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Dia Internacional da Mulher: para quais mulheres?

Dia Internacional da Mulher: para quais mulheres?

“O choro da menina foi se transformando em um gemido quase inaudível, fazendo os latidos do cão diminuírem aos poucos”

(Adania Shibli) [1].

A imagem que ilustra a divulgação deste texto é de Shamsia Hassani e foi criada em 2020. Ela nasceu em abril de 1988 no Afeganistão e aborda a situação das mulheres no Oriente Médio. A artista é grafiteira, professora universitária nas áreas de escultura, arte digital e urbana. A obra em destaque mostra uma maternidade nada romantizada. A gestante segura o ventre onde vemos um feto formado e posicionado com a cabeça para baixo. Seria, em condições comuns, um indício de que a criança está pronta para vir ao mundo. No entanto, a mãe e a criança estão com seus corações partidos, pois vivem em uma zona de guerra. O futuro dela é incerto! O tanque de guerra no segundo plano nos possibilita entender a dor da mãe que chora [2].

Ao redor do mundo, muitas mulheres nem lembram que existe um dia para “elas”, para “nós”. Sabemos que nas zonas de guerra as mulheres e as crianças são as maiores vítimas. No dia 8 de março, as redes sociais divulgaram o discurso proferido às turmas da escola religiosa Shirat Moshe pelo diretor, o rabino Eliyahu Mali, que abordou os escritos sagrados do judaísmo. Segundo o rabino, está havendo uma “guerra santa” em Gaza e todo soldado deve atentar para a regra básica prescrita no Torah: “Não poupem nenhuma alma! Não há pessoas inocentes. Se você não os matar, eles irão te matar. São vocês ou eles. A próxima geração e as mulheres que dão à luz a próxima geração serão os terroristas de amanhã”. Ele é enfático: “Não poupe nenhuma mulher, nem gestante, nem criança, nem bebê, nem idosa”.

A fala do rabino não é algo novo, sabemos que a dominação colonialista tem como alvo as mulheres e as crianças. O colonialismo, desde seus primórdios, é escrito com o sangue das mulheres e de suas crianças. A obra de Shamsia é bela e triste. Retrata a dor das mães cujo futuro é incerto e repleto de medo e melancolia. As mulheres que sofreram ou sofrem os processos colonizadores estão à margem desta e de outras comemorações tão caras às instituições tradicionais. As mulheres indígenas e as mulheres negras da América Latina, as do Oriente Médio, da África não receberam flores neste dia.

O dia da mulher é para quais mulheres, afinal? Desde o século XIX vemos as mulheres reivindicarem direitos. As libertárias, as anarquistas, as sufragistas, as mulheres negras, as marxistas, as campesinas deram passos importantes desde o alvorecer feminista. A marcha das mulheres é marcada pelas batalhas, vencidas ou perdidas, elas abriram caminhos.

Os feminismos contemporâneos necessitam viver a relação interseccional para dar voz e vez para as mulheres em suas diferentes etnias, gerações e orientações de gênero. Para reforçar o trabalho de criar novas pontes para além da normatização, é preciso descolonizar os corpos e as ações, já que as marcas das violências ainda refletem as heranças da sangrenta colonização e da cultura escravagista europeia e norte-americana. O conhecimento na perspectiva das mulheres que lutam pela libertação é um processo, uma jornada, um caminhar que ilumina novos horizontes não capturados, como diz a cineasta e escritora vietnamita Trinh T. Minh-Ha:

“O significado move-se com o caminhar e, como se diz frequentemente na Ásia, milagre é caminhar no chão, e não na água. Caminhar é uma experiência de indefinição e infinitude. A cada passo adiante, o mundo vem a nós. A cada passo adiante, uma flor brota sob nossos pés. […] Um cinza multicolorido cujo tempo resiste à captura e cujas cores desafiam toda formação em preto e branco. A cada passo, o mundo vem ao caminhante” [3].

Mulheres indígenas

Mulheres do Congo

Mulheres de Gaza

Mulheres negras do Brasil

Mulheres latino-americanas

Resistem e caminhando constroem pontes e novas perspectivas.

A jornada é longa, entre flores e serpentes, a andança torna-se aprendizado!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências: 

[1] Adania Shibli. Detalhe menor. Tradução de Safa Jubran. São Paulo: Todavia, 2021, p. 46.

[2] Shamsia Hassani. The Artist. Disponível em: https://www.shamsiahassani.net/. Acesso em: 17 mar. 2024.

[3] Trinh T. Minh-Ha. Milhas de estranheza. AREND, Silvia; RIAL, Carmen; PEDRO, Joana Maria. Diásporas, mobilidades e migrações. Florianópolis: Editora Mulheres, 2011, p.18-19.

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“Tudo bem ser lésbica, mas não precisa parecer homem!”

“Tudo bem ser lésbica, mas não precisa parecer homem!”

A saída do armário não acontece de forma abrupta, em um único momento. Muitas lésbicas passam a vida toda evitando assumir publicamente sua sexualidade graças ao preconceito que atravessou o tempo e as diferentes geografias. Em maior ou menor grau, ele incide sobre alguns corpos.

O termo “entendida” era comum nos anos 1980/1990. Era uma forma de falar em público sobre as preferencias de outras mulheres sem o temor da discriminação social. “Fulana é entendida!”, era uma frase comum entre amigas lésbicas. O uso da palavra “entendida” não tinha uma associação direta com o lesbianismo, por isso ajudava a manutenção de certo anonimato.

O medo da violência e da repulsa social levou toda uma geração a manter um silêncio sobre as suas preferências sexuais, sua forma de viver e de se relacionar, evitando, assim, problemas familiares, no trabalho e nas relações comuns do cotidiano. Por longo tempo, casais de mulheres viviam juntas como “amigas”. Era uma forma de evitar o conflito e garantir um mínimo de liberdade dentro de suas casas. A hipocrisia da família tradicional foi sendo desmascarada graças às críticas feministas, libertárias e, mais adiante, LGBT e queer. Por trás da ideia de “tradição”, há um “contrato sexual” que foi abordado por Carole Pateman [1]. O contrato sexual foi um dos pilares para a manutenção do patriarcado.

Em uma sociedade baseada na violência patriarcal, o lesbianismo representa uma afronta. A ausência de interesse pelos homens é uma pedra no coturno dos machistas de plantão. Daí advém o título desta reflexão: tudo bem ser lésbica, mas não precisa parecer homem! Somente em uma sociedade androcêntrica é possível um pensamento reducionista baseado na falsa crença que a não adoção dos códigos socialmente aceitos de feminilidade representam masculinidade.

O arrimo do androcentrismo é voltado para o movimento de contornar e retornar sempre para o mesmo lugar comum: o mundo soletrado no masculino. Assim é com a linguagem universal, com a ideia de competitividade, de pensamento e de forma de se vestir, para citar alguns exemplos. Embora as coisas estejam mudando, vemos uma turba de trogloditas clamando pelo retorno à barbárie, ao modelo da masculinidade tóxica, dominadora e doutrinária.

Neste movimento de grande retrocesso social, vemos ao redor do mundo o fantasma do fascismo assombrando. Ora, o fascismo é alimentado pela violência, pelo tradicionalismo, pela intolerância, pelo machismo, colonialismo, racismo, especismo, capacitismo e todas as formas de brutal exclusão social.

A lesbofobia significa o medo e a repulsa contra as lesbianas. As mulheres que se relacionam afetiva e/ou sexualmente com outras mulheres geralmente são etiquetadas de invertidas, de mulher-macho, fancha, machorra, butch, sapatão, ou, no pior caso, anuladas da vida pública. As lesbianas foram tornadas invisíveis na vida pública, nos livros de história, excluídas por meio da linguagem, excluídas por meio de ações. Reverter essa exclusão foi possível graças aos movimentos sociais, à divulgação e promoção de ações propositivas.  

Aos poucos vimos os insultos sociais serem ressignificados pelas lesbianas. Ser sapatão, lésbica, fancha, butch é uma forma de ser e estar no mundo. Mas, até que ponto o “mundo” respeita essas diferentes formas de ser e estar? Será que as distintas expressões da lesbianidade são aceitas da mesma forma? Quantas vezes ouvimos a frase: “Tudo bem ser lésbica, mas não precisa parecer homem”?

A violência incide sobre os corpos lesbianos em vários momentos e situações, dependendo de um conjunto de fatores ambientais. As diferentes formas de violência previstas na Lei Maria da Penha são: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Todas elas são, em algum momento, usadas para humilhar ou apagar a existência das mulheres que ousam viver apartadas dos homens.

Este foi o caso de Ana Carolina Campelo. Vítima de lesbocídio, Carol, como era carinhosamente conhecida, foi perseguida, torturada e assassinada em dezembro de 2023, em Maranhãozinho no Maranhão. Ela tinha 21 anos e havia se mudado para o local para viver com a sua namorada. Seu rosto foi desfigurado e seu corpo jogado em uma estrada como se fosse lixo. O caso comoveu os grupos lesbianos, que fizeram manifestações em várias regiões do Brasil.

Este, infelizmente, não é um caso isolado. O dossiê sobre lesbocídio no Brasil [2] é um documento fundamental para entendermos o atroz cenário nacional. As autoras iniciam a publicação diferenciando o feminicídio do lesbocídio. As especificidades do segundo levam a uma tipologia definida em lesbocídios declarados – como demonstração de virilidades ultrajadas, cometidos por parentes, por homens conhecidos sem vínculo afetivo-sexual ou consanguíneo, assassinos sem conexão com a vítima, suicídio ou crime de ódio coletivo, múltiplas opressões e tráfico de drogas – e o lesbocídio como expressão de desvalorização das lésbicas.

Os números são aterradores e nos levam a inferir que há uma política de extermínio camuflada de “casos isolados”. A violência machista no Brasil é um caso de patologia social. São mais de 10 estupros coletivos por dia no país. Ao ver os números, ficamos pensando: quantos homens a nossa volta participam ativamente ou como cumplices nesses crimes? O caso de Ana Carolina Campelo ainda está sendo investigado. Somente em 2024 houve a identificação de um possível assassino.

Para além da violação física e sexual, existe a violência psicológica, moral e patrimonial. Muitos casais de lésbicas são instigadas a providenciar a união estável para garantir que as suas famílias não se achem no direito de roubarem os bens em caso de óbito de uma delas. Tive o desprazer de acompanhar um caso em que o irmão mais velho queria saber com quem ficaria o imóvel do casal de lésbicas diante do leito de morte da sua irmã. Ele simplesmente ignorou o fato de as duas terem construído juntas o patrimônio durante mais de 20 anos de união. Com certeza, cientes da ganância de alguns familiares, elas já haviam providenciado a união estável e um testamento.

Como teria ficado a viúva caso não houvesse a documentação? Sabemos que a justiça, feita em sua maior parte por homens, os acoberta. Ao falar sobre o caso em um grupo de pessoas, um homem cis, esquerdo-macho, branco, hétero e privilegiado vomitou a seguinte frase: “Para vocês tudo é preconceito, preconceito seria se a família espancasse e jogasse na rua”. A frase diz muito sobre as crenças machistas. Muitos homens acreditam que violência é somente “espancamento”. Violação sexual, psicológica, moral e patrimonial são, para muitos homens, “coisa de feminista” querendo direitos iguais. A luta lesbiana é longa e cotidiana!

