uma solução importante,/O Zéfiro que ergue pipas e balões ao céu distante,/O vento que provoca as ondas agitando as tempestades, /Uma lufada longa e fresca num dia quente na cidade (…).” Também a natureza comparece em peso para definir e aproximar a poesia do homem comum, da vida cotidiana e simples, como se a poesia fosse um respiro em dias e momentos tão tumultuados – nada mais contemporâneo, diga-se de passagem. A preocupação com a palavra reverbera em outros poemas como “O surgimento de tudo”, que traz versos emblemáticos a exemplo deste: “A palavra pode ser eterna dentro de um segundo.” Como praticamente todo bom poeta, Camila Dió não se furta a perscrutar os meandros da linguagem, uma vez que por ela somos constituídos e com ela nos presentificamos no mundo.
Digno de nota é o título da obra: a poeta posiciona-se claramente em favor de um modus operandi poético, por assim dizer, que não confere exatamente com certas expectativas sociais. “Versinhos de amor”, ainda hoje, parecem constituir o imaginário associado à poeta mulher – se não por um leitor mais atento e familiarizado com poesia, ao menos pelo senso comum. Já pelo título percebemos que a proposta poética de Camila Dió é mais reflexiva e ancorada numa atitude mais dinâmica – uma janela para o mundo subjetivo da poeta, conforme poderíamos pensar pela imagem apresentada na capa, mas ao mesmo tempo uma janela para as inquietações contemporâneas do próprio ser humano.
A memória e os objetos que a representam também comparecem nessa figuração poética, a exemplo do poema “Dentro de um baú”, no qual o eu lírico retira flores mortas de um baú e cada uma delas simboliza um momento, uma lembrança e, assim como a própria memória, desconfiguram-se com o passar do tempo, desmaterializando-se, perecendo, enfim: “pego docemente cada flor/ – que não tem mais cor/ – que não tem mais cheiro/ que se desintegram em minhas mãos,/ que escapam por entre meus dedos (…)”. Tais flores vão sendo substituídas por outras, num trabalho semelhante à recolha das próprias lembranças, que assim também se encadeiam, umas dando lugar às outras, as mais significativas substituindo as transitórias. Assim, nos versos que se seguem, o baú que é de memórias é também de recomeços, como a própria vida, em que uma fase dá lugar a outra, em que a um momento de tristeza se segue um de felicidade, e vice-versa. A fugacidade da vida e o modo como a passagem do tempo é registrada pelo ser humano parece ser uma temática cara a essa jovem poeta, que demonstra uma especial maturidade no manejo da linguagem justamente nos versos em que trabalha essa questão.
Para além de poemas extremamente expressivos no que se refere ao trato com a linguagem há poemas de cunho social, como se lê em “Quem compra?”, no qual o eu lírico “vende” uma série de agruras sociais, em um claro propósito de denúncia: o abandono, a violência e o descaso a que a parcela pobre da população se vê submetida são vendidos, na última estrofe, “aos políticos/ com seus olhares livres de empatia”. Ou seja, o poema não é só uma denúncia a uma situação social calamitosa, mas também ao modo como tal situação vem sendo tratada historicamente pelos detentores do poder em nossa nação.
Há, ainda, poemas que problematizam a relação do homem com o mundo digital, a relação do homem com o capitalismo, a situação dos detentos, a infância, a velhice…. O último poema do livro traz um cenário rural como pano de fundo, numa perspectiva distinta do que fora apresentado até então mas, ao mesmo tempo, novamente dando destaque aos elementos da natureza. Como se nota, é bem diversificado o escopo do livro. Talvez, nesse sentido, um recorte mais direcionado poderia ser mais certeiro; ao mesmo tempo, esse amplo leque dá mostras ao leitor do potencial dessa jovem autora, que, certamente, ainda tem muito a oferecer aos leitores. Que a vivacidade da autora possa contaminar cada vez mais leitores.
Maria do Rosário A. Pereira*
*Doutora em Letras – Estudos Literários (2014), área de concentração Literatura Brasileira, pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Letras: Estudos Literários, área de concentração Literatura Brasileira (2008), e bacharel em Letras (2004) pela mesma instituição. Integra o Grupo de Pesquisa Letras de Minas (UFMG), o Atlas (CEFET-MG), o Mulheres na Edição CEFET-MG) e o Mulheres e Ficção (UFV). É professora efetiva de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira e Editoração nos cursos técnicos e de graduação em Letras do CEFET-MG.
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