
Campanha Sônia Livre escancara o trabalho análogo à escravidão no Brasil
Campanha Sônia Livre escancara o trabalho análogo à escravidão no Brasil
“O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós, o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular. Consequentemente, o lugar de onde falaremos põe um outro, aquele é que habitualmente nós vínhamos colocando em textos anteriores. E a mudança foi se dando a partir de certas noções que, forçando sua emergência em nosso discurso, nos levaram a retornar a questão da mulher negra numa outra perspectiva. Trata-se das noções de mulata, doméstica e mãe preta” – Lélia Gonzalez [1].
Lélia Gonzalez, em suas reflexões, expõe a relação entre racismo e sexismo e suas consequências na vida das mulheres negras. O racismo estrutural presente na cultura brasileira gera uma brutal violência sobre os corpos não brancos. Quando a questão étnico-racial é interseccionalizada com a questão de gênero e classe social o problema se agrava. Neste sentido, cabe pensar essas relações para analisar o caso que veio à tona em 2023 sobre trabalho doméstico análogo à escravidão.
Sônia Maria de Jesus foi resgatada de trabalho análogo à escravidão em 2023. Ela é a mais velha de sete irmãs e irmãos: Marlene, Aparecida, Marcos, Marcelo, Marta e Marisa, os quais vivem na capital de São Paulo. Ao longo das investigações, se descobriu que ela, aos nove anos de idade, foi retirada do convívio familiar. Não são raros os casos de meninas negras desaparecidas no Brasil. É preciso que haja uma atenção a isso ou corremos o risco de naturalizar a escravidão contemporânea.
Em depoimento à imprensa, Marta de Jesus, irmã de Sônia, contou que a mãe tinha um relacionamento abusivo e passava por dificuldades para criar as filhas. “Numa creche próxima de casa, elas eram atendidas por uma psicóloga, que se ofereceu para cuidar de Sônia por um período, com visitas regulares da mãe. ‘Mas quando acabou o trabalho voluntário dessa psicóloga na creche, ela foi embora e levou a Sônia junto, neste momento, minha mãe perdeu totalmente o contato com a minha irmã’”, relatou a irmã. A mãe passou a procurar pela filha, mas nunca a encontrou, segundo relato de Marta. Ela conclui: “Minha mãe sempre sofreu muito por isso, sempre chorava e dizia ‘eu vou morrer e não vou ver minha filha’, e assim se fez” [2].
O caso ganhou repercussão internacional, e, até o momento, não foi confirmada uma relação direta entre tráfico humano e trabalho escravo, apesar de os indícios apontarem para esta brutal realidade. As meninas negras sequestradas ou desaparecidas na infância refletem uma sinistra rede de tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo, seja nas lavouras, no trabalho doméstico, na prostituição ou outras formas de exploração.
Sônia Maria foi resgatada por auditores fiscais do trabalho em junho de 2023. Dois meses depois, o Superior Tribunal de Justiça revogou a decisão de resgate, por entender que havia insuficiência de provas, e autorizou a volta da mulher à casa dos patrões. Nos registros do combate moderno ao trabalho escravo, iniciado em 1995, é a primeira vez que ocorre um “desresgate”, termo que passou a ser usado pelo Ministério Público do Trabalho, responsável pelo caso.
O cenário é grave! Sônia, aos 51 anos, negra, cega de um olho, surda, não oralizada e não alfabetizada em Libras, nem em português, foi resgatada após trabalhar durante 40 anos na casa do desembargador Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis (SC), em condições análogas à escravidão. O Ministério Público Federal, algumas entidades de direitos humanos, a família de Sônia e a sociedade civil aguardam a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal incluir na pauta o julgamento desse caso de trabalho análogo à escravidão.
Com a repercussão do caso, Jorge Luiz de Borba e sua esposa, Ana Cristina, entraram com um pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva de Sônia. Embora o casal, hipocritamente, afirme que ela foi “criada como se fosse da família”, não há como negar as negligências cometidas pelo casal, como a falta de acesso à educação, que é obrigatória por lei, o acesso à alfabetização em Libras e, principalmente, o direito de contato com irmãs e irmãos.
