+55 31 9 8904-6028

Monthly Archives: junho 2022

Quem foi Nise da Silveira?

Quem foi Nise da Silveira?

 

O mês de junho da Coluna Pachamama será dedicado à médica Nise da Silveira, cujo reconhecimento internacional não bastou para que o atual presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, aceitasse a homenagem que seria prestada a ela. A médica foi indicada para constar no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria de 2022. Segundo o governante, seu veto foi devido ao fato de não haver um “registro dos feitos da médica”.

A médica não será homenageada, já o ex-policial, Adriano Magalhães da Nóbrega, ainda que seja um dos suspeitos no envolvimento do assassinato da vereadora Marielle Franco, recebeu uma moção de louvor, em 2003, e a Medalha Tiradentes, em 2005, por indicação de Flávio Bolsonaro. Adriano foi apontado como chefe de milícia no Rio das Pedras e acusado de liderar o Escritório do Crime. Ele foi executado em fevereiro de 2020 em um sítio na cidade de Esplanada, distante 170 km de Salvador. Foi morto em uma ação conjunta da Polícia Militar da Bahia e do setor de inteligência da Polícia Civil do Rio de Janeiro. O Brasil de Bolsonaro é um país onde criminosos recebem homenagens e lideranças políticas são apagadas dos registros históricos.

Então, quem foi Nise da Silveira? Nise nasceu em Maceió, estado de Alagoas, em 1905, filha da pianista Maria Lídia da Silveira e do matemático, jornalista e educador Faustino Magalhães da Silveira. Ainda na infância, ela foi matriculada no Colégio Santíssimo Sacramento, tradicional escola de freiras para meninas. Aos 16 anos, ingressou na Faculdade de Medicina, em Salvador, Bahia, local em que foi a única mulher de sua turma em meio aos 157 colegas homens. Entre 1921 e 1926, Nise cursou medicina e foi uma das primeiras mulheres a exercer a profissão no Brasil. Sua tese defendida ao final do curso, Ensaio sobre a criminalidade da mulher no Brasil (1926), buscava traçar um perfil das mulheres que cometiam crimes, assim fazendo emergir temas ainda vistos como tabu, tais como prostituição e aborto.

Sua experiência com o autoritarismo e a crueldade dos homens das ciências médicas foi relatada por ela em ocasião de uma aula prática, quando ainda era uma jovem estudante de medicina, que ela considerou seu primeiro encontro com “o mal”. O fato aconteceu durante uma aula de parasitologia no primeiro ano de medicina. O então famoso professor Pirajá da Silva, ao entrar na sala de aula lotada, lançou a ideia de criação de um serpentário na faculdade e pediu a colaboração de toda a turma, e, ao receber seu assistente trazendo um recipiente de vidro com uma serpente, retirou-a e pediu para a jovem Nise da Silveira segurá-la, garantindo que não era uma cobra venenosa. Ao segurar a serpente e encarar o autoritário professor, ela criou um novo elo entre sua capacidade de aprendizagem e as limitações das ciências médicas tradicionalistas e misóginas. Ocasião, dentre outras, que fortaleceu seu caráter e a fez romper as barreiras de acesso às mulheres tornando-se a psiquiatra mais conceituada no tratamento humanizado de transtornos mentais do Brasil no século XX. 

Nise casou com o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira, não tiveram filhos e viveram juntos até o falecimento dele em 1986. Em 1927 morreu o pai de Nise, sua mãe já havia falecido e, naquele ano, junto com seu marido, mudou-se para o Rio de Janeiro para atuarem no campo da medicina. Lá, em 1933, passou em um concurso público para o Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, iniciando assim o trabalho que a tornaria um exemplo de mudança na forma invasiva e autoritária de tratamento psiquiátrico adotado na época. Por discordar dos métodos praticados nas enfermarias e se recusar a aplicar eletrochoques em pacientes, Nise foi transferida para o cargo de “terapeuta ocupacional”, atividade então menosprezada pelos médicos.

No Rio de Janeiro, ela escreveu sobre medicina no jornal A Manhã, realizou estágio na clínica do Doutor Austregésilo, considerado precursor da neurologia no Brasil, e atuou no Hospital da Praia Vermelha. Entre os anos de 1928 e 1935, envolveu-se nas atividades da Liga Anti-Imperialista do Brasil, do Comitê Feminino Contra a Guerra, em Defesa da Paz Universal, da Cultura e da Humanidade e da União Feminina do Brasil.

Nise revolucionou o ambiente hostil e torturante dos centros psiquiátricos através da terapia assistida por animais e da arte como elemento terapêutico e preferia chamar as pessoas que atendia de “clientes” ao invés de “pacientes”. A psiquiatra se destacou em seus estudos sobre o comportamento humano e o tratamento de patologias psicológicas influenciados pelas ideias de Carl Gustav Jung (1875-1961) e pelo conceito de imaginação criadora de Gaston Bachelard (1884-1962). Revolucionou a maneira de tratar os portadores de sofrimento mental utilizando técnicas artísticas como pintura, escultura e desenho. A obra de Nise da Silveira foi marcada pelo debate sobre os laços afetivos entre pessoas e animais – por ela nomeados “animais não humanos”. Foi pioneira nas práticas de adotar as relações emocionais entre clientes e animais não humanos como parte do tratamento e foi forte opositora dos tratamentos tradicionais usados naquele período: eletrochoque, drogas, que ela nomeava de “camisa de força química”, e o confinamento clínico.

Nas décadas de 1950 e 1960, Nise investiu nas relações afetivas entre os animais não humanos e os/as clientes internos para criar um elo de comunicação que havia sido rompido graças aos modelos tradicionais. Ela percebeu a facilidade com que os/as esquizofrênicos/as se vinculavam aos cães. Em seu trabalho, desenvolveu o conceito de “afeto catalisador”. Ela partiu da ideia de que é importante que o paciente conte com a presença não invasiva de co-terapeuta (o animal não humano) que irá permanecer com o/a cliente e funcionará como um apoio seguro a partir do qual ele possa se organizar psiquicamente. Após ilustrar exemplos de co-terapeutas, Nise afirmou que os animais são excelentes catalisadores, pois reúnem qualidades que os fazem muito aptos a tornarem-se ponto de referência estável no mundo externo, facilitando a retomada de contato com a realidade.

A aproximação dos internos com os animais não humanos do Centro Psiquiátrico Pedro II começou por acaso quando foi encontrada uma cadelinha abandonada e faminta no terreno do hospital. Nise pegou-a, e, percebendo a atenção de um dos internos, perguntou-lhe se gostaria de tomar conta do bichinho “com muito cuidado”. Diante da resposta afirmativa, deu o nome à cachorrinha de Caralâmpia (inspirada em uma personagem do livro A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos).

Em 1952, no Rio de Janeiro, Nise fundou o Museu do Inconsciente, um centro de estudo e pesquisa, criado para abrigar o acervo de obras e a preservação dos trabalhos produzidos nos ateliês inaugurados no Centro Psiquiátrico Pedro II, valorizando-os como documentos que abriram novas possibilidades para uma compreensão mais profunda do universo interior do/a esquizofrênico/a. Dentre os artistas-clientes que criaram obras incorporadas na coleção da instituição, estão: Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Emygdio de Barros e Octávio Inácio. O acervo alimentou a escrita de seu livro Imagens do Inconsciente, bem como de filmes e exposições, como a Mostra Brasil 500 anos. O trabalho foi reunido no Museu de Imagens do Inconsciente que ganhou projeção internacional. Alguns dos quadros foram levados para o II Congresso Internacional de Psiquiatria, em 1957, na cidade suíça de Zurique. A exposição foi inaugurada pelo próprio Carl Gustav Jung, um dos maiores nomes no estudo da psique humana, que, na ocasião, encontrou a Nise.

Entre 1983 e 1985, o cineasta Leon Hirszman realizou o filme Imagens do Inconsciente, trilogia mostrando as obras realizadas pelos internos a partir de um roteiro criado por Nise da Silveira. Depois, foram feitos muitos outros filmes documentários e biográficos. Em 2016, foi lançado o longa metragem intitulado Nise: o coração da loucura, dirigido por Roberto Berliner. O filme destacou o período que Nise atuou no Hospital Psiquiátrico e foi resultado de 13 anos de pesquisa. No mesmo ano, o espetáculo Nise da Silveira: Guerreira da Paz narrou o encontro da médica alagoana e a obra de Carl Jung. A peça foi dirigida e interpretada por Daniel Lobo com a coreografia da renomada bailarina Ana Botafogo e ficou em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (MASP) durante uma temporada de grande sucesso.

Nise viveu em uma época de acirramento da política totalitária no Brasil e, por isso, foi presa por mais de um ano, denunciada por manter, em sua biblioteca, livros considerados subversivos. No presídio, conviveu com o escritor Graciliano Ramos, que narrou essa amizade em seu livro Memórias do Cárcere. Nise da Silveira foi presa pela primeira vez dia 20 de fevereiro de 1936, mas logo em seguida foi liberada. No dia 26 de março de 1936, foi novamente encarcerada no presídio da rua Frei Caneca na cidade do Rio de Janeiro. Foi liberada só no ano seguinte, no dia 21 de junho de 1937. O caso foi relatado no livro Sala 4: primeira prisão política feminina, que registra o encontro das “irmãs de cela”: Olga Benário, Maria Werneck, Beatriz Ryff e Valentina Leite. Em 1944, Nise foi reintegrada ao serviço público e iniciou seu trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, onde retomou a sua luta contra as técnicas psiquiátricas que considerava agressivas e cruéis aos pacientes.

Em 2017, seu arquivo pessoal foi considerado Memória do Mundo pela UNESCO. O Centro Psiquiátrico Nacional do Rio de Janeiro recebeu em sua homenagem o nome de Instituto Municipal Nise da Silveira. Em 2015, foi incluída na lista das “Grandes mulheres que marcaram a história do Rio de Janeiro”. Seu legado é gigante e longínquo, suas ideias inspiraram a criação de museus educativos, centros culturais e instituições terapêuticas, no Brasil e no exterior – Museu Bispo do Rosário (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil), Centro de Estudos Nise da Silveira (Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil), Espaço Nise da Silveira (Recife, Pernambuco, Brasil), Núcleo de Atividades Expressivas Nise da Silveira, no Hospital Psiquiátrico São Pedro (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil), Associação de Convivência, Estudo e Pesquisa Nise da Silveira (Salvador, Bahia, Brasil), Centro de Estudo das Imagens do Inconsciente, Universidade do Porto (Porto, Portugal), Association Nise da Silveira: Images de l’Incoscient (Paris, França) e Museo Attivo dele Forme Inconsapevoli (Genova, Itália) – posteriormente renomeado Museoattivo Claudio Costa.

Nestas linhas, procurei elencar alguns dos grandes feitos da médica Nise da Silveira, que, segundo o atual governante do Brasil, não possui méritos suficientes para ser homenageada. Considero que ser homenageada por um presidente que faz apologia ao crime organizado, à tortura e à distribuição de armas entre civis pode até mesmo ser negativo para a obra da autora, já reconhecida internacionalmente, como vimos.

Fontes:

Itaú Cultural. Ocupação Nise da Silveira, São Paