Conexões entre sexismo e especismo
Conexões entre sexismo e especismo
Cuando pasas
Y posas
Cuatro pies delicados
Em el suelo,
Oliendo,
Desconfiado
De todo terrestre,
Porque todo
Es inmundo
Para el inmaculado pie del gato
(Pablo Neruda) [1]
Em memória à Maju, uma das vítimas dos covardes torturadores de gatos de Caxias do Sul (RS), a foto dela na imagem que ilustra o texto deste mês está publicada no Instagram da @ongsrdoficial.
Especismo é a ideia de promover a espécie humana como superior e, além disso, capaz de deliberar sobre todas as outras, incluindo o direito sobre a vida e a liberdade. É a ideologia que justifica a exploração humana sobre as demais espécies. A relação com o sexismo está presente nas reflexões que pensam esse tipo de exploração. Sexismo é o nome que se dá à ideia de promover um gênero sobre o outro: a ideia de uma ordenação sexual, de subordinação do feminino ao masculino de forma hierárquica, como se houvesse uma ordem de importância social, e, nessa ordem, o masculino seria o padrão e a referência central. As feministas veganas estão se debruçando sobre a relação entre as violências sexistas, misóginas e contra as pessoas não humanas.
Utilizo o termo pessoa não humana emprestado do livro A vida dos animais, de J. M. Coetzee, nele a primatóloga Barbara Smuts convidou as pessoas humanas a “abrirem o coração para os animais à sua volta e descobrir por si mesmos como é fazer amizade com uma pessoa não humana” [2]. O termo “pessoa” no dicionário Michaelis online considera a “criatura humana” um “ser eminente ou importante”, com “caráter peculiar que dá distinção a alguém”. E vai além, na narrativa cristã, ser uma pessoa significa estar consciente de sua liberdade e responsabilidade, que são determinadas pela dimensão moral e espiritual. Já na gramática, “pessoa” indica alguém que participa de um discurso. Utilizar “pessoa” para os animais não humanos significa, portanto, transgredir um discurso criado pelo humano especista, que desconsidera todas as outras formas de vida, ou considera inferior, portanto, passível de exploração.
Para pensar a relação entre a violência machista/sexista e a brutalidade contra a irmandade de outras espécies vamos analisar o caso do torturador de gatos de Caxias do Sul (RS). Anderson Lucas Maciel de Almeida foi denunciado por maus-tratos a animais pela ONG Sem Raça Definida (SRD) e encaminhado para prisão no dia 27 de setembro de 2023. A matéria da Petrus News mostra fotos dele usadas em suas redes sociais, em uma delas ele usa um pano no rosto para encenar de forma tosca a imagem de torturador [3].
Os celulares encontrados na casa dele apontam para uma rede de homens envolvidos na compra de vídeos onde o maníaco filma a mutilação e a tortura imputadas aos gatos. A polícia está investigando a rede de envolvimento no crime. No dia 29 de setembro de 2023, a ONG liberou notícias e atualizações sobre os gatos resgatados informando que ainda não estavam prontos para adoção, todos estavam internados, tiveram as unhas arrancadas, estavam com marcas de cordas enforcando a garganta e outras tantas pelo corpo, o laudo da veterinária ainda informou que eles tiveram os dentes quebrados ou arrancados. Todos estavam magros e debilitados. No momento do resgate foi constatado que um deles havia sido morto um pouco antes da polícia e da equipe da ONG chegarem na casa do delinquente.
Em dezembro, no dia 8, a ONG noticiou a libertação do facínora para passar um “Natal em família”. O advogado de defesa do torturador, Fabiano Huff, alegou que ele possui “grave transtorno psicótico” [4]. A desculpa de “transtorno mental” permite que homens altamente perigosos andem livremente pelas ruas cometendo crimes. Graças ao advogado, o algoz está nas ruas e agora matando mais animais, com mais requintes de crueldade e ameaçando as mulheres da ONG SRD (@ongsrdoficial). Nas redes sociais, ele demonstra sua inspiração nos joguinhos eletrônicos ultraviolentos e divulga imagens dos gatos amedrontados: https://www.facebook.com/mjuvenil.lobato?mibextid=ZbWKwL.