Nos anos 1970, o amor entre mulheres ficou conhecido como um ato político. O feminismo lesbiano, representado por nomes como Monique Wittig, Ti-Grace Atkinson e Adrienne Rich, pensou e propôs a desconstrução dos corpos naturais, ou seja, a ideia de que existe algo natural na heterossexualidade e, em consequência disso, de contranatural na lesbianidade. Ser lesbiana, para essas autoras, era opor-se à hierarquia sexual, que divide o mundo em masculino e feminino. Ser lesbiana era, então, uma política contra a divisão assimétrica dos gêneros [3].

Estima-se que a cada ano cresce o número de vítimas da violência lesbofóbica, transfóbica e homofóbica. São muitos exemplos de situações que vão do insulto verbal até violências físicas e assassinatos covardes. Cabe aos grupos e ativistas a árdua tarefa de pressionar para a consolidação de leis, exigindo justiça e criando as contranarrativas e imagens propositivas. Como disse no início desta reflexão, o preconceito incide em maior ou menor grau sobre alguns corpos. As mulheres desfem, como são nomeadas as lésbicas desfeminilizadas, são acusadas de “parecer homem”. A ideia de uma masculinidade hegemônica, natural e legítima é uma das bandeiras do machismo. É graças a essa crença que é possível imaginar que as lésbicas desejam “imitar os homens”.

Para Luce Irigaray, o corpo feminino apresenta uma sexualidade plural e é imprescindível inventarmos uma linguagem do nosso corpo para além das palavras criadas pelos homens e consolidadas nos saberes hegemônicos, sejam os biomédicos ou os psicossociais. Os encontros de mulheres marcam nos corpos novas conexões e linguagens para além das marcas impostas pelo patriarcado [4].

Uma lésbica desfem assume uma postura social contra-hegemônica. Ser sapatão, caminhoneira, fancha é motivo de orgulho para muitas lésbicas. A sexualidade calcada nos polos ativo-passivo é uma invenção baseada na visão masculinista. O corpo feminino é múltiplo! Combater a tirania machista é uma árdua tarefa que começa pela construção de modos de vida mais críticos e criativos para além dos tentáculos do patriarcado.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4403853/mod_resource/content/1/O%20Contrato%20Sexual%20-%20Carole%20Pateman.pdf. Acesso em: 19 fev. 2024.

[2] PERES, Milena Cristina Carneiro; SOARES, Suane Felippe; DIAS, Maria Clara. Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2018. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/fontes-e-pesquisas/wp-content/uploads/sites/3/2018/04/Dossi%C3%AA-sobre-lesboc%C3%ADdio-no-Brasil.pdf. Acesso em: 19 fev. 2024.

[3] LESSA, Patrícia. Chanacomchana e outras narrativas lesbianas em Pindorama. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021.

[4 ] IRIGARAY, Luce. Ce sexe qui n’em est pás un. Paris: Éditions de Minuit, 1977.

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Vamos mulherizar a ciência!

Vamos mulherizar a ciência!

A ciência brasileira ainda é feita em grande parte pelos homens, brancos e cis, mas o empenho de algumas pessoas e grupos de mulheres que dedicam tempo de suas vidas para mudar essa realidade está começando a produzir resultados. Exemplar nessa frente de batalha é o trabalho da pesquisadora Fanny Tabak, fundadora de um dos primeiros grupos da área: Núcleo de Estudos sobre a Mulher (NEM), no final de 1980, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Tabak é autora do livro O laboratório de Pandora: estudos sobre a ciência no feminino, em que radiografa a condição das mulheres que fazem ciência no Brasil e alerta para a situação de desigualdade no mundo acadêmico – que, segundo ela, só deixará de existir se forem tomadas medidas de incentivo à participação das mulheres na ciência, tal como criação de grupos de pesquisa, núcleos, disciplinas, cursos de pós-graduação, linhas de pesquisa etc. [1]

Londa Schiebinger afirma que de todas as áreas das ciências naturais a Biologia é a que mais sofreu impacto dos estudos feministas e de gênero. O debate é recente, tem pouco mais de quatro décadas, e as causas e consequências são objetos da investigação de filósofas/os, cientistas naturais e sociais. Ela pergunta: O feminismo mudou a ciência? Nessa obra ela afirma uma série de mudanças nos processos de investigação de diversas áreas da ciência. Tais mudanças em áreas como arqueologia, primatologia e reprodução parecem ser mais sensíveis às análises de gênero, mostrando, inclusive, erros metodológicos no processo investigativo, os quais, por sua vez, geram diferentes interpretações da realidade fenomênica e, tão logo, de nossa história natural. Erros que são apontados pelas pesquisadoras e demonstram um olhar atento para resultados que reafirmam a prerrogativa excludente.

Escreve a autora: “A ciência moderna é um produto de centenas de anos de exclusão das mulheres, o processo de trazer mulheres para a ciência exigiu, e vai continuar a exigir, profundas mudanças estruturais na cultura, métodos e conteúdo da ciência. Não se deve esperar que as mulheres alegremente tenham êxito num empreendimento que em suas origens foi estruturado para excluí-las” [2]. As análises de Londa demonstram que a luta é necessária e não deve ser circunscrita a uma única área. Ela aponta que as instituições de ensino superior e de fomento à pesquisa, ao omitirem o debate feminista, pretendem com isso descaracterizar a questão política e reduzi-la a uma “questão de mulher”.

A discussão é longa e ajuda a compreender o fato ocorrido no final de 2023, no Brasil. A professora universitária Maria Caramez Carlotto, da Universidade Federal do ABC, fez uma denúncia em suas redes sociais a respeito da discriminação de gênero em parecer do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) com relação ao seu pedido de bolsa produtividade. Após a sua denúncia, uma avalanche de outros casos vieram à tona.

Segundo a docente, o parecer emitido pelo CNPq negou o seu pedido, apesar de reconhecer a importância de sua carreira, alegando que ela não fez pós-doutorado no exterior, pois “provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas”. Diante do acontecimento, vale ressaltar duas questões: o requisito de local de realização do pós-doutorado não estava previsto no edital e as gestações da docente não são relevantes para a sua profissão e jamais poderiam servir para desmerecer seu trabalho acadêmico.

A professora Cibele Russo, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade Federal de São Paulo teve o pedido de bolsa negado. O parecer mencionou a maternidade como justificativa para a baixa produtividade na produção científica, alegando que o período pós-parto afetou suas publicações e o número de orientações no programa de pós-graduação.

Os pareceres revelam um sistema de avaliação que resulta em desencorajamento para que as mulheres que são pesquisadoras e mães persistam na carreira acadêmica. Com a polêmica, o debate fomentou outros questionamentos: quais são os critérios para participar da seleção? Podem as agências de fomento utilizar dados da licença-maternidade? Quantas mulheres perderam suas bolsas de produtividade no período da pandemia por terem acumulado trabalho doméstico e ajuda na educação de suas crianças e jovens? Os resultados desse processo revelaram o machismo, a misoginia e o sexismo de uma sociedade pautada em valores coloniais e patriarcais.

Vários grupos de pesquisa e instituições estão fazendo forte pressão para que o governo federal adote medidas que garantam um processo justo e coerente. Como resposta, o CNPq emitiu uma nota no dia 06/01/2024 na qual admite “equívoco na avaliação”. Ao utilizar a gravidez e a maternidade como critério de exclusão, a agência fere os preceitos de representatividade e inclusão defendidos em suas proposições. A nota emitida não atende as demandas dos grupos que consideram que o processo de seleção deveria ser cancelado e refeito sob novas bases, com critérios mais justos e equânimes.

A divisão sexual do trabalho é uma das estratégias coloniais e patriarcais para a manutenção das desigualdades sociais. Alguns grupos irão participar da produção e outros da reprodução. Ela não é igual ao redor do mundo, portanto está intimamente afetada por questões étnicas, de classe social e de gênero. Patrícia Karina Vergara Sánchez escreve: “Teorizar é algo que não está ao alcance de qualquer mulher que não necessariamente entenda ou escreva as linguagens acadêmicas, que talvez não se utilize dos formatos impostos para escrever (…). Essa situação é muito conveniente para manter o mundo tal qual existe hoje!” [3]. Manter as mulheres circunscritas ao ambiente doméstico é uma estratégia política colonial/patriarcal. Enquanto isso, as mulheres pesquisadoras e cientistas seguem na luta.

Vamos aguardar os desdobramentos do caso da discriminação de gênero na distribuição de bolsas de pesquisa no Brasil. Não vamos aguardar paradas, o mais importante é a tomada de medidas para barrar este tipo de avaliação imparcial e, sobretudo, exigir que um número maior de mulheres, de pessoas negras, indígenas e LGBT participem destas avaliações e possam construir novas bases para uma educação que contemple as diferenças.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

 Referências

[1] TABAK, Fanny. O laboratório de Pandora: estudos sobre a ciência no feminino. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

[2] SCHIEBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência? Bauru: Edusc, 2001. p. 37.

[3] SÁNCHEZ, Patrícia Karina Vergara. Siwapajti: medicina de mulher. Memória e teoria de mulheres. Belo horizonte: Editora Luas, 2022. p. 20.

[4] Na imagem, a primeira pessoa programadora de computadores do mundo: Augusta Ada Byron King, conhecida como Ada Lovelace.

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Solta a voz, garota!

Solta a voz, garota!

O Dia Internacional das Meninas, 11 de outubro, foi criado pela Organização das Nações Unidas em 2012. A data é pouco conhecida e sua gênese colabora na reflexão acerca da educação de milhares de meninas ao redor do mundo. O que nos faz pensar sobre as oportunidades e os pilares que estamos construindo para o futuro delas.

Sabemos que no Sul Global crianças e jovens sofrem maior vulnerabilidade social. Dentre os agravos sociais estão: a falta de acesso aos estudos, a exploração do trabalho infantil, a violência doméstica, a pedofilia, a saúde precarizada, a vulnerabilidade territorial, a insegurança alimentar, dentre outros fatores. Segundo o Instituto Patrícia Galvão, o “estupro de vulnerável: crianças e adolescentes de até 13 anos são mais da metade das vítimas de violência sexual (57,9%)” [1]. O Brasil ocupa o 2º lugar no ranking de exploração sexual infantil, segundo a ChildFund Brasil.

Para uma análise do contexto brasileiro, é importante interseccionalizar as desigualdades de gênero, etnia/raça e classe. Segundo o Atlas da Violência produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: “Em 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Em termos relativos, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 2,5, a mesma taxa para as mulheres negras foi de 4,1. Isso quer dizer que o risco relativo de uma mulher negra ser vítima de homicídio é 1,7 vezes maior do que o de uma mulher não negra, ou seja, para cada mulher não negra morta, morrem 1,7 mulheres negras” [2]. Portanto, as mulheres e as meninas não brancas são mais vulneráveis ainda.

Muitas meninas do Sul Global são diretamente afetadas pelos horrores da pobreza extrema, das guerras, do trabalho infantil, da exploração sexual, da fome, da violência em suas inúmeras manifestações. Segundo o levantamento da UNESCO, em 2016, cerca de 16 milhões de meninas entre 6 e 11 anos nunca irão à escola [3]. Os dados são alarmantes e merecem um olhar cuidadoso.

Em face dos problemas que atormentam as jovens ao redor do globo, vemos um movimento nunca antes percebido ao longo da história. Para Philippe Ariès, em seu estudo sobre a representação da criança na iconografia medieval, o sentimento de infância, aqui entendido como a consciência de sua particularidade, estaria ausente na maioria das representações da criança, na medida em que nelas se retratava um ser com feições de adulto num corpo com pequenas proporções, uma miniatura de adulto. Para ele, “é difícil crer que esta ausência se devesse a incompetência ou a falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo” [4].

De uma ausência da infância na história vemos emergir, na atualidade, movimentos de grande alcance social idealizados por crianças e jovens. Nunca houve nada parecido na história. As crianças estão lutando para salvar o mundo que os adultos destroem continuamente. Muito ainda será estudado sobre esse fenômeno contemporâneo. Para tal propósito, é preciso entender o que as move, por exemplo, nesta declaração: “Como nossos líderes comportam-se como crianças, nós teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo atrás”, afirmou a sueca Greta Thunberg durante a Cúpula do Clima, realizada na Polônia em dezembro de 2018.

Enquanto os adultos se comportam de forma infantilizada e colocam em risco o futuro da humanidade, as crianças tomam a frente dos dilemas que atormentam o mundo. Para pensar nessa perspectiva, selecionei alguns nomes de meninas para conhecermos as suas bandeiras de luta. O nome de Greta Thunberg já ecoou por todos recantos e motiva afetos e desafetos, sobre ela existem vários livros traduzidos em muitos países. E em 2023 ela publicou sua primeira obra: The climate book. Com certeza muitas outras virão, aguardamos a tradução para o português.

Como ela, outras meninas fazem movimentos importantes para abordar temas urgentes. Você já ouviu falar na Ellyanne Wanjiku, Autumn Peltier, Txai Suruí, Malala Yousafzai ou Ahed Tamimi? Pois bem, são meninas que estão fazendo história e já são ativistas reconhecidas mundialmente.

O livro Trois filles debout: Greta, Ellyanne, Autumn, engagées pour le climat, escrito por Séverine Vidal e ilustrado por Anne-Olivia Messana, aborda a história do engajamento das jovens ativistas em prol da questão climática. Elas vivem em diferentes continentes, lutam contra o desmatamento, abordam alguns temas como as mudanças climáticas, o agronegócio, o envenenamento da terra, o veganismo, a ecologia, dentre outros. Todas são reconhecidas por suas ações e discursos bem fundamentados [5].

Ellyanne Wanjiku nasceu em 2011 na República do Quênia, na África Oriental, é vencedora do prêmio Eco Warrior. Em 2018, ela foi nomeada a Mashujaa mais jovem do Quênia, título dado para pessoas que desenvolvem projetos que ajudam a população. É a embaixadora mais jovem das mudanças climáticas do Quênia. Aos 4 anos, na escola, fizeram um projeto sobre heróis/heroínas. A lista incluía Martin Luther King, Henry Wanyoike, Uhuru Kenyatta, Florence Nightingale, Barack Obama, Wangari Maathai, Nelson Mandela e Mahatma Gandhi. Inspirada neste trabalho, ela começou a estudar e trabalhar para reflorestar. Wangari Maathai, educadora e ativista política do meio ambiente do Quênia, tornou-se uma referência para a menina que decidiu seguir os seus passos. Foi assim que, aos dez anos, Ellyanne se tornou a força motriz para a plantação de milhares de árvores em seu país.

Ela participou da COP28 e, em junho de 2023, ministrou palestra junto com Licypriya Devi Kangujam – ativista da Índia, com 12 anos de idade – e Chloe Ochalik – de 11 anos, nascida em Fiji, hoje vive na Polônia. As três meninas ministraram conferência em evento online internacional sobre a questão ecológica. Em um contexto onde muitos adultos fogem dos estudos e usam as redes sociais para falar todo tipo de absurdo, é inusitado ver meninas criando propostas, estudando e discursando em eventos internacionais sobre o que devemos fazer pelo nosso planeta para “adiar o fim do mundo”, como diz Ailton Krenak.

Autumn Peltier é uma indígena Anishinaabe que nasceu em 2004 no Canadá. Ela é a protetora chefe da Água da Nação Anishnabek, é conhecida como a guerreira da água.  Aos 13 anos ela discursou na Assembleia Geral da ONU, recebeu a Medalha Soberana de Voluntariado Excepcional do Governador-Geral do Canadá e do Vice-Governador de Ontário. Ela foi palestrante de destaque no Fórum Econômico Mundial, foi selecionada quatro vezes para o Prêmio Internacional da Paz para Crianças e, em 2021, foi incluída na lista das 50 maiores personalidades canadenses da Macleans Canada’s Magazine. Em 2022, Peltier foi homenageada com Honoris Causa da Royal Roads University, recebeu o prêmio Daniel Hill da Comissão de Direitos Humanos de Ontário e o prêmio de líder canadense emergente do Fórum de Políticas Públicas. Em 2023 foi lançado na HBO Canadá o documentário The Water Walker, sobre a jovem indígena.

Outra indígena com reconhecimento internacional é Txai Suruí, nascida em Rondônia, em 1997. Ela é uma conhecida ativista brasileira da etnia suruí, é feminista, participante ativa do Movimento da Juventude Indígena e integrante do Kanindé, movimento em defesa dos direitos indígenas. Foi a primeira indígena a discursar na abertura de uma Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas, COP26, em 2021.

Ela é poliglota, e foi na “escola de brancos” que ela descobriu o que significa racismo. Sempre foi uma aluna de destaque, o que a levou a entrar na faculdade antes mesmo de terminar o ensino médio. Foi aprovada no Enem na Universidade Federal de Rondônia para cursar Direito e teve que entrar com um mandado de segurança para que a aceitassem. Ela cursou o último ano do ensino médio e o primeiro de faculdade juntos, onde seguiu enfrentando a rotina do preconceito e do bullying. Foi a única indígena de sua turma. Ela é conselheira do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia, da World Wildlife Fund (WWF) e do Pacto Global da ONU, além de voluntária da ONG Engajamundo. Txai Suruí é exemplo para outras meninas indígenas.

A dificuldade de acesso à educação é uma questão que remete ao sexismo, ao racismo e ao classismo. Uma das barreiras é a falta de acesso a escolas e falta de apoio do Estado. Há casos mais graves nos quais o Estado proíbe as meninas de estudar, foi o que ocorreu com Malala Yousafzai – nasceu no Paquistão em 1997 e mora na Inglaterra.  Aos 13 anos, ela alcançou notoriedade ao escrever para um blog explicando sua vida sob o regime do Tehrik-i-Taliban Pakistan (talibã paquistanês). O regime fechou escolas públicas e proibiu a educação de meninas entre 2003 e 2009.

Em 9 de outubro de 2012, ela foi atacada por um miliciano talibã, foi alvejada na cabeça e passou por várias cirurgias. Assim como ela, outras meninas também foram baleadas quando saíam da escola. Ao redor do colégio onde as meninas estudavam, uma multidão foi protestar. O caso ganhou repercussão mundial. Malala ficou quase um ano internada e recebeu apoio de figuras ilustres como Susan Rice, Desmond Tutu, Barack Obama, Madonna dentre muito outros nomes. Em 12 de julho de 2013, Malala comemorou seu aniversário de 16 anos discursando na Assembleia da Juventude na ONU em Nova Iorque. Ela falou sobre o direito das meninas aos estudos. Desde então, ela tornou-se um símbolo global na luta pelo direito das meninas aos bancos escolares. Em 2014, ela tornou-se a pessoa mais jovem a ter ganhado o Prêmio Nobel da Paz.

E por fim, não podemos esquecer de Ahed Tamimi, que luta desde a infância pela libertação da palestina. Ela nasceu na Cisjordânia em 2001. Ficou mundialmente conhecida em 2012, aos 11 anos de idade, quando foi filmada resistindo à prisão de sua mãe. Em 2017, esteve nas manifestações contrárias à decisão dos Estados Unidos de reconhecerem Jerusalém como capital de Israel. Foi pressa em 2018 e no dia 6 de novembro de 2023. A notícia de sua prisão chegou em meio ao novo massacre perpetrado por Israel, que alega estar em guerra contra o Hamas, mas mata civis e explode crianças e bebês. O Hamas é uma milícia de resistência palestina fundada nos anos 1980. A invasão de terras, a tortura, o trabalho escravo, a expulsão e o extermínio do povo palestino começaram em 1948 [6]. Vale lembrar que violência gera violência, portanto não é possível imaginar um povo sendo exterminado de forma pacífica. Como dizia Mahatma Gandhi, “olho por olho” e um dia toda humanidade estará cega.

Sabemos que o exército e a polícia de Israel são extremistas, violentos e uma das forças armadas mais cruéis da história. Lamentavelmente, o povo judeu sofreu as consequências do nazismo na Alemanha, agora os sionistas reproduzem a violência e o genocídio de um povo. O holocausto palestino é um projeto colonizador sionista dos Estados Unidos e da Europa para exterminar um povo e “recompensar” os judeus, que foram algumas das vítimas do nazismo. Ironicamente, hoje os sionistas são nomeados nazisionistas, e o extermínio de palestinos já é bem maior que o de judeus promovido por Hitler.

O mundo está indo às ruas pelo povo palestino. A jovem Ahed Tamimi foi uma das reféns liberadas durante o período de trégua para troca de prisioneiros políticos. Muito foram os relatos de tortura e crueldade dentro das prisões israelenses. Hoje as pessoas do mundo todo estão acordando e lutando contra o sangrento colonialismo perpetrado contra os palestinos por Israel, com apoio e financiamento de armas dos EUA e da Europa. Assim como os povos indígenas da América Latina e o povo negro da África, a Ásia e o Oriente Médio são sempre os alvos dos imperialistas no Norte Global que, para saquear terras e recursos naturais, perpetua a barbárie durante séculos.   

Ao ler e saber sobre as meninas ativistas, podemos arrancar um sopro de esperança para o futuro. Esperamos que os meninos sejam ensinados e aprendam a gostar mais dos livros e dos estudos do que das armas e da violência. No início do século XX, anarquistas pacifistas usavam o termo “bala de canhão” para os homens que se alistavam nos exércitos para matar quem eles não conheciam e morrer em nome dos imperialistas, que nunca vão para a guerra. Quem sabe deixando de sonharem em tornar-se uma “bala de canhão” e se empenhando nos estudos, os meninos poderão se engajarem em alguma causa coletiva e, lado a lado com as meninas, construírem um futuro melhor para as próximas gerações.  

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] VIOLÊNCIA CONTRA as mulheres em dados: plataforma reúne pesquisas, fontes e sínteses sobre o problema no Brasil. Agência Patrícia Galvão. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/sobre-esta-plataforma/. Acesso em: nov. 2023.

[2] CERQUEIRA, Daniel. Atlas da violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. p. 38.

[3] TOKARNIA, Mariana. Unesco: quase 16 milhões de meninas de 6 a 11 anos no mundo nunca irão à escola. Agência Brasil, 3 mar. 2016. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-03/quase-16-milhoes-de-meninas-entre-6-e-11-anos-nunca-irao-escola-diz-unesco. Acesso em: nov. 2023.

[4] ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 54.

[5] VIDAL, Séverine. Trois filles debout: Greta, Ellayanee, Autumn, engagées pour le clima. Anne-Olivia Messana (ilustradora). Paris: Jungle, 2022.

[6] SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

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Nem toda feiticeira é corcunda

Nem toda feiticeira é corcunda

Texto dedicado à minha avó materna, Conceição Nunes Lessa, benzedeira.

 

Na letra da música Pagu, de Rita Lee, as feiticeiras não obedecem aos clichês de corcundas ou feias. Estão por toda parte. Fazem da sua história um grito de alerta. A roqueira escreve:

“Mexo, remexo na inquisição

Só quem já morreu na fogueira

Sabe o que é ser carvão”

(Rita Lee – 2004).

A história das bruxas merece ser recontada para que não se apague da memória coletiva a apropriação dos conhecimentos tradicionais das mulheres realizada para facilitar a aceitação da medicina como ciência da cura.

As mulheres reconhecidas como bruxas eram membros fundamentais da comunidade campesina na Europa medieval. Elas eram as médicas, as conselheiras, as parteiras, as guardiãs da vida e da morte. Além disso, as mulheres foram pioneiras nos estudos e nas práticas de cultivo e manejo de plantas medicinais. Não somente na Europa, mas ao redor do mundo. Elas eram médicas sem diploma, passavam seus conhecimentos de geração em geração de forma oral. Bruxas, feiticeiras, parteiras, rezadeiras, curandeiras, erveiras, eram, portanto, mulheres sábias que ajudavam a comunidade e aconselhavam na tomada de decisões. 

O período caracterizado pela caça às bruxas foi amparado por justificativas inventadas pelo clero europeu. O mais famoso documento criado para fundamentar a perseguição às mulheres foi o Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum), primeiro manual inquisitorial endossado pelo papa, publicado em 1486. O livro defendia que a feitiçaria era resultado direto de um pacto com o demônio, que a mulher era sexualmente insaciável e, portanto, vulnerável às tentações do diabo. Foi uma invenção da igreja para facilitar a aceitação dos homens como terapeuta, pois, “durante a caça às bruxas, a igreja legitimou a profissão dos médicos, já recomendada pelo Martelo das Feiticeiras, que declarava: “uma mulher que tenha a ousadia de curar sem haver estudado é uma bruxa e deve morrer” (Telles, p. 45).

A repressão, perseguição e extermínio de mulheres acusadas de estarem “endemoniadas” foi uma disputa pelo monopólio político e econômico. Os algozes visavam uma institucionalização da teoria e da prática medicinal. Para alcançarem o seu objetivo, fizeram uma campanha de terror contra as mulheres. O Martelo das Feiticeiras oferecia instruções detalhadas para o uso da tortura com a finalidade de arrancar confissões e denúncias de novas acusadas de pacto com o diabo.

A apropriação dos saberes e das práticas de curandeirismo das mulheres se deu à custa de muita violência e terror. A medicina nasceu do sangue derramado das mulheres. As feiticeiras já utilizavam, muito antes da medicina e da farmacologia, os analgésicos, digestivos e tranquilizantes. Usavam a beladona, entre outras funções, para inibir as contrações uterinas quando havia risco de aborto espontâneo. Existem indícios de que a digitalina (extraída da Digitalis purpúrea), fármaco usado para tratamento de doenças cardíacas, foi descoberto por uma bruxa inglesa. Apesar dos registros históricos, os livros de medicina inventam nomes de homens que supostamente teriam “descoberto” a planta séculos depois de seus usos pelas bruxas. Muitos registros mostram o uso das plantas durante os trabalhos de cura: “A beladona cura a dança fazendo dançar” (Michelet, p. 107).

As benzedeiras e rezadeiras foram perseguidas com aval do Estado e, para elas, muitas dedicatórias são feitas hoje por mulheres, como o poema de Keyane Dias:

 

Benza

Por Keyane Dias

 A bença da velha, eu peço,
Pra bem ficar protegida.
Em mão rugosa, confio
A benza da fé acolhida.

Com ramo tira quebranto,
Mistério pouco revelado.
Ave Cruz, canto em credo!
Sara do mau olhado.

Socorro de mulher prenha,
Aconchego para criança.
Ajuda com erva santa
Corpo fraco que se cansa.

É dom, fonte ancestral,
Quem recebe esse saber.
E se tiver pouca fé,
Nem adianta se benzer.

Elas resistem na cidade
E nas matas do interior.
Senhoras de valentia,
Guerreiras do bom senhor.

Trabalho de caridade,
Auxílio pra alma sofrida.
Com jejum e bom respiro
Apruma espinhela caída.

Sincretismo de benfeitura,
Catolicismo popular.
No terreiro, na pajelança,
Baixinho a sussurrar:

“Quem pra ti olhô
Com os olho malvado
Eu vou jogar nas onda
Do mar sagrado.”

Tal qual essas senhoras,
Tem os velho rezador.
Trabalham com a mesma fé,
Com a força do mesmo amor.

Salve Deusa!, essas mão santa.
A cura do benzimento!
Escudo da santa cruz.
A graça que traz alento.

(Poesia dedicada à Dona Pedralina, benzedeira de Ribeirão da Areia – MG.)

As bruxas verdes estão redescobrindo o valor das plantas e seus usos nas infusões, nos chás medicinais, nos banhos de ervas e noutras práticas. Suas práticas, somadas aos benzimentos e banimentos, estão sendo recuperadas por mulheres e grupos de mulheres empenhadas no resgate de uma história secular. Vale lembrar o registro de Jules Michelet: “O obstáculo não é o rancor. Os mortos estão mortos. Os milhões de vítimas – albigenses, valdenses, protestantes, mouros, judeus, índios da América – dormem em paz. O mártir universal da Idade Média, a feiticeira, nada diz. A cinza está ao vento” (p. 274). Bruxas, feiticeiras, benzedeiras, curandeiras, erveiras, mulheres da terra, parteiras, rezadeiras estão entre nós para reconstruir a história e registrar novas formas de ver, sentir e agir em meio à natureza. 

 

Sugestões de leitura:

EHRENREICH, Barbara; ENGLISH, Deirdre. Bruxas, parteiras e enfermeiras: uma história das curandeiras.

ILHEO, Mariana de Carvalho. Tradição e prática: um estudo etnográfico do benzimento em Campestre (MG). Campinas: Setor de publicações, 2027.

MILHELET, Jules. A Feiticeira: 500 anos de transformações na figura da mulher. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

TELLES, Norma. Ronda das feiticeiras. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Quinta-feira, 12 de outubro de 2023 – Lua nova

Quinta-feira, 12 de outubro de 2023 – Lua nova

Tenho há dias, meses (a vida inteira, talvez?), revisitado lugares profundos em mim, que têm a ver com um passado longínquo, e feito muitas perguntas… quem fui, quem sou agora, o que desejo, quando e como e por que surgiu algo transformador em mim… tantos lugares, tantas transformações… e um desses lugares são os livros, que por si só não são transformadores, transformam porque acontece o encontro, porque toca (ou não) quem lê.

Eu despertei interesse pela leitura, que eu me lembre, na adolescência, mas muito espaçadamente – lia os títulos obrigatórios da escola, alguma indicação ou influência de irmãs (minha irmã mais velha lia muito Paulo Coelho, cheguei a ler alguns), do meu avô, de professor(a), colega, amiga(o), enfim. Dessas leituras, nada que me fizesse parar tudo e ler avidamente ou querer mais. Isso só foi acontecer, apaixonadamente, quando, por causa de um vestibular seriado, tive de ler cinco obras de autoras brasileiras: Clarice Lispector, Nélida Piñon, Cecília Meireles, Cora Coralina e Hilda Hilst. (explosão) como escreveria a Clarice em alguns de seus maravilhosos livros…

Minha vida mudou completamente a partir do primeiro livro dessa leva que li: Um sopro de vida – pulsações, da magnífica Clarice. Como esse livro me fez eu me comunicar tão profundamente comigo… me instigava, me inspirava, me deixava estarrecida, sensação de que nada mais importava: “… depois de ter você, pra que querer saber que horas são?” rsrs.

Aí eu quis ler tudo dela e sobre ela, passei a frequentar assiduamente a biblioteca municipal e da escola (pública, estadual). Romances, contos, crônicas, cartas, biografias… e a partir daí fui adentrando o universo da Clarice e o meu, fascinada. Então a vida não era só dar conta das obrigações, existia um universo diverso, confuso, bizarro, incrível, sensível e horrendo dentro de mim e daqueles livros. Então veio Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Fernando Pessoa, Nietzsche… e os livros passaram a ser espelhos, mas não só. Porque havia revelações. Havia tanta humanidade, e isso me humanizava, me fazia sentir, e eu me tornava alegria pura ou tristeza profunda ou empolgação ou melancolia, me afetava como nenhuma outra coisa.

Foi daí que nasceu minha vontade de ocupar completamente minha vida com a literatura, os livros, a palavra escrita. Quis ser escritora – escrevia poemas e alguns contos, jogava muita coisa fora, guardava outras –, mas rapidamente achei que não era capaz, por pura comparação e baixa autoestima e imaturidade, claro; vislumbrei um dia ter um sebo, pensava que poderia viver a vida inteira em um, independente de onde moraria – também tinha um sonho de sair do interior de Minas, mas, na época, não via possibilidade de isso acontecer. Ser editora mesmo, não cheguei a pensar nisso naquela época, mas decidi fazer o curso de Letras, para estudar literatura.

Fui desejar abrir uma editora na graduação – momento propício para expandir os universos… lembro carinhosamente de, lá em Viçosa na UFV (2008 a 2010), falar, com convicção, com uma colega de graduação e amiga poeta, que sempre me mostrava seus fortes e excelentes poemas, que, quando tivesse minha editora, publicaria o livro dela. Quem diria que 10 anos depois estaria mesmo abrindo minha editora…

 

Eu não poderia estar fazendo outra coisa. Como é incrível ter essa certeza.

E assustador também.

 

As palavras me conectam com meu mundo interno. Eu que, facilmente, me distraio de mim… Os livros, mas não por si só me conectam com tantos mundos possíveis da nossa humanidade. Existe beleza e horror nisso. Um imenso paradoxo.

(Parece que a lua está em escorpião… talvez por isso estou assim hoje, vasculhando mais que os outros dias. E expressar, colocar em palavras, é uma necessidade que me acompanha desde que me entendo por gente. Quero entender, entender e comunicar, sempre.)

Isso sou eu. E tantas outras coisas também.

Meu mundo interno e o mundo externo mudam através dos livros. Eles me conectam também com o outro, com as pessoas. Eu me sinto em conexão profunda, empatia radical, amor incondicional – espiritualidade, talvez, seria o nome. 

Ser editora é mais que um ofício. Eu não poderia fazer qualquer coisa que não fosse movida pela paixão. Eu sou uma pessoa apaixonada. Apaixonadíssima. Falo isso hoje de um outro lugar – já fui muito criticada por isso, o que me fazia me ver equivocadamente mal, com os olhos dos outros, e sufocar a mim mesma (com redundância mesmo, reforçando a gravidade rs).

Ser uma pessoa movida pela paixão faz com que o meu tempo seja muito peculiar. Às vezes demoro para começar a ler um(uma) autor(a), livro, artista, músicas que muita gente indica. Tem que me tocar profundamente num lugar muito meu – e cada um tem esse lugar, claro. Talvez o meu seja o lugar que faz com que eu me conecte comigo mesma, porque esse é meu maior desafio. (Isso está no meu mapa astral também, com um Nodo norte em áries.) Tenho uma tendência de colocar o outro em primeiro lugar, de me sentir através do outro… Com o tempo, fui descobrindo o quanto isso me deixa vulnerável e contra mim mesma. Tenho descoberto, na verdade.  O tempo é mesmo nosso melhor amigo…

Trabalhar com livro me conecta comigo, e estar com mulheres me transforma o tempo inteiro. E isso é fascinante. Eu não poderia ter feito algo que não fosse fundar uma editora que publica exclusivamente livros escritos por mulheres e que são feitos por nossas mãos.

(Penso criticamente na questão do binarismo, se não estaria reforçando… mas me tranquilizo por saber que a desconstrução desse sistema vem das feministas, e estamos lidando com isso. Tudo em transformação, sempre.)

Sou muito grata a parte de mim que seguiu o imperioso desejo de estar no mundo dos livros e ser feminista e trilhar meu caminho sob essa base.

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   Cecília Castro – Fundadora e diretora editorial da Editora Luas. Nasceu no norte de Minas, é feminista, ativista, apaixonada por livros, poesia e literatura.

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Vozes das poetas mortas

Vozes das poetas mortas

O início do mês de outubro de 2023 foi marcado pelo derramamento de sangue inocente no Oriente Médio. A Palestina, desde o inicio do século XX, sofre um brutal processo colonizador de apartheid social e de expropriação de seu território. O mundo árabe pós-otomano foi fragmentado pela Inglaterra e França e contou com o apoio das elites monárquicas locais. Foi um período de revolta nos países do Oriente Médio, sobretudo contra o imperialismo franco-britânico e em combate à colonização sionista da Palestina.

O Mandato Britânico da Palestina operou entre 1920 a 1948 com vistas à pilhagem e subtração de territórios e de seus povos, reconfigurando o mapa geopolítico. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, houve um esforço das Nações Unidas e das organizações sionistas para a criação de um Estado judeu. A justificativa seria uma forma de reparação do Holocausto. A Revolução Árabe (1936-1939) foi um marco na resistência e levou a uma longa greve anticolonial, foram seis meses de greve nacional árabe em 1936. Entre 1947 e 1948, aconteceu a Guerra Civil e a Guerra árabe-israelense que culminam na criação do Estado de Israel em 14 de maio de 1948 [1].

Para além da luta armada, existe uma guerra de narrativas que demoniza o povo palestino para gerar uma comoção pública e fomentar o ódio ao povo árabe. Por isso, acho importante documentar visualmente a expropriação de terras que vem ocorrendo desde a criação do Mandato Britânico.

Os 75 anos de apartheid e genocídio do povo palestino são percebidos como um holocausto, e as ações militares de Israel, com apoio dos Estados Unidos, estão sendo nomeadas de nazisionistas. Sabemos que o Oriente Médio, assim como a América Latina e a África, vivemos sob o jugo da política armamentista norte-americana. A diáspora palestina, iniciada nas guerras de 1948 e 1967, causou um enorme deslocamento de pessoas. A Faixa de Gaza é, atualmente, considerada a maior prisão a céu aberto da história mundial. O Hamas não representa a voz e o desejo de todo um povo. O Hamas nasceu da fúria contra quase um século de destruição, tortura, estupros e morte de toda uma população.

Sabemos que os EUA desempenham um papel decisivo nas guerras. Em 2007, das 27 maiores guerras, 20 delas foram financiadas pelos norte-americanos, garantindo, com isso, um lucro de mais de 30 bilhões de dólares com a venda de armas [2]. Em 2022, o valor passou dos 200 bilhões, segundo a Money Times. Decorre daí o interesse do “tio Sam” em manter sob o seu jugo o Sul Global e estar alinhado às grandes potências imperialistas. 

 Neste ano, ao final de outubro, dois casos envolvendo escritoras palestinas chamaram a atenção da imprensa transnacional. Uma delas assassinada brutalmente pelo exército israelense-estadunidense durante um dos bombardeios contra civis na Faixa de Gaza. A outra, morta simbolicamente pelos alemães organizadores da 75ª edição da Feira do Livro de Frankfurt. O terror vivenciado no Oriente Médio e a culpabilização do povo palestino pela mídia hegemônica reforçam a tese de um esforço imperialista para proteger os crimes de guerra perpetrados por Israel-EUA contra o povo palestino. A feira do livro, ironicamente, tem a mesma idade do apartheid e do genocídio palestino, sua atitude mostrou sua face imperialista, racista, machista e ultraviolenta.

No dia 20 de outubro de 2023, o Ministério da Cultura palestino anunciou que a poeta Heba Abu Nada foi uma das vítimas dos bombardeios em Khan Yunis, na Faixa de Gaza. Seu primeiro romance Oxygen is not for the dead (2017) rendeu-lhe o segundo lugar no Prêmio Sharjah de Criatividade Árabe. Ela nasceu em Meca, em 1991, estudou bioquímica na Universidade Islâmica de Gaza e concluiu um curso de mestrado em nutrição clínica. O assassinato da jovem poeta causou uma comoção no mundo das letras, das artes, da cultura ou mesmo entre pessoas com um mínimo de empatia. Nas redes sociais, estamos compartilhando um de seus recentes poemas:

“A noite a cidade é escura,

exceto pelo brilho dos mísseis.

Silenciosa,

exceto pelo som dos bombardeios.

Aterradora,

exceto pela promessa lenitiva da oração.

Tenebrosa,

exceto pela luz dos mártires.

Boa noite!”

As cidades na Faixa de Gaza são escuras, os déspotas cortaram água, luz, fornecimento de alimentos e remédios. É silenciosa. O povo palestino vive em uma prisão a céu aberto há quase um século – nada podem falar ou fazer, o inimigo não dorme. É aterradora, pois, ao viver sob as botas de um tirano e saber do pacto de silêncio internacional, resta-lhes acreditar na justiça divina. Hoje, Heba Abu Nada é mais um nome na história dos mártires de seu povo.

Poeta e novelista palestina, assassinada por um bombardeio sionista, tinha 32 anos e uma vida repleta de poesia pela frente. Assim como o seu povo, ela queria a libertação. Deixou-nos um poema que foi recitado por ela e postado no YouTube durante uma entrevista. É um poema sobre a solidão da/na Palestina. Foi traduzido para o espanhol e está gravado no Twitter de Dani Mayakovski [3]:

Oh, solitarios, todos ganaron sus guerras y tú te quedaste solo, desnudo.

Ninguna poesía, oh Darwish [4], restaurará lo que los solitarios han perdido.

Oh, solitarios, ésta es otra era de ignorancia.

Maldito el que usó la guerra para separarnos y estar juntos en tu funeral.

Oh, solitarios, la tierra es un mercado libre y tu gran país es una subasta aprobada.

Oh, solitarios, nadie nos apoyará, en esta era de ignorancia.

Así que borrad vuestros viejos y nuevos poemas y el llanto.

Oh país, sé flerte.

O sentimento de solidão transformado em poesia pode nos oferecer pistas para entender o isolamento e o apartamento que seu povo vive desde o início do século XX. Diz ela: “Ninguém nos apoiará, nesta era de ignorância”. Em sua página de Twitter é possível ver algumas das imagens que ela compartilhou nos últimos anos e ver a divulgação de seu livro [5]. Trata-se de um arquivo virtual da jovem poeta morta, nestes dias de campanha de genocídio, pela ira militar de Israel-EUA.

A outra poeta que quero trazer à luz desta reflexão é Adania Shibli. Ela nasceu na Palestina em 1974. É PhD pela University of East London na área de Mídia e Estudos Culturais. Estudou, também, em Berlin. Trabalhou na Universidade de Birzeit, na Palestina. É autora do romance Minor detail, escrito originalmente em árabe, publicado em alemão em 2022. A tradução para o inglês rendeu-lhe a indicação aos prêmios National Book Award, em 2020, e Booker Internacional Prize, em 2021.

No dia 20 de outubro de 2023, mesmo dia do assassinato da poeta Heba, Adania Shibli receberia o LIBeraturpreis, prêmio concedido a escritoras do Sul Global por obra publicada em alemão. A cerimônia de premiação que iria homenagear a escritora ocorreria na Feira do Livro de Frankfurt. A homenagem foi cancelada sob o argumento da guerra em Israel, informou a LitProm, associação literária alemã que organiza o prêmio.

O livro foi traduzido para o Brasil pela Editora Todavia. Trata-se de uma obra que aborda a história de uma menina beduína palestina. O cenário é o deserto de Neguev. No verão de 1949, um ano depois do êxodo de Nakba que forçou o deslocamento de mais de 700 mil árabes para promover o Estado sionista de Israel, soldados israelenses atacaram um grupo de beduínos no deserto. A menina foi a única sobrevivente, todo aquele povo foi dizimado. Ela foi sequestrada, torturada e estuprada.

No mesmo dia, 20 de outubro de 2023, as duas poetas são mortas. Uma fisicamente pelos bombardeios do exército de Israel-EUA contra civis. A outra, simbolicamente, por contar a história de seu povo, que há quase um século sofre as consequências da invasão, exílio, tortura, prisão e morte de sua população. Ironicamente, os nazistas da Alemanha de ontem mataram e torturaram judeus, e, hoje, a atitude destes revela o apoio ao genocídio palestino cometido por Israel. A Europa branca, civilizada e limpinha se cala diante da barbárie que é cometida na Palestina desde o século XX e, hoje, usa a retórica do ataque do Hamas. O povo palestino não é o Hamas!

O sionismo e o imperialismo estão promovendo um show de horrores no mês de outubro. A barbárie levou o povo às ruas para pedir que cesse a violência e violação dos direitos humanos em Gaza. No dia 21 de outubro, ao redor do mundo, a multidão tomou às ruas pedindo libertação, reivindicando o direito de um corredor humanitário para resguardar a vida de civis, crianças, mulheres, mães, pessoas idosas, doentes. A ação global gerou a fúria dos militares de Israel-EUA que encenaram um dos piores bombardeios do período. Gaza foi alvejada de norte a sul. Os alvos foram os civis, as crianças, as mulheres, as mães, as pessoas idosas, os doentes, os hospitais. Os protetores dos animais não humanos mostram os horrores que estes seres inocentes estão sofrendo. Seus corpos mutilados espalhados pelas ruas ou soterrados pelos escombros.

A luta global é pelas vidas, não somente do povo palestino, mas da Cisjordânia, do Líbano e, inclusive, do povo de Israel que não pode se opor ao terrorismo de Estado. Não se iluda, o pior terrorista é quem lucra com a venda de armas, quem se ocupa em fomentar guerras para gerar lucro com o sangue inocente. “Nesta era de ignorância”, precisamos abraçar o conhecimento e combater a bestialidade, a desumanidade, a estupidez. No Twitter do Hoy Palestina foi disponibilizada a tradução para o espanhol da última mensagem de Heba em sua rede social, ela escreveu: “Se morrermos, saibam que estamos firmes, e digam ao mundo o nosso nome, que somos pessoas justas, ao lado da liberdade”. Boa noite, Heba Abu Nada! Tua juventude foi ceifada, tua poesia reverbera ao redor do mundo.

