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MANIFESTO FEMINISTA PELA VIDA

MANIFESTO FEMINISTA PELA VIDA

Em fevereiro de 2022, quando a guerra entre a Rússia e a Ucrânia começou, alguns grupos e feministas independentes fizeram circular a arte de Laura Árbol que retrata a imagem de um corpo de mulher cis, associada à origem da vida, e de um homem cis, associada à origem da guerra. A imagem nos remete aos famosos quadros A origem do mundo (1866)de Gustave Courbet e A origem da guerra (1989), da artista francesa Orlan. Ela expõe o desconforto das artistas contemporâneas que adentram o espaço do museu como objeto do olhar masculino e, vai além, utiliza o pênis como metáfora de arma de guerra. A imagem não é mera reprodução binária, mas faz alusão à materialidade dos corpos cis e suas conexões com a vida e a morte.

Quando a imagem circulou nas redes sociais, vimos uma avalanche de ataques antifeministas. Após um ano de guerra na Europa, é importante retomarmos a análise para pensar como estamos lidando com a escalada de violência e qual a relação entre a liberação de armas e o avanço do feminicídio, do estupro e do extermínio em massa.

Começo perguntando: por que defendermos as nossas vaginas e sermos opostas às guerras causa tanto desconforto? Qual a relação dos ataques virtuais ao conteúdo da imagem que circulou com relação à nova onda antifeminista? Devemos aceitar caladas, enquanto nossos corpos são açoitados? Mulheres cis e trans são mortas e violadas todos os dias no Brasil, no entanto ainda é mais chocante dizer que a vagina está associada à vida do que olhar os altos índices de feminicídio e de transfobia. É importante ressaltar que algumas mulheres trans, por opção ou falta de opção, não fazem a cirurgia de redesignação, mas, já são percebidas e vivenciam a experiência de ser mulher em um mundo misógino. Neste caso, podem ainda serem acusadas de recusa em adotar hábitos consolidados pela masculinidade tóxica.

Querem nos fazer acreditar que a continuidade da exploração da vagina e do útero como depósito de sêmen para gerar o filho do Homem cis não é um problema de gênero (homem em maiúsculo serve para identificar o homem como humanidade). O Homem da Revolução Francesa, que, via razão, pretendeu substituir Deus. Ele é o filho daqueles que nos queimaram em piras, enquanto gritavam histéricos: queimem no inferno bruxas! Indico o livro Ronda das Feiticeiras, da Norma Telles, para o estudo sobre um dos maiores extermínios de mulheres na história.

Para Carole Pateman o contrato sexual moderno garantiu ao patriarca a posse dos corpos das mulheres e das suas filha/o/s. Foi um negócio lucrativo para o patricapitalismo moderno a criação da família burguesa tradicional, garantindo ao patriarca uma mulher para copular, para trabalhar gratuitamente para ele dentro do lar sagrado e, ainda, gerar a/o/s filha/o/s “dele” para ele usar a seu serviço.

Enquanto a mãe ficava circunscrita ao reduto do lar, as prostitutas eram usadas por ele, que pagava por mais sexo. As solteironas eram encarceradas para todo o sempre nos hospitais psiquiátricos com aval da indústria médica e farmacoquímica, então nascente. Seus corpos serviram como cobaias para o patriarca brincar de cientista e inventar modos de gerar mais lucro, fundamentados na teoria de Hipócrates, que pensava existir uma suposta perturbação no útero que criaria um distúrbio cerebral.

No final do século XIX e início do XX, foi inventada a histeria, que seria um suposto distúrbio mental das mulheres causado pelo útero. O médico francês Jean-Martin Charcot transformou o Hospital Psiquiátrico Pitié-Salpêtrière no seu laboratório, as cobaias eram as mulheres que não obedeciam ao patriarca. Elas eram transformadas em histéricas, e, portanto, justificava o sequestro, a tortura, a prisão perpétua, os assassinatos em massa ou a medicalização forçada, para servir ao nascente mercado da indústria farmacoquímica.

Como as solteironas, as lésbicas foram catalogadas como doentes e também foram usadas como cobaias da ciência moderna. As lésbicas foram classificadas pelos juristas como criminosas. Afinal, é uma “aberração da natureza” não se curvar diante do altar do Santo Pênis. Por isso, o patriarca criou o estupro corretivo, já que o problema era que as lesbianas nunca foram “comidas” por um macho de verdade. O destino das lésbicas seria o estupro seguido do encarceramento na cadeia ou no hospício.

As mulheres trans ainda são acusadas de serem foragidas da masculinidade, da virilidade e, portanto, da supremacia masculinista, por conta disso são relegadas a toda sorte de discriminação, violência e perseguição. A transfobia é um desafio a ser enfrentado no Brasil, um dos países que mais mata e violenta as pessoas transexuais e travestis.