Depois de passar o “Natal em família”, o assassino passou a realizar ameaças às mulheres da ONG. No dia 10 de janeiro deste ano, as notícias na página da ONG informaram que às 3 horas da madrugada uma das ativistas voluntárias recebeu dois vídeos de visualização única, onde havia cena de gatos sendo torturados. Cito o relato: “No primeiro, um gato preto ainda vivo, com as patas abertas e amarradas, e parte do peito mutilado também.
E no segundo vídeo um gato branco com parte do focinho cortado.
Imediatamente a voluntária reconheceu o fundo como o mesmo local onde os gatos torturados foram resgatados dia 27/09. Em tom de deboche, complementou a mensagem com ‘Miauuu’. Minutos depois recebeu mais um áudio de visualização única, com música muito alta e um gato miando desesperadamente ao fundo. Com urgência foi contatada a advogada da ONG, onde começou a ligar sem retorno do tal número. Hoje à tarde, a mesma também começou a receber ameaças gravíssimas do mesmo contato, como consta no print e no b.o que já foi aberto no mesmo momento”.
Com o criminoso solto e protegido pelo escudo de “doente mental”, os crimes agravaram e agora caminham para o desfecho sexista/machista. O ódio às protetoras é o que motiva a tortura aos gatos e aos cães ou seria uma espécie de treinamento para seu desejo mórbido de torturar mulheres? A relação entre o especismo e o sexismo é visível.
O livro Crueldade com animais x violência doméstica contra mulheres: uma conexão real estuda a relação de duas formas de violência: especista e sexista. Segundo a autora, Maria Padilha, os números encontrados com relação à violência contra os animais parecem aumentar nas últimas décadas no Brasil, e os números apontam que os agressores, em sua maioria, são homens. Ela escreve: “Dentre os diversos tipos de violência praticadas contra os animais de companhia principalmente contra cães no contexto familiar, a violência física é a que predomina e tem como principal agressor o mesmo homem que agride a mulher” [5]. Em suas considerações finais, a autora nos diz que, em geral, as pessoas não enxergam que as agressões contra animais estão ligadas com as agressões contra mulheres e crianças. Todo agressor é um covarde que vai agredir aquelas pessoas mais vulneráveis: mulheres, crianças e pessoas não humanas.
O marginal foi preso pela segunda vez por torturar e matar gatos e agora com o agravante de ameaçar as mulheres da ONG SRD. Mas, já está solto novamente. Parece que a justiça está aguardando ele começar a torturar e matar as mulheres. Não é possível que o judiciário não perceba a periculosidade do marginal. Estariam aguardando que ele compre armas de fogo e mate algumas pessoas humanas para mantê-lo enjaulado na cadeia?
O caso ganhou contornos muito perigosos no período que ele ficou encarcerado no início de 2024. Outros gatos torturados e enforcados começaram a aparecer em Caxias do Sul – o que indica que a sua rede de “amigos” que compravam os vídeos de tortura e mantinham contato na Deep Web estão atuando em “solidariedade” no período em que o marginal estava preso. Reproduzo o informe realizado dia 16 de fevereiro de 2024 pela ONG:
“Parece inacreditável, estamos apavoradas, mais uma resgatada com requintes de tortura. Na quarta-feira, às 21h recebemos um pedido de resgate inacreditável. Uma pessoa disse que encontrou uma gata em seu portão nesse estado. Ela pediu ajuda a outra que entrou em contato conosco. Pelas fotos, jurávamos que ela não estava mais viva. Porém, ao chegar na clínica, foi constatado que sim, por um milagre. Ela estava em completo estado de choque. Sem reação alguma. As veterinárias começaram a examinar com urgência, e foi aí que percebemos que não se tratava de um ‘incidente’. Ela teve uma lesão na face de aproximadamente 10 cm, tão funda que causou a exposição do osso mandibular. O estranho é que o formato do corte é ‘perfeito’. Não pode ser por mordida de animal, faca ou algo assim. Foi feito com bisturi ou algo próprio pra cortes nesse sentido. Nós ficamos realmente apavoradas! Já é o terceiro gato que aparece misteriosamente num estado do mesmo modus operandi, sem ser os resgatados do torturador. Quem lembra do Mingau? Resgatado com maxilar quebrado, unhas mutiladas, dedos cortados e também em estado de choque!
E o Frajola? Uma lesão na face muito similar a essa última resgatada. Todos eles apareceram em algum local onde vizinhos nunca haviam os visto anteriormente.
E além de tudo, essa gata teve dentes arrancados recentemente como mostra no laudo. Borramos as imagens porque são realmente muito difíceis de visualizar.