Palestina livre do rio ao mar!

Notas:

[1] Dossiê Palestina. Letralivre: revista de cultura libertária, arte e literatura, a. 14, n. 50, Rio de Janeiro, 2009.

[2] Dossiê Palestina. Letralivre: revista de cultura libertária, arte e literatura, a. 14, n. 50, Rio de Janeiro, 2009.

[3] Ela fez referência ao poeta e escritor Mahmoud Darwish (1941-2008). Ele foi um poeta e escritor palestino, nasceu no período do Mandato Britânico. Entre 1961 e 1967, foi preso e torturado pelo Estado Islâmico. Em 1970 passou a viver como refugiado. Foi autorizado a retornar em maio de 1996 para o funeral. O poema de Heba fala dos malditos que usam a guerra para separar o povo e suas famílias e para reunir nos funerais.

[4] A tradução para o espanhol está publicada no Twitter:  https://twitter.com/DaniMayakovski/status/1715894280592453771.

O vídeo original está publicado no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=T65eqU3_NTI&t=33s.

[5] https://twitter.com/HebaAbuNada.

[6] https://twitter.com/HoyPalestina.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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O Estrangulador de Boston

O Estrangulador de Boston

O true crime é um gênero em ascensão na cultura pop. Embora os seus primeiros registros sejam datados da Grã-Bretanha de 1550, as obras têm conquistado espaço em diferentes tipos de mídia nas últimas décadas. Parte do interesse vem do fato de que elas se baseiam em evidências dos crimes, contam com depoimentos de pessoas envolvidas na investigação e, quando possível, com a transcrição dos julgamentos. Dessa forma, as análises são pautadas no material coletado pelos autores e não em impressões, o que contribui para diferenciar o true crime das produções baseadas em fatos reais, nas quais existe margem para interpretação.

Em geral, narrativas têm como ponto de partida um crime que ganhou notoriedade e é comum que elas tenham sido repercutidas pela mídia. Contudo, nem sempre a abordagem é feita de modo responsável porque existe a preocupação com o espetáculo, o que contribui para aumentar a audiência. Infelizmente, nós vivemos em um país que oferece diversos exemplos deste tipo de tratamento mórbido. Talvez, o maior deles seja o caso de Eloá Cristina, visto que a apresentadora Sônia Abrão chegou a falar ao vivo com Lindemberg Alves, o sequestrador que mantinha a sua ex-namorada e uma amiga dela em cárcere privado.

Se saímos do Brasil, a morbidez permanece. Um caso popular é o de Charles Manson, que fundou um culto ao redor da sua figura em meados da década de 1960. A seita, conhecida como Família Manson, atuava na Califórnia e foi responsável pelo assassinato da atriz Sharon Tate, bem como o de outras oito pessoas. Apesar disso, os produtos jornalísticos da época passavam a impressão de glorificar a figura de Manson, tratando a organização da seita e o seu poder de persuasão como características admiráveis. Além disso, boa parte dos conteúdos ignorava porque Charles Manson coopta majoritariamente jovens do sexo feminino com problemas familiares. Não é preciso fazer muito esforço para entender os impactos de uma figura que prometia acolhimento para garotas fragilizadas, especialmente uma que se colocava na posição de messias.

Quando olhamos para as sutilezas de casos como esses, é possível começar a entender um pouco do fascínio que o true crime desperta no público feminino. Esse interesse tem sido alvo de estudos, como o da Civic Science, uma plataforma que analisa hábitos de consumo. De acordo com o levantamento, 18% dos entrevistados têm o true crime como gênero favorito no formato de podcast. O apelo é maior entre membros da Geração Z e passa por uma queda conforme a idade dos ouvintes aumenta, girando em torno de 9% na audiência com mais de 55 anos. Além disso, o estudo revela que o true crime tem mais adesão entre as mulheres: 26% das entrevistadas têm preferência por conteúdo desse estilo. Isso vai de encontro a uma matéria veiculada pelo O Globo a respeito da ascensão do gênero no Brasil. Nessa reportagem, as hosts do Modus Operandi, um podcast com milhões de ouvintes, contaram que 75% do seu público é composto por pessoas do sexo feminino. Seguindo a mesma linha, Rachel Fairburn, do All Killa No Filla, revelou à BBC que entre 80% e 85% dos seus ouvintes são mulheres.

Ambas as matérias servem para ilustrar aspectos interessantes a respeito da presença feminina no true crime e a da BBC cita cinco possíveis motivos pelos quais as mulheres gostam do gênero: medo, compaixão, fascínio pelas motivações, mistérios para solucionar e escapismo. Entre eles, o último se mostra intrigante, mas também tem uma explicação. Durante a pandemia, o Google Trends divulgou que o número de buscas da palavra “terror” triplicou, deixando claro o crescimento do gênero, que é bastante próximo do true crime. Assim, vários sites se interessaram por investigar o que motivou esse cenário e as respostas indicavam que as narrativas funcionavam como um meio de fugir de um contexto que era ainda mais assustador, uma lógica que também pode ser aplicada ao true crime.

Também é interessante comentar a respeito da compaixão, que se parece mais com empatia quando olhada com atenção. Em casos como o de Ted Bundy e Gary Ridgway (ou Green River Killer), as vítimas são do sexo feminino. Logo, as mulheres acabam se colocando no lugar delas com maior facilidade, o que também serve para ilustrar porque o medo é um incentivador do consumo de true crime: se eu posso me tornar uma vítima, é melhor saber reconhecer os sinais do que ser surpreendida. Embora esse senso de segurança seja ilusório, ele torna as mulheres mais vigilantes. Todavia, essas motivações ainda são insuficientes para explicar totalmente o interesse feminino pelo true crime, tanto do ponto de vista da produção quanto do consumo e a matéria do O Globo serve para amarrar algumas pontas soltas.

Para Carol Moreira, uma das apresentadoras do Modus Operandi, quando mulheres produzem conteúdo do gênero existe maior predisposição para compreender as vítimas sem julgá-las. De encontro a isso, a escritora Luiza Lusvarghi comenta a respeito da tendência do true crime ao sensacionalismo, algo minimizado em títulos com assinatura feminina, em especial no que se refere à exploração dos sentimentos, o que pode ser ilustrado pela série Dhamer: Um Canibal Americano. Categorizada pelas famílias das vítimas como imprudente e cruel, ela chegou a colocar em tela uma  cena na qual os atores repetem, palavra por palavra, os depoimentos do julgamento de Jeffrey Dahmer, inclusive o da irmã de um dos jovens mortos pelo serial killer. Além das famílias, a jornalista Anne E. Schwartz, que cobriu o caso em 1991, afirmou que o programa troca a  precisão pela dramaticidade e é pouco fiel aos detalhes do caso que aborda. Curiosamente, essa produção é a segunda série mais vista da Netflix, com mais de 700 milhões de horas assistidas, o que revela um apreço do público geral pela espetacularização de tragédias.

Considerando esses pontos, é possível concluir que grande parte das mulheres que ocupa um espaço na produção de conteúdo de true crime o faz por acreditar que é possível respeitar as vítimas e se ater aos fatos, deixando de lado a necessidade de inflamar o público para conseguir engajamento. E se olharmos para os números conquistados por essas produtoras, essa visão está correta. Em 2019, 11 dos 20 podcasts mais ouvidos do iTunes eram classificados como true crime e sete deles tinham apresentação feminina.

Somado a essa mudança de perspectiva, existe um componente histórico relevante. Para a escritora Patrícia Hargreaves, se não olharmos para o passado dos crimes, a tendência é que sigamos cometendo os mesmos erros. Para ilustrar, ela citou o exemplo de Ângela Diniz, uma socialite morta pelo namorado na década de 1970. Embora o caso não deixasse margem para dúvida quanto à autoria, a defesa de Doca Street aproveitou uma ideia vigente desde o Império para conseguir fazer com que o caráter da vítima fosse julgado ao invés do assassino: o crime passional em legítima defesa da honra, algo. Ainda que o Código Penal não permita mais esse tipo de abordagem, Hargreaves ressaltou que a sociedade ainda enxerga a traição como motivo plausível para o feminicídio. Ou seja, a legislação pode ter mudado, mas a mentalidade permanece a mesma.

Então, é possível afirmar que as narrativas de true crime criadas e consumidas por mulheres são muito mais sobre a sociedade e sobre todos os fatores que possibilitaram a ocorrência dos crimes. Elas são extremamente humanas e fundamentais para a memória coletiva, extrapolando bastante a abordagem padrão da mídia e se distanciando do culto à figura do assassino. Nesse sentido, um exemplo recente que merece destaque é o filme O Estrangulador de Boston (Boston Strangler, 2023), que, apesar de não ser assinado por uma diretora, é conduzido de uma forma que nos faz pensar a respeito desses novos caminhos que o gênero tem seguido depois de se tornar um território feminino.

O primeiro ponto que contribui para isso é a escolha do diretor Matt Ruskin de deixar de lado Albert DeSalvo (David Dastmalchian), o serial killer que matou mais de dez mulheres em Boston entre 1962 e 1964. Ele não recebe mais do que vinte minutos de tela, o suficiente para que a sua identidade seja revelada, bem como alguns fatos inquietantes sobre a sua confissão. Entretanto, DeSalvo não tem maior aprofundamento. Para o diretor, as figuras centrais da história são Loretta McLaughlin (Keira Knightley) e Jean Cole (Carrie Coon), as repórteres que se dedicaram à cobertura do caso. Antes mesmo que a polícia entendesse que os três primeiros crimes do Estrangulador estavam conectados, Loretta foi a responsável por identificar um padrão e apurar os fatos, que posteriormente foram divulgados no jornal Boston Record America. Porém, ainda que a repórter tenha seguido todos os passos necessários para conseguir a sua confirmação, a polícia se recusou a aceitar a teoria por um tempo, o que acabou custando mais vidas.

Assim, a perspectiva feminina serve para expor as diversas camadas de misoginia da sociedade do contexto. Isso começa pela própria redação do jornal, que mantém Loretta confinada na seção de estilo de vida mesmo que ela tenha potencial para mais. As tarefas mais complexas, quase sempre ligadas a casos criminais, são destinadas aos homens, que não parecem interessados em desafiar as normas ou incomodar as autoridades para checar os fatos. Eles estão confortáveis com respostas vagas em nome de uma espécie de camaradagem, ainda que o trabalho de um jornalista seja questionar e incomodar para chegar à verdade. Isso se torna ainda mais claro quando um policial de alto cargo vai até o Boston Record para falar com Jack Maclaine (Chris Cooper), o chefe de Loretta, e afirma que foi um golpe baixo enviar um “rabo de saia” para falar com o detetive que esteve na cena do terceiro crime. Durante esse diálogo, ele também afirma que Jack não poderia ter publicado a reportagem, uma vez que as informações foram fornecidas somente porque o oficial acreditou que conseguiria obter favores sexuais de Loretta.

Embora o machismo seja mais evidente quando pensamos na personagem de Keira Knightley, ele também afeta Jean. Ainda que ela consiga trabalhar com investigações criminais, não está mais perto do que a colega de redação de ter o respeito dos seus pares. Conforme O Estrangulador de Boston avança, conseguimos perceber que boa parte dos jornalistas acredita que Jean somente trabalha nesses casos por causa da sua aparência. A diferença entre as duas repórteres está no fato de que Jean ocupa essa posição há mais tempo e, portanto, sabe lidar com esse tipo de insinuação e com os impactos da carreira na sua vida pessoal, algo que Loretta ainda está aprendendo a administrar. Em um primeiro momento, James (Morgan Spector), o marido da personagem, apoia o seu trabalho no jornal, mas isso muda a partir do ponto em que Loretta começa a ganhar relevância com a investigação do Estrangulador. Uma vez que a foto dela aparece no Boston Record, as coisas tomam um rumo diferente, e ela passa a ser alvo de cobranças que antes não existiam, um cenário potencializado pelo crescimento do caso e do sensacionalismo midiático ao seu redor.

Todos os jornais da região queriam uma fatia das vendas geradas pelo serial killer. Porém, nem sempre havia preocupação em apurar os fatos, e diversas reportagens baseadas em boatos foram veiculadas, espalhando o pânico pelas ruas de Boston. Isso serve para confirmar que o sensacionalismo é uma parte intrínseca do true crime há muito tempo, mas também para ilustrar como as vítimas muitas vezes são ignoradas na cobertura de casos dessa natureza. De um lado, tem-se uma imprensa preocupada em vender jornais às custas da tragédia. Do outro, uma polícia que deseja livrar a própria pele e escapar do tribunal da opinião pública. Porém, ninguém parece se importar em obter justiça para as mulheres que foram mortas pelo Estrangulador. Mesmo a ideia de prendê-lo tem pouco a ver com elas e muito mais com punitivismo, com aplacar a sede de sangue da comunidade e da própria polícia, ridicularizada algumas vezes ao longo da investigação.

Assim, as cenas em que vemos Lorretta e Jean conversando com as famílias das vítimas parecem caminhar na contramão do que produções pautadas em investigações criminais normalmente fazem. Nesses diálogos, percebemos que as jornalistas têm mais interesse em oferecer alento e justiça do que em receber algum tipo de gratificação pelo seu trabalho. A sua principal motivação é manter as mulheres de Boston seguras, visto que a falta de um padrão nas escolhas de vítimas do Estrangulador serve para revelar que qualquer uma pode ser o próximo alvo, independente de idade, raça ou outros marcadores que serviriam para criar uma separação. Dessa forma, nasce um senso de coletividade e a certeza, infelizmente atual, de que as mulheres só têm umas às outras quando enfrentam um mal que toca somente o sexo feminino.

Nesse ponto, é importante tomar um pouco de distância do filme para falar a respeito de como ele foi recebido por alguns veículos de imprensa. Avaliado com 2 de 5 estrelas do The Guardian, O Estrangulador de Boston foi descrito como sem emoção dramática e tensão. O texto do jornal também afirma que diretores como Jonathan Demme ou David Fincher poderiam ter feito um trabalho melhor com este material, mas Matt Ruskin prefere se manter “do lado certo do gosto contemporâneo”. É desnecessário dizer que a crítica foi escrita por um homem, Peter Bradshaw, dada a incompreensão das ideias apresentadas e dos motivos para essa “frieza”. Além disso, somente um homem poderia acreditar que não existe tensão suficiente em ver duas mulheres enfrentando praticamente sozinhas um serial killer. E apenas um homem seria capaz de afirmar que O Estrangulador de Boston não tem elementos capazes de despertar “calafrios de medo”.

Isso porque o crítico falha em perceber que o horror do longa reside em elementos muito mais sutis do que a tradicional exploração das mortes e da figura do assassino. Conforme Loretta e Jean investigam o caso do Estrangulador, elas se deparam com diversas possibilidades de criminosos além de Albert DeSalvo. Inclusive, ainda que ele tenha confessado a autoria, alguns crimes simplesmente não poderiam ter sido cometidos por ele, que estava preso quando eles ocorreram. Assim, O Estrangulador de Boston trabalha com a ideia de que o serial killer não é uma pessoa, mas uma mentalidade misógina, algo que permanece atual quando consideramos que mais de 50 anos se passaram desde esse caso e nós convivemos com a existência de incels, red pills e outros grupos que incentivam o ódio às mulheres. Para qualquer pessoa do sexo feminino, essa ideia por si só é aterrorizante. Porém, um cinema que explora a possibilidade de que mulheres vítimas de crimes sejam tratadas com respeito ainda é algo incômodo para muitos homens.

Em partes, isso acontece porque a ideia de que filmes devem servir exclusivamente como entretenimento é muito presente na sociedade. E o interesse de alguns grupos pelo true crime, como sugeriu a BBC, está ligado à solução dos mistérios. Portanto, os elementos que despertam a curiosidade são fundamentais para uma parcela do público. Assim, quando o foco é um novo olhar sobre o gênero, especialmente um olhar centralizado em mulheres, o incômodo masculino surge porque, junto com a nova perspectiva, vem a ideia de que transformar as mortes em espetáculo visual é desrespeitoso. Logo, escolher um caminho que se desviar do sensacionalismo e traz outras possibilidades de abordagem para um caso já extensivamente explorado é algo que rende uma recepção, no mínimo, ambígua. Porém, essa reação é algo que serve para ilustrar porque as mulheres precisam continuar tomando os seus espaços nesse tipo de discussão e produção de conteúdo. Como O Estrangulador de Boston mostra com eficiência, é somente quando nós contamos as nossas próprias histórias que passamos a ser vistas como mais do que corpos violados nas tramas criadas pelo patriarcado.

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Amanda Guimarães – Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), atua há mais de 10 anos como corretora de textos e redatora e escreve sobre cultura em vários sites pela internet afora desde 2012. Obcecada por cinema de horror, gatos e música dos anos 90, curte viajar para festivais e ficar em casa rodeada de suas gatas.

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Um novo universal?

Um novo universal?

A língua que você fala envenena a glote a língua o palato os lábios. Elas dizem: a língua que você fala é feita de palavras que a matam.

                                Monique Wittig, As guerrilheiras, 1969

 

Linguagem inclusiva é diferente de linguagem neutra. De acordo com a gramática, quando existe pelo menos um elemento masculino, o gênero predominante é o masculino. As pessoas que não se identificam como homem ou mulher buscam resolver esse impasse utilizando-se de símbolos “@” ou “x” no lugar dos marcadores de gênero. Porém, a alteração na grafia (uso do “x” ou “@”) dificulta a compreensão, e muitas pessoas com deficiência visual, que utilizam programas de leituras de texto, se veem prejudicadas, tendo em vista que os softwares não conseguem ler palavras escritas neste formato modificado. Escritoras feministas, como Monique Wittig, já apontavam em seus textos a mortificação das mulheres via linguagem, como lemos na citação inicial desta reflexão.

A editora francesa Des Femmes, fundada em 1973 por Antoinette Fouque, se dedica exclusivamente a publicar obras escritas por mulheres. Na página virtual da livraria, lemos: “écrire ne sera donc jamais neutre”. A ideia central é de que a escrita não é, e jamais será, neutra, pois ela reflete as experiências de quem escreve no mundo do qual participa.

Aqui vemos o imbróglio tomar grandes dimensões. A discussão sobre linguagem não sexista já estava consolidada desde meados dos anos 1960 com vistas à inclusão das mulheres na linguagem. A atual proposta de linguagem neutra, que seria mais adequadamente definida como linguagem não binária, propõe uma mudança gramatical. A linguagem não sexista, também conhecida como linguagem inclusiva, propõe uma comunicação sem excluir ou invisibilizar nenhum grupo social. A proposta da linguagem neutra ou não binária, busca a inclusão das pessoas não binárias, e sugere algumas alterações do idioma e do uso de novas grafias de palavras tais como: tod@s, todxs, todes.

O que é a linguagem sexista então? Um conjunto de vocábulos que, sendo primariamente do gênero masculino, simboliza ambos os gêneros em situação de comunicação. Mensagens estereotipadas e discriminatórias de ambos os gêneros com base em convenções preestabelecidas pela cultura e que nada têm a ver com condicionalismos biológicos intrínsecos aos seres humanos. Foi partindo desse entendimento que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) definiu, a partir de publicações e formas diversas de intervenção sobre o tema, algumas diretrizes para Redação sem discriminação. A linguagem sexista tem sido um objeto de estudo e intervenção tratado em diferentes níveis de governo, chegando ao âmbito das Nações Unidas através da 24ª reunião da Assembleia Geral da UNESCO, em 1978, que propôs o exame e a revisão dos registros escritos e dos discursos orais que apresentem formas de discriminação de linguagem com relação às mulheres.

 Mudanças significativas nas relações sociais e humanas começam com o uso das palavras adequadas e com mensagens não verbais que reafirmem a equidade entre os gêneros e valorizem a diversidade sociocultural, sexual e racial. Introduzir estes parâmetros nos materiais de educação é fundamental para forjar novas relações entre as pessoas.

Algumas recomendações para evitar sexismo na elaboração de materiais de educação são:

– Eliminar da linguagem todas as expressões de conteúdo desqualificador ou discriminatório, que tenham como mensagem a inferioridade das mulheres, sua ausência na vida pública e a sua definição e identidade em função do homem. Dessa forma, torna-se injustificável manter o jargão “história do homem”, “o homem moderno”, tão comuns nos livros didáticos, especialmente aqueles dedicados à história natural.  Há palavras e expressões mais interessantes como “humanidade”, “espécie humana”, “homens, mulheres cis, trans e pessoas não binárias”, que substituem esse vício com propriedade.

– Fomentar nos textos e nas ilustrações imagens de equidade, cooperação e associação entre as pessoas, as crianças e jovens de raças, etnias, idades, religiões, posições sociais diferenciadas. Eliminar aquelas que contenham conteúdos estereotipados, desqualificadores ou discriminatórios.

– Mostrar situações em que o poder e a liderança estejam distribuídos por personagens de ambos os gêneros, em que os diferentes gêneros sintam-se representados nas atitudes positivas e propositivas.

As propostas para uso de uma linguagem não sexista já são comuns em várias línguas, tais como francês, inglês, alemão e espanhol. Na América Latina, os países, em sua maioria de língua espanhola ou castelhana, criaram redes de divulgação, distribuição de manuais, postagem de poemas e textos não sexistas, chegando mesmo a organização de uma campanha para a América Latina – que tem no dia 21 de junho uma data comemorativa, dia no qual as proponentes disseminam cartazes, poemas, textos e outros documentos visando a difusão de uma ideia muito simples, assim expressa: “No alfabeto é assim: ‘A = O’.   Duas letras diferentes, iguais em importância. Na vida dos seres humanos, naturalmente deveria também ser assim: iguais em direitos humanos e respeitados em suas diferenças”.

A = O torna-se o símbolo dessa luta contra o sexismo, travada no âmbito da linguagem. Outra proposta interessante é do Mujer Palabra, um grupo autodenominado de “independente” e “autogestionado”, dedicado a trabalhos de criação, pensamento e ativismo, cujo lema é: “Se a linguagem não importa não é essa nossa revolução!”.

A reivindicação do grupo é para a adequação da linguagem aos tempos atuais, em que as mulheres nem sempre concordam silenciosamente com as violências sexistas. A linguagem é historicamente construída e como tal deve ser revisada de modo que contemple as pessoas envolvidas no discurso, seja oral ou escrito. O que nos transmite a linguagem sexista? Que o homem ou o masculino serve como medida do humano, da norma, a referência. Que as mulheres são apagadas nessa referência universal. Que as formas femininas partem sempre do masculino. Que o masculino dita as regras de concordância. Que os homens são criaturas racionais enquanto as mulheres são criaturas sexuais, emotivas e, por isso, apêndice do homem.

Em suma, a linguagem tem servido para fustigar ou excluir as pessoas não brancas, deficientes, idosas, as crianças, minorias e as mulheres cis e trans que, apesar de serem mais de metade da população mundial, continuam sendo anuladas, apagadas ou eliminadas dos discursos orais e escritos. É imperioso proceder à reescrita da gramática fazendo uma revisão da ordem das relações sociais de gênero. É importante ensinar as pessoas a falar usando uma linguagem não sexista, paritária, inclusiva e democrática.

A linguagem influencia poderosamente nas atitudes, nos comportamentos e nas percepções. E é por isso que na Argentina, e em alguns países na Europa, criam-se orientações em manuais que assegurem, na medida do possível, uma linguagem não sexista nos documentos públicos.

Um exemplo é o projeto de lei da deputada Paula Cecília Merchan, publicado em 2011 na Argentina, intitulado: Uso de linguagem não sexista na administração pública. A linguagem é uma construção cultural e histórica que tem colaborado para a violência sexista. A crença que a humanidade é composta de “homens” e que, naturalmente, as mulheres são incluídas na palavra é motivo de sexismo. Do mesmo modo que um/a palestrante se referir a uma plateia de docentes composta em sua maioria por mulheres como: “os senhores” ou “os professores” é um tratamento sexista e excludente, que parte do princípio de que as mulheres são uma segunda categoria, inclusa na categoria “homens”. Dessa forma, a contribuição feminista para o debate está em evitar o sexismo na linguagem como um passo importante para o combate às discriminações de gênero. As práticas linguísticas, prioritariamente nos espaços de administração pública, podem servir de modelo e permitir o desenvolvimento coerente com as práticas sociais que se renovam, foi assim que vários países já produziram Guias de orientação para a utilização de uma linguagem não sexista.

Iniciativas semelhantes aconteceram na Europa e na América Latina, onde os guias de orientação formam materiais pedagógicos para serem utilizados nos textos escritos e nos discursos orais dentro dos setores públicos, pois se entende que, nesses locais, a prioridade deve ser a inclusão e a garantia do exercício da cidadania. A partir disso, aponto o argumento do guia elaborado pelo Instituto Canário, nas Ilhas Canárias na Espanha: “Nos últimos 30 anos generaliza-se um amplo conhecimento sobre como utilizar uma linguagem inclusiva em todos os âmbitos, especialmente na linguagem administrativa. São publicados livros, manuais, dicionários, conclusões etc. com a finalidade de utilizar a riqueza da língua espanhola em prol da generalização da linguagem não sexista para a cidadania” (Instituto Canário de la Mujer, 2010).

A urgência dos governos em adotar manuais de orientação se faz como medida para amenizar as dificuldades de adoção de uma gramática não androcêntrica, ou menos androcêntrica que as atuais. Na linguagem sexista está presente a crença quase geral que confere poder e superioridade ao homem e se manifesta em palavras e expressões que ocultam ou desqualificam o feminino. Um dos exemplos mais marcantes é o uso da palavra homem para designar todos os seres humanos, enquanto a palavra mulher designa apenas a fêmea da espécie. Alguns dicionários ainda propõem que a palavra mulher designa alguém da espécie humana depois da puberdade ou do casamento, deixando uma lacuna quanto ao que seriam antes desses dois casos. Se não são mulheres, o que seriam então? Este é apenas um exemplo dentre tantos. Como este exemplo existem outros em que o masculino precede, oculta e domina o feminino, ou que a mulher recebe sua identidade em função da relação com o homem.

A linguagem que nós usamos traduz o grau de desenvolvimento civilizacional em que nos encontramos. Ela é o reflexo do nosso sentir e agir, além disso, ela afeta diretamente a percepção da realidade. A linguagem sexista legitima comportamentos de desigualdade, desrespeito, discriminatórios, ao omitir retira importância, reduz à inexistência grande parcela da humanidade, o que reforça e promove a violência sexista. A linguagem, ao denominar as mulheres como propriedade dos homens, sustenta uma visão patriarcalista do mundo. É preciso prever sanções para quem não respeitar o direito de todas as pessoas se verem representadas com dignidade nos textos escritos e produzidos oralmente em contextos públicos, por isso os vários manuais elaborados a partir das diretrizes propostas pela UNESCO são um passo importante para a construção de uma gramática não androcêntrica.

Esse debate está apenas começando no Brasil, e como vimos, em atraso com relação ao restante da América Latina, proponho uma revisão morfológica, além, é claro, da elaboração de manuais e guias de orientação para a utilização da linguagem não sexista nos espaços públicos, tais como escolas, centros de saúde, prefeituras etc.

Além disso, ficam alguns questionamentos: como aprender a falar/escrever sem silenciar as outras pessoas? Como não transformar o “todes” em um novo universal, que substitui o “todos” e, novamente, exclui as mulheres do discurso? Creio que o debate está apenas começando e, portanto, vale lembrar que não será alimentando velhas exclusões que se fará nascer uma nova proposta.

Para concluir, vale lembrar que, entre a metade final do século XX e início do século XXI, a linguagem não sexista ou inclusiva esteve presente nas pautas feministas e nas organizações de direitos humanos. Nas últimas décadas, vimos surgir um debate propondo uma linguagem não binária. É muito justa e importante a reivindicação empreendida por pessoas que não se identificam como homens ou mulheres, preferindo se autodefinirem como pessoas não binárias. Porém, se faz urgente a compreensão de que mulheres cis e trans definem-se como tal e, em consequência, todas querem ser contempladas pela linguagem. Este é um ponto urgente e importantíssimo! Vencer a barreira do machismo na linguagem e nas práticas sociais do Brasil, um dos países com maior número de estupros, feminicídio e transfobia.  

Retomo a frase inicial de Wittig que diz: “a língua que você fala é feita de palavras que a matam”. Excluir as mulheres cis e trans da linguagem é uma forma de eliminar suas existências. É estranho e desrespeitoso ver feministas nomeando outras mulheres em suas assembleias, eventos ou reuniões valendo-se da linguagem não binária. Se a linguagem no masculino não representa mulheres cis e trans ou pessoas não binárias, vale dizer o mesmo para a linguagem não binária, ela não representa o conjunto de homens e mulheres cis e trans, que assim se definem. Uma forma inclusiva para contemplar uma plateia de ouvintes, com identidades múltiplas, pode ser mais gentil se falarmos: “Saudações à todas, todes e todos!”.

A nova exclusão das mulheres da linguagem estaria ocorrendo para criar um novo universal que as exclui ou seria uma forma simplista de falar menos/escrever menos fomentada pela comunicação virtual? São muitas dúvidas e muitos desafios. O certo é que mulheres cis e trans irão continuar lutando por espaço social, voz e direitos, na mesma medida que a discussão sobre a linguagem não binária deve ganhar novos contornos e um debate linguístico, social e político para além da perversa uniformização humana.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Domingo, 24 de setembro de 2023 – Lua crescente

Domingo, 24 de setembro de 2023 – Lua crescente

Após cumprir as demandas de trabalho do dia (de freela e de casa), comecei hoje a ler uma edição de cartas da Virginia Woolf e Vita Sackville-West (Editora Morro Branco, 2023), que comprei ontem numa livraria de rua em BH. Elas foram amantes apaixonadas. Tem coisa mais inspiradora do que carta de mulheres apaixonadas? Li 40 páginas e quis vir aqui escrever um pouco – há dias tenho pensado nisso, mas não fiz.

Tanta coisa aconteceu do último texto para cá… em relação ao meu trabalho como preparadora e revisora (tem aparecido muitas demandas!), ao mestrado (cursos, congressos, simpósios, apresentações, encontros, lançamentos de livros…), tudo direta ou indiretamente girando em torno da Luas e do meu ofício de trabalhar com livros e estudar sobre eles e sobre as demandas feministas. Enquanto isso, na minha cabeça fica martelando o que preciso fazer para que a Luas tenha mais visibilidade, que venda livros, mas não só… (porque, pasmem, uma editora pequena não sobrevive financeiramente de venda de livros… E, poxa, a Luas é um projeto tão legal… E importante. Me apaixono todos os dias por esse projeto.) Como fazer uma das partes que tanto sonhei/sonho com a Luas acontecer, que é ser um lugar de encontro de mulheres que escrevem, profissionais da edição e da cadeia do livro, leitoras/leitores, para espairecer as dificuldades do existir e aprimorarmos os bons encontros a partir dos livros?

Ter uma editora, lançar um livro, abrir uma livraria, montar cursos etc., tudo isso é sempre um risco. Tenho pensado muito sobre isso. Tudo na vida é sempre um risco. Por que temos tanto medo? Ou melhor, do que tenho tanto medo?

Depois de um pouco mais de três anos fora de BH, volto a morar aqui, e sei que não quero viver nesta cidade como se morasse numa qualquer, ou seja, ficar trancafiada em casa, trabalhando loucamente no computador e pensando no tanto de coisas que quero fazer, imaginando, criando, mas também lamentando estar sozinha nessa (mesmo, de fato, não estando, pois tanta mulher me apoia, apoia a Luas – somos uma coisa só…), não ter dinheiro para concretizar tudo o que minha imaginação cria com a rapidez de um falcão em voo… rs.

O curioso é que, ao mesmo tempo, pela primeira vez, tenho tomado decisões para focar cada vez mais no que quero ser e fazer com a Luas, vislumbro isso com mais claridade e calma. Com certeza tem a ver com o que trilhei até aqui, com as experiências – boas e não tão boas – que me fizeram, em alguns momentos, focar, noutros, desfocar do meu projeto editorial feminista. E isso me assusta. Tenho propensão a me perder nos desejos dos outros… empolgadamente… ingenuamente… e isso não é justo com ninguém, não é mesmo?

Eu sempre quis fazer algo que transformasse o mundo e me transformasse o tempo todo, e a Luas faz isso comigo – é como uma filha, existimos juntas. E tenho refletido, criticamente, sobre a lente com que olho tudo o que me acontece e faço acontecer – pequenas transformações não seriam conquistas maiores do que penso ser? E, juro, não é só como um mecanismo para seguir em frente. É que, de fato, temos em funcionamento uma cultura cuja base e perspectivas são muito cruel, anti-vida, principalmente para as mulheres, pessoas racializadas e pessoas não homens-cis-hétero-branco. E precisamos estar o tempo todo atentas às armadilhas que nos fazem ver que o que fazemos, desejamos, criamos, somos (ou pretendemos ser) é pouco, ou menos, ou menor, enfim…

Sob esta lua crescente, começo a semana querendo fazer planos, colocar no papel, como diz… organizar as ideias, os desejos, para materializá-los. Abrir um espaço da Luas, juntar dinheiro, criar um clube do livro, grupo de estudos, podcast… encontrar, compartilhar, trocar… mudar o mundo todo um dia… um pouco… de pouco em pouco… como dá… hoje.

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   Cecília Castro – Fundadora e diretora editorial da Editora Luas. Nasceu no norte de Minas, é feminista, ativista, apaixonada por livros, poesia e literatura.

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