A imagem é bem clara, mas já que o desenho não foi compreendido pelas pessoas que defendem o Santo Pênis, pergunto: o pênis, simbolicamente, não é uma arma de guerra? Não é com ele que os homens estupram crianças, mulheres, pessoas não humanas (termo criado por Barbara Smuts)? Explico um pouco mais: o pênis como arma de guerra é uma metáfora que indica os usos para todos os tipos de violação aos corpos vulneráveis. Falo aqui do pênis e não do dildo ou dos similares criados pela indústria do sexo ou pela indústria médica.

A exploração patricapitalista da indústria médica e farmacoquímica das barrigas de aluguel, que rendem bilhões é outra criação do patriarca para serem os donos das crianças que foram geradas nos úteros. Teriam úteros e vaginas as pessoas que lucram nestes vários mercados de carnes e de corpos? No livro da escritora mexicana Patrícia Karina Vergara Sánchez Siwapajti (Medicina de mulher): Memória e teoria de mulheres, lançado no Brasil pela Editora Luas, a autora aborda a questão. A medicina viu nos corpos com útero mais um mercado fértil e transformou o processo de gestação em um negócio lucrativo, que rende milhões aos doutores e empresários.

O serviço doméstico não remunerado ainda é uma realidade para a massa das mulheres com útero e vagina. A diferença de salários entre homens e mulheres ainda é discrepante, muito embora a luta feminista anarquista, libertária, marxista, sufragista tenha começado a denunciar a desigualdade entre homens e mulheres no século XIX. Explico: não se usava o termo gênero naquele momento histórico.

Os postos de decisão, os cargos políticos, no judiciário e nas várias instituições ainda são ocupados majoritariamente por homens cis. Esses corpos cis com pênis, ao serem quem comanda a política, a polícia e o judiciário, aceitam com naturalidade que os corpos matáveis sejam, majoritariamente, os das mulheres – cis, trans, negras e indígenas no Brasil.

Os ataques aéreos, realizados pelas pessoas do agronegócio, que jogam veneno nas aldeias indígenas, nos povos quilombolas e ribeirinhos, são realizados por mulheres pilotando os aviões? Quem realiza às queimadas criminosas, o desmatamento das florestas brasileiras? De quem são as megafazendas que estão invadindo outras terras para ampliar seu capital? Muitas mortes estão sendo invisibilizadas nesse discurso antifeminista de luta pelo pênis. Não foi o Francis Bacon quem disse que a natureza e as mulheres deveriam ser dominadas, exploradas e torturadas? A modernidade foi construída reproduzindo o discurso de que as mulheres, as pessoas não europeias, não brancas e a natureza são selvagens que seriam controladas à luz da racionalidade do homem cis, branco, da elite.

Após a Revolução Francesa, em 1789, a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão era uma forma de garantir direitos aos homens brancos europeus heterossexuais. Pessoas não brancas e que não nasciam com pênis não eram consideradas cidadãs dignas de terem direitos. Foi por entender que as mulheres deveriam ter direitos e serem consideradas cidadãs que Marie Gouze escreveu A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. A ousadia custou-lhe a vida, ela foi guilhotinada na praça da Concórdia, em Paris, no dia 3 de novembro de 1793. Mesmo usando o pseudônimo de Olympe de Gouges, ela não escapou ao destino de nascer em um corpo matável.

A palavra feminicídio foi uma longa batalha feminista para ser dicionarizada no mundo à fora e, mais ainda, no Brasil. Para ser contemplada pela legislação e o assassinato ser classificado como feminicídio, ainda estamos na luta, pois não basta a lei estar escrita se não for efetivada. Os números apontam o aumento de mortes, mas poucas vezes o crime é classificado como feminicídio.

Quando uma mulher cis estuprada é humilhada pelos doutores diante do tribunal e os criminosos são blindados por pertencerem a famílias de classe privilegiada e de pele branca e são transformados em vítimas, todas as pessoas que nasceram com útero e vagina são reafirmadas como corpos estupráveis. Muitos ainda insistem em dizer que homem cis equivale à humanidade. E assim, a voz das mulheres segue silenciada.

Quem criou a teoria queer foi uma feminista norte-americana. Teresa de Lauretis, nos anos 1990, ampliou o campo da Epistemologia Feminista para explicar o estranhamento e o impacto causado pela multiplicação de gênero favorecida pelos movimentos sociais na segunda década do século XX. Feministas como Oyèrónke Oyěwùmí e María Lugones escrevem que o binarismo de gênero é uma construção moderna criada para justificar o controle sobre os corpos das mulheres. Em algumas comunidades no continente Africano e em algumas tribos indígenas no continente Americano, havia outros gêneros para além daqueles criados pelo homem heterossexual, branco e europeu antes das invasões dos colonizadores. Eles aqui vieram com a missão de roubar terras, dizimar povos, e, como consequência, estupravam e escravizaram as mulheres cis não europeias que aqui viviam e as que foram sequestradas da África.

