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O Estrangulador de Boston

11 de outubro de 2023 Posted by admin In Colunas

O Estrangulador de Boston

O true crime é um gênero em ascensão na cultura pop. Embora os seus primeiros registros sejam datados da Grã-Bretanha de 1550, as obras têm conquistado espaço em diferentes tipos de mídia nas últimas décadas. Parte do interesse vem do fato de que elas se baseiam em evidências dos crimes, contam com depoimentos de pessoas envolvidas na investigação e, quando possível, com a transcrição dos julgamentos. Dessa forma, as análises são pautadas no material coletado pelos autores e não em impressões, o que contribui para diferenciar o true crime das produções baseadas em fatos reais, nas quais existe margem para interpretação.

Em geral, narrativas têm como ponto de partida um crime que ganhou notoriedade e é comum que elas tenham sido repercutidas pela mídia. Contudo, nem sempre a abordagem é feita de modo responsável porque existe a preocupação com o espetáculo, o que contribui para aumentar a audiência. Infelizmente, nós vivemos em um país que oferece diversos exemplos deste tipo de tratamento mórbido. Talvez, o maior deles seja o caso de Eloá Cristina, visto que a apresentadora Sônia Abrão chegou a falar ao vivo com Lindemberg Alves, o sequestrador que mantinha a sua ex-namorada e uma amiga dela em cárcere privado.

Se saímos do Brasil, a morbidez permanece. Um caso popular é o de Charles Manson, que fundou um culto ao redor da sua figura em meados da década de 1960. A seita, conhecida como Família Manson, atuava na Califórnia e foi responsável pelo assassinato da atriz Sharon Tate, bem como o de outras oito pessoas. Apesar disso, os produtos jornalísticos da época passavam a impressão de glorificar a figura de Manson, tratando a organização da seita e o seu poder de persuasão como características admiráveis. Além disso, boa parte dos conteúdos ignorava porque Charles Manson coopta majoritariamente jovens do sexo feminino com problemas familiares. Não é preciso fazer muito esforço para entender os impactos de uma figura que prometia acolhimento para garotas fragilizadas, especialmente uma que se colocava na posição de messias.

Quando olhamos para as sutilezas de casos como esses, é possível começar a entender um pouco do fascínio que o true crime desperta no público feminino. Esse interesse tem sido alvo de estudos, como o da Civic Science, uma plataforma que analisa hábitos de consumo. De acordo com o levantamento, 18% dos entrevistados têm o true crime como gênero favorito no formato de podcast. O apelo é maior entre membros da Geração Z e passa por uma queda conforme a idade dos ouvintes aumenta, girando em torno de 9% na audiência com mais de 55 anos. Além disso, o estudo revela que o true crime tem mais adesão entre as mulheres: 26% das entrevistadas têm preferência por conteúdo desse estilo. Isso vai de encontro a uma matéria veiculada pelo O Globo a respeito da ascensão do gênero no Brasil. Nessa reportagem, as hosts do Modus Operandi, um podcast com milhões de ouvintes, contaram que 75% do seu público é composto por pessoas do sexo feminino. Seguindo a mesma linha, Rachel Fairburn, do All Killa No Filla, revelou à BBC que entre 80% e 85% dos seus ouvintes são mulheres.

Ambas as matérias servem para ilustrar aspectos interessantes a respeito da presença feminina no true crime e a da BBC cita cinco possíveis motivos pelos quais as mulheres gostam do gênero: medo, compaixão, fascínio pelas motivações, mistérios para solucionar e escapismo. Entre eles, o último se mostra intrigante, mas também tem uma explicação. Durante a pandemia, o Google Trends divulgou que o número de buscas da palavra “terror” triplicou, deixando claro o crescimento do gênero, que é bastante próximo do true crime. Assim, vários sites se interessaram por investigar o que motivou esse cenário e as respostas indicavam que as narrativas funcionavam como um meio de fugir de um contexto que era ainda mais assustador, uma lógica que também pode ser aplicada ao true crime.