O casal de pessoas brancas, sulistas e vinculadas ao sistema judicial está chamando a atenção dos direitos humanos internacionais para a relação entre o trabalho análogo ao escravo e o tráfico humano. Embora nunca tenham fornecido condições básicas de saúde e educação para Sônia, agora o casal reivindica “paternidade socioafetiva” e a impedem de se aproximar da sua família, que está unida em busca de justiça. Neste caso, vale lembrar o que diz Carla Akotirene: “Enquanto as mulheres brancas têm medo de que seus filhos possam crescer e serem cooptados pelo patriarcado, as mulheres negras temem enterrar seus filhos vitimados pelas necropolíticas” [3]. No caso de Sônia, a necropolítica está posta, trata-se de um “homem da lei”, desembargador, que insiste em manter uma mulher negra em condições insalubres diante da mídia internacional. Isso é possível graças a certeza de estar blindado por sua profissão, classe social, gênero e branquitude.
Segundo uma matéria publicada pela Intercept Brasil: “Sonia, que vivia na casa de luxo do casal desde os 9 anos de idade, foi resgatada após uma denúncia anônima. Sua saúde bucal estava deteriorada e ela sofria com um tumor no útero. As investigações apontaram que trabalhava como doméstica sem salário nem descanso, dormia em um quarto mofado e foi privada de educação e documentação pelos quase 40 anos que permaneceu em condições análogas à escravidão” [4]. Os desdobramentos do caso estão em suspenso e a vítima segue sob a guarda do acusado.
É preciso que as vozes feministas se levantem clamando pela libertação de Sônia. Não é possível imaginar um projeto de libertação das mulheres enquanto houver casos como o de Sônia sendo acobertados pelo manto da justiça feita por homens brancos. Vale lembrar que Angela Davis abordou a participação de Sojourner Truth durante a convenção das sufragistas em Akron, Ohio, em 1851. Ela nos diz que a sua voz soava como “o eco de um trovão”. Segue um trecho da fala de Sojourner:
“Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim! Não sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem – quando eu conseguia comida – e aguentava o chicote da mesma forma! Não sou eu uma mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maioria ser vendida como escrava e, quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! Não sou eu uma mulher?” [5].
Assim como Sojourner Truth, precisamos questionar: Sônia não é uma mulher? Sua vida merece ganhar destaque entre os grupos feministas, ou estaremos fadadas ao fracasso por não entendermos que as mulheres não brancas são vulnerabilizadas dentro de uma sociedade calcada em valores racistas e patriarcais.
Lutemos pela libertação de Sônia!
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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.
Notas:
[1] GONZALES, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rios, Flávia; LIMA, Márcia (orgs.). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2020. p. 76.
[2] OLIVEIRA, Beatriz de. Sônia Livre: Campanha pede pela liberdade de mulher negra vítima de trabalho escravo. Nós, 13 jun. 2024. Disponível em: https://nosmulheresdaperiferia.com.br/sonia-livre-campanha-pede-liberdade-de-mulher-negra-vitima-de-trabalho-escravo/#:~:text=S%C3%B4nia%20Livre%3A%20campanha%20pede%20liberdade%20de%20mulher%20negra%20v%C3%ADtima%20de%20trabalho%20escravo,-S%C3%B4nia%20Maria%20de&text=Em%202023%2C%20a%20catarinense%20S%C3%B4nia,%2C%20em%20Florianopolis%20(SC). Acesso em: 23 jan. 2025.
[3] AKITIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen Livros, 2019. p.16.
[4] GUIMARÃES, Paula. De volta à casa grande: desembargador denunciado por trabalho escravo usou ‘manipulação psicológica’ para vítima voltar à sua casa, revelam laudos. Intercept, 11 dez. 2023. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2023/12/11/desembargador-denunciado-por-trabalho-escravo-usou-manipulacao-psicologica-para-vitima-voltar-a-sua-casa-revelam-laudos/. Acesso em: 23 jan. 2023.
[5] DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. p.71.