Estamos com a possibilidade de vivenciar a Terceira Guerra Mundial. As experiências do fascismo, do nazismo, do franquismo, das ditaduras impostas na América Latina não foram suficientes. Os donos do poder, os magnatas da indústria bélica querem mais sangue para aumentar o lucro. Mas, o perigo somos nós, as feministas. Novamente somos o alvo e os nossos discursos continuam sendo distorcidos para justificar o antifeminismo, a misoginia e a continuidade da exploração de nossos corpos.

Em tempos de guerra, mirar na cabeça das mulheres, que se orgulham e aprenderam a amar seus corpos, é mais uma violência. Sou uma feminista pacifista ecovegana, me tornei vegana por empatia às outras espécies, sou contra todo o tipo de violência, seja ela física, psicológica, moral, patrimonial, sexual. Portanto, nesta pequena reflexão sobre a imagem, quero dizer que a vagina e o útero nos permitiram estarmos aqui, independente do gênero, etnia ou classe social.

O pênis, no patricapitalismo, é usado como arma de guerra, tendo em vista que a indústria bélica e farmacoquímica foi uma invenção moderna, mesma época em que criaram o binarismo de gênero, hierarquizaram os gêneros, em masculino racional versus feminino sentimental. Todos os outros gêneros foram classificados como aberração. Esta foi uma invenção da ciência feita pelo homem heretossexual, branco, burguês e europeu. A epistemologia feminista se empenhou, desde o fim do século XIX e início do XX, na elaboração de uma crítica ao modelo científico moderno, comprometido com o capitalismo e com o industrialismo. As feministas criaram os Estudos de Gênero e a Teoria Queer para explicar que somos uma multidão complexa e não binária, a questão política deve ser sempre pensada na interseccionalidade de gênero, etnia-raça, classe e espécie.

Não foram as mulheres cis e trans que inventaram a pólvora, a bomba atômica, armas químicas, o canhão, os caças de guerra! Não foram mulheres que jogaram duas bombas atômicas no Japão! Não são as mulheres que lideram o ranking de estupros de crianças, de mulheres, de pessoas não humanas! Não são as mulheres que lideram o ranking do extermínio de mulheres (feminicídio), o extermínio de pessoas não brancas (racismo), o extermínio de pessoas LGBTI+!

Já tivemos duas Guerras Mundiais, duas pandemias, estamos vivendo o problema climático e vendo ele se agravar sobre os nossos lombos marcados pelo chicote do opressor. Mas, como dizia Paulo Freire, “o sonho do oprimido é virar opressor”. No altar do Santo Pênis, as armas de destruição em massa estão novamente nas telinhas, nas telonas e nas redes sociais para divertir as mentes sádicas e doutrinadas para se contentarem em confundir conhecimento com informação.

Enquanto isso, a indústria bélica e a indústria farmacoquímica avançam sem parar, dizimando as florestas na África, na América Latina, na Ásia, promovendo guerras e extermínios em massa para que a elite empresarial gere mais lucro para os poucos bilionários. Eles sobrevoam alegremente em suas naves, almejando a invasão de outros planetas para esgotarem outras fontes naturais e transformarem em royalties. Eles se escondem, covardemente, nas costas de sua guarda pretoriana contemporânea vestida de robocop-militar ou se acovardam escondidos em seus bunkers particulares.

Sou pacifista e não me curvo ao altar bélico do Santo Pênis! Como ecofeminista, luto para a cura planetária, independente da etnia-raça, classe, gênero ou espécie, sou contra o extermínio de pessoas promovido pelos homens brancos, cis, privilegiados. Pachamama está em chamas, queimando, fruto da ganancia promovida pelo patricapitalismo. Deveríamos nos preocupar coletivamente e trabalhar pelas soluções e redução dos danos da “emergência climática”, termo adotado desde 2019, inspirado nas proposições de Greta Thunberg.

A imagem não foi criada para atacar ninguém, pelo contrário, expõe um dos problemas da binarização de gênero, que é a guerra, a venda de armas a serviço dos narcogovernos, das disputas de territórios promovidas, majoritariamente, pelos homens cis. Não sou defensora do patriotismo e nem abordo aqui qual dos lados está certo ou errado, minha pátria é o Universo, assim aprendi com Maria Lacerda de Moura e com o anarquismo pacifista. Como a Epistemologia Feminista colaborou para a luta LGBTI+, para a criação das Teorias de Gênero e Queer e para a crítica da invenção moderna da divisão social binarizada, mas isso não bastou, as mulheres seguem sendo o alvo, mesmo diante da ameaça de uma Terceira Guerra Mundial. Por tudo isso, decido que a partir de hoje a minha identidade de gênero é feminista.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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