Também é interessante comentar a respeito da compaixão, que se parece mais com empatia quando olhada com atenção. Em casos como o de Ted Bundy e Gary Ridgway (ou Green River Killer), as vítimas são do sexo feminino. Logo, as mulheres acabam se colocando no lugar delas com maior facilidade, o que também serve para ilustrar porque o medo é um incentivador do consumo de true crime: se eu posso me tornar uma vítima, é melhor saber reconhecer os sinais do que ser surpreendida. Embora esse senso de segurança seja ilusório, ele torna as mulheres mais vigilantes. Todavia, essas motivações ainda são insuficientes para explicar totalmente o interesse feminino pelo true crime, tanto do ponto de vista da produção quanto do consumo e a matéria do O Globo serve para amarrar algumas pontas soltas.

Para Carol Moreira, uma das apresentadoras do Modus Operandi, quando mulheres produzem conteúdo do gênero existe maior predisposição para compreender as vítimas sem julgá-las. De encontro a isso, a escritora Luiza Lusvarghi comenta a respeito da tendência do true crime ao sensacionalismo, algo minimizado em títulos com assinatura feminina, em especial no que se refere à exploração dos sentimentos, o que pode ser ilustrado pela série Dhamer: Um Canibal Americano. Categorizada pelas famílias das vítimas como imprudente e cruel, ela chegou a colocar em tela uma  cena na qual os atores repetem, palavra por palavra, os depoimentos do julgamento de Jeffrey Dahmer, inclusive o da irmã de um dos jovens mortos pelo serial killer. Além das famílias, a jornalista Anne E. Schwartz, que cobriu o caso em 1991, afirmou que o programa troca a  precisão pela dramaticidade e é pouco fiel aos detalhes do caso que aborda. Curiosamente, essa produção é a segunda série mais vista da Netflix, com mais de 700 milhões de horas assistidas, o que revela um apreço do público geral pela espetacularização de tragédias.

Considerando esses pontos, é possível concluir que grande parte das mulheres que ocupa um espaço na produção de conteúdo de true crime o faz por acreditar que é possível respeitar as vítimas e se ater aos fatos, deixando de lado a necessidade de inflamar o público para conseguir engajamento. E se olharmos para os números conquistados por essas produtoras, essa visão está correta. Em 2019, 11 dos 20 podcasts mais ouvidos do iTunes eram classificados como true crime e sete deles tinham apresentação feminina.

Somado a essa mudança de perspectiva, existe um componente histórico relevante. Para a escritora Patrícia Hargreaves, se não olharmos para o passado dos crimes, a tendência é que sigamos cometendo os mesmos erros. Para ilustrar, ela citou o exemplo de Ângela Diniz, uma socialite morta pelo namorado na década de 1970. Embora o caso não deixasse margem para dúvida quanto à autoria, a defesa de Doca Street aproveitou uma ideia vigente desde o Império para conseguir fazer com que o caráter da vítima fosse julgado ao invés do assassino: o crime passional em legítima defesa da honra, algo. Ainda que o Código Penal não permita mais esse tipo de abordagem, Hargreaves ressaltou que a sociedade ainda enxerga a traição como motivo plausível para o feminicídio. Ou seja, a legislação pode ter mudado, mas a mentalidade permanece a mesma.

Então, é possível afirmar que as narrativas de true crime criadas e consumidas por mulheres são muito mais sobre a sociedade e sobre todos os fatores que possibilitaram a ocorrência dos crimes. Elas são extremamente humanas e fundamentais para a memória coletiva, extrapolando bastante a abordagem padrão da mídia e se distanciando do culto à figura do assassino. Nesse sentido, um exemplo recente que merece destaque é o filme O Estrangulador de Boston (Boston Strangler, 2023), que, apesar de não ser assinado por uma diretora, é conduzido de uma forma que nos faz pensar a respeito desses novos caminhos que o gênero tem seguido depois de se tornar um território feminino.

O primeiro ponto que contribui para isso é a escolha do diretor Matt Ruskin de deixar de lado Albert DeSalvo (David Dastmalchian), o serial killer que matou mais de dez mulheres em Boston entre 1962 e 1964. Ele não recebe mais do que vinte minutos de tela, o suficiente para que a sua identidade seja revelada, bem como alguns fatos inquietantes sobre a sua confissão. Entretanto, DeSalvo não tem maior aprofundamento. Para o diretor, as figuras centrais da história são Loretta McLaughlin (Keira Knightley) e Jean Cole (Carrie Coon), as repórteres que se dedicaram à cobertura do caso. Antes mesmo que a polícia entendesse que os três primeiros crimes do Estrangulador estavam conectados, Loretta foi a responsável por identificar um padrão e apurar os fatos, que posteriormente foram divulgados no jornal Boston Record America. Porém, ainda que a repórter tenha seguido todos os passos necessários para conseguir a sua confirmação, a polícia se recusou a aceitar a teoria por um tempo, o que acabou custando mais vidas.

Assim, a perspectiva feminina serve para expor as diversas camadas de misoginia da sociedade do contexto. Isso começa pela própria redação do jornal, que mantém Loretta confinada na seção de estilo de vida mesmo que ela tenha potencial para mais. As tarefas mais complexas, quase sempre ligadas a casos criminais, são destinadas aos homens, que não parecem interessados em desafiar as normas ou incomodar as autoridades para checar os fatos. Eles estão confortáveis com respostas vagas em nome de uma espécie de camaradagem, ainda que o trabalho de um jornalista seja questionar e incomodar para chegar à verdade. Isso se torna ainda mais claro quando um policial de alto cargo vai até o Boston Record para falar com Jack Maclaine (Chris Cooper), o chefe de Loretta, e afirma que foi um golpe baixo enviar um “rabo de saia” para falar com o detetive que esteve na cena do terceiro crime. Durante esse diálogo, ele também afirma que Jack não poderia ter publicado a reportagem, uma vez que as informações foram fornecidas somente porque o oficial acreditou que conseguiria obter favores sexuais de Loretta.

Embora o machismo seja mais evidente quando pensamos na personagem de Keira Knightley, ele também afeta Jean. Ainda que ela consiga trabalhar com investigações criminais, não está mais perto do que a colega de redação de ter o respeito dos seus pares. Conforme O Estrangulador de Boston avança, conseguimos perceber que boa parte dos jornalistas acredita que Jean somente trabalha nesses casos por causa da sua aparência. A diferença entre as duas repórteres está no fato de que Jean ocupa essa posição há mais tempo e, portanto, sabe lidar com esse tipo de insinuação e com os impactos da carreira na sua vida pessoal, algo que Loretta ainda está aprendendo a administrar. Em um primeiro momento, James (Morgan Spector), o marido da personagem, apoia o seu trabalho no jornal, mas isso muda a partir do ponto em que Loretta começa a ganhar relevância com a investigação do Estrangulador. Uma vez que a foto dela aparece no Boston Record, as coisas tomam um rumo diferente, e ela passa a ser alvo de cobranças que antes não existiam, um cenário potencializado pelo crescimento do caso e do sensacionalismo midiático ao seu redor.

Todos os jornais da região queriam uma fatia das vendas geradas pelo serial killer. Porém, nem sempre havia preocupação em apurar os fatos, e diversas reportagens baseadas em boatos foram veiculadas, espalhando o pânico pelas ruas de Boston. Isso serve para confirmar que o sensacionalismo é uma parte intrínseca do true crime há muito tempo, mas também para ilustrar como as vítimas muitas vezes são ignoradas na cobertura de casos dessa natureza. De um lado, tem-se uma imprensa preocupada em vender jornais às custas da tragédia. Do outro, uma polícia que deseja livrar a própria pele e escapar do tribunal da opinião pública. Porém, ninguém parece se importar em obter justiça para as mulheres que foram mortas pelo Estrangulador. Mesmo a ideia de prendê-lo tem pouco a ver com elas e muito mais com punitivismo, com aplacar a sede de sangue da comunidade e da própria polícia, ridicularizada algumas vezes ao longo da investigação.

Assim, as cenas em que vemos Lorretta e Jean conversando com as famílias das vítimas parecem caminhar na contramão do que produções pautadas em investigações criminais normalmente fazem. Nesses diálogos, percebemos que as jornalistas têm mais interesse em oferecer alento e justiça do que em receber algum tipo de gratificação pelo seu trabalho. A sua principal motivação é manter as mulheres de Boston seguras, visto que a falta de um padrão nas escolhas de vítimas do Estrangulador serve para revelar que qualquer uma pode ser o próximo alvo, independente de idade, raça ou outros marcadores que serviriam para criar uma separação. Dessa forma, nasce um senso de coletividade e a certeza, infelizmente atual, de que as mulheres só têm umas às outras quando enfrentam um mal que toca somente o sexo feminino.

Nesse ponto, é importante tomar um pouco de distância do filme para falar a respeito de como ele foi recebido por alguns veículos de imprensa. Avaliado com 2 de 5 estrelas do The Guardian, O Estrangulador de Boston foi descrito como sem emoção dramática e tensão. O texto do jornal também afirma que diretores como Jonathan Demme ou David Fincher poderiam ter feito um trabalho melhor com este material, mas Matt Ruskin prefere se manter “do lado certo do gosto contemporâneo”. É desnecessário dizer que a crítica foi escrita por um homem, Peter Bradshaw, dada a incompreensão das ideias apresentadas e dos motivos para essa “frieza”. Além disso, somente um homem poderia acreditar que não existe tensão suficiente em ver duas mulheres enfrentando praticamente sozinhas um serial killer. E apenas um homem seria capaz de afirmar que O Estrangulador de Boston não tem elementos capazes de despertar “calafrios de medo”.

Isso porque o crítico falha em perceber que o horror do longa reside em elementos muito mais sutis do que a tradicional exploração das mortes e da figura do assassino. Conforme Loretta e Jean investigam o caso do Estrangulador, elas se deparam com diversas possibilidades de criminosos além de Albert DeSalvo. Inclusive, ainda que ele tenha confessado a autoria, alguns crimes simplesmente não poderiam ter sido cometidos por ele, que estava preso quando eles ocorreram. Assim, O Estrangulador de Boston trabalha com a ideia de que o serial killer não é uma pessoa, mas uma mentalidade misógina, algo que permanece atual quando consideramos que mais de 50 anos se passaram desde esse caso e nós convivemos com a existência de incels, red pills e outros grupos que incentivam o ódio às mulheres. Para qualquer pessoa do sexo feminino, essa ideia por si só é aterrorizante. Porém, um cinema que explora a possibilidade de que mulheres vítimas de crimes sejam tratadas com respeito ainda é algo incômodo para muitos homens.

Em partes, isso acontece porque a ideia de que filmes devem servir exclusivamente como entretenimento é muito presente na sociedade. E o interesse de alguns grupos pelo true crime, como sugeriu a BBC, está ligado à solução dos mistérios. Portanto, os elementos que despertam a curiosidade são fundamentais para uma parcela do público. Assim, quando o foco é um novo olhar sobre o gênero, especialmente um olhar centralizado em mulheres, o incômodo masculino surge porque, junto com a nova perspectiva, vem a ideia de que transformar as mortes em espetáculo visual é desrespeitoso. Logo, escolher um caminho que se desviar do sensacionalismo e traz outras possibilidades de abordagem para um caso já extensivamente explorado é algo que rende uma recepção, no mínimo, ambígua. Porém, essa reação é algo que serve para ilustrar porque as mulheres precisam continuar tomando os seus espaços nesse tipo de discussão e produção de conteúdo. Como O Estrangulador de Boston mostra com eficiência, é somente quando nós contamos as nossas próprias histórias que passamos a ser vistas como mais do que corpos violados nas tramas criadas pelo patriarcado.

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Amanda Guimarães – Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), atua há mais de 10 anos como corretora de textos e redatora e escreve sobre cultura em vários sites pela internet afora desde 2012. Obcecada por cinema de horror, gatos e música dos anos 90, curte viajar para festivais e ficar em casa rodeada de suas gatas.