Se é difícil pra nós, pensem na gata que sofreu tudo isso!
Queremos justiça! Sabemos que existe muita gente maldosa que seguirá fazendo isso se não forem presos! Mais uma vez abrimos boletim de ocorrência e a polícia nos informou que estão investigando a similaridade desses casos para chegarem nos autores. Qualquer informação com fundamento pode ser enviada pelo direct do Instagram da ONG. A gata não consegue se alimentar, está com sonda e soro. Seu estado é gravíssimo, orem por ela”.
A gatinha do relato era a Maju, nome carinhoso dado pelas ativistas da ONG. Elas e a Maju lutaram pela vida, mas o quadro era grave, e no dia 5 de março a ONG noticiou o seu falecimento: “Nosso maior medo era ter que escrever esse texto. E hoje, com o coração despedaçado, perdemos nossa pequena […]. Uma dor inexplicável, sensação de derrota, a maldade humana venceu mais uma vez e levou nosso anjinho. Há dois dias ela decaiu bruscamente, mas ainda assim acreditávamos que ela iria se recuperar. Ela foi muito forte de chegar até aqui, agora teve seu descanso merecido. Até breve, nossa estrelinha brilhante Maju. Te amamos de todo o coração”.
Nos comentários, algumas mulheres falaram em uma rede de Incels – homens ultraviolentos que odeiam mulheres, odeiam pessoas não humanas, crianças, enfim, odeiam a vida. Suas redes instigam a violência e compartilham desejos de tortura e morte contra mulheres e animais não humanos. Para Silvia Federici (2017), a caça às bruxas inaugurou o uso científico da tortura. Sir Thomas Browne, assassino e médico, foi responsável pela morte de duas mulheres. Não por acaso, as bruxas e os gatos eram capturados, torturados e assassinados nas fogueiras da Inquisição pelos “homens de Deus”. “A magia mata a indústria” dizia Francis Bacon, sedento por sangue [6].
A diferença do período inquisitorial e a atual caça às bruxas e aos gatos é que os homens estão mais covardes do que na Idade Média. Naquela época, a acusação era pública, nenhum homem se escondia para fazer a denúncia. Hoje, os homens se escondem na Deep Web para instigarem suas seitas lotadas de homens jovens, fracassados, sem uma vida sexual satisfatória, covardes e ultraviolentos. Incel, Redpill, MGTOW ou qualquer outra designação, representam grupos de machos ressentidos, amargurados, com uma sexualidade frágil e estéril, incapazes de amar, preferem a violência, e as redes de apoio entre seus iguais são usadas para fortalecer a violência, a propagação do ódio e o planejamento de seus crimes.
Desejo muita força para as mulheres corajosas da ONG SRD e peço apoio às pessoas que são contra a barbárie: sigam a ONG nas redes sociais e, se possível, ajudem financeiramente, pois os inimigos não dormem. Eles passam a noite acordados torturando gatos e tramando contra a vida das ativistas.
Maju, eu também te amo! Muito obrigada às ativistas da ONG SRD vocês são inspiração de afeto e coragem.
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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.
Referências
[1] SILVEIRA, Nise. Gatos, a emoção de lidar. Fotos: Sebastião Barbosa. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1998. p. 18.
[2] SMUTS, Barbara. Reflexões. In: COETZEE, J. M. A vida dos animais. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 145.
[3] DIAS, Ailton. Homem é preso acusado de mutilar e gravar tortura de gatos em Caxias do Sul. Petrus News, 28 set. 2023. Disponível em: https://www.petrusnews.com.br/homem-e-preso-acusado-de-mutilar-e-gravar-tortura-de-gatos-em-caxias-do-sul/. Acesso em: 30 mar. 2024.
[4] MORIGGI, Ranieri. Suspeito de torturar gatos e ameaçar integrantes de ONG é preso preventivamente em Caxias do Sul. Jornal Semanário, 15 jan. 2024. Disponível em: https://jornalsemanario.com.br/suspeito-de-torturar-gatos-e-ameacar-integrantes-de-ong-e-preso-preventivamente-em-caxias-do-sul/. Acesso em: 30 mar. 2024.
[5] PADILHA, Maria José Sales. Crueldade com animais x Violência doméstica contra mulheres: uma conexão real. Recife: FASA, 2011. p. 48.
[6] FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.