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Dia Internacional da Mulher: para quais mulheres?

Dia Internacional da Mulher: para quais mulheres?

“O choro da menina foi se transformando em um gemido quase inaudível, fazendo os latidos do cão diminuírem aos poucos”

(Adania Shibli) [1].

A imagem que ilustra a divulgação deste texto é de Shamsia Hassani e foi criada em 2020. Ela nasceu em abril de 1988 no Afeganistão e aborda a situação das mulheres no Oriente Médio. A artista é grafiteira, professora universitária nas áreas de escultura, arte digital e urbana. A obra em destaque mostra uma maternidade nada romantizada. A gestante segura o ventre onde vemos um feto formado e posicionado com a cabeça para baixo. Seria, em condições comuns, um indício de que a criança está pronta para vir ao mundo. No entanto, a mãe e a criança estão com seus corações partidos, pois vivem em uma zona de guerra. O futuro dela é incerto! O tanque de guerra no segundo plano nos possibilita entender a dor da mãe que chora [2].

Ao redor do mundo, muitas mulheres nem lembram que existe um dia para “elas”, para “nós”. Sabemos que nas zonas de guerra as mulheres e as crianças são as maiores vítimas. No dia 8 de março, as redes sociais divulgaram o discurso proferido às turmas da escola religiosa Shirat Moshe pelo diretor, o rabino Eliyahu Mali, que abordou os escritos sagrados do judaísmo. Segundo o rabino, está havendo uma “guerra santa” em Gaza e todo soldado deve atentar para a regra básica prescrita no Torah: “Não poupem nenhuma alma! Não há pessoas inocentes. Se você não os matar, eles irão te matar. São vocês ou eles. A próxima geração e as mulheres que dão à luz a próxima geração serão os terroristas de amanhã”. Ele é enfático: “Não poupe nenhuma mulher, nem gestante, nem criança, nem bebê, nem idosa”.

A fala do rabino não é algo novo, sabemos que a dominação colonialista tem como alvo as mulheres e as crianças. O colonialismo, desde seus primórdios, é escrito com o sangue das mulheres e de suas crianças. A obra de Shamsia é bela e triste. Retrata a dor das mães cujo futuro é incerto e repleto de medo e melancolia. As mulheres que sofreram ou sofrem os processos colonizadores estão à margem desta e de outras comemorações tão caras às instituições tradicionais. As mulheres indígenas e as mulheres negras da América Latina, as do Oriente Médio, da África não receberam flores neste dia.

O dia da mulher é para quais mulheres, afinal? Desde o século XIX vemos as mulheres reivindicarem direitos. As libertárias, as anarquistas, as sufragistas, as mulheres negras, as marxistas, as campesinas deram passos importantes desde o alvorecer feminista. A marcha das mulheres é marcada pelas batalhas, vencidas ou perdidas, elas abriram caminhos.

Os feminismos contemporâneos necessitam viver a relação interseccional para dar voz e vez para as mulheres em suas diferentes etnias, gerações e orientações de gênero. Para reforçar o trabalho de criar novas pontes para além da normatização, é preciso descolonizar os corpos e as ações, já que as marcas das violências ainda refletem as heranças da sangrenta colonização e da cultura escravagista europeia e norte-americana. O conhecimento na perspectiva das mulheres que lutam pela libertação é um processo, uma jornada, um caminhar que ilumina novos horizontes não capturados, como diz a cineasta e escritora vietnamita Trinh T. Minh-Ha:

“O significado move-se com o caminhar e, como se diz frequentemente na Ásia, milagre é caminhar no chão, e não na água. Caminhar é uma experiência de indefinição e infinitude. A cada passo adiante, o mundo vem a nós. A cada passo adiante, uma flor brota sob nossos pés. […] Um cinza multicolorido cujo tempo resiste à captura e cujas cores desafiam toda formação em preto e branco. A cada passo, o mundo vem ao caminhante” [3].

Mulheres indígenas

Mulheres do Congo

Mulheres de Gaza

Mulheres negras do Brasil

Mulheres latino-americanas

Resistem e caminhando constroem pontes e novas perspectivas.

A jornada é longa, entre flores e serpentes, a andança torna-se aprendizado!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências: 

[1] Adania Shibli. Detalhe menor. Tradução de Safa Jubran. São Paulo: Todavia, 2021, p. 46.

[2] Shamsia Hassani. The Artist. Disponível em: https://www.shamsiahassani.net/. Acesso em: 17 mar. 2024.

[3] Trinh T. Minh-Ha. Milhas de estranheza. AREND, Silvia; RIAL, Carmen; PEDRO, Joana Maria. Diásporas, mobilidades e migrações. Florianópolis: Editora Mulheres, 2011, p.18-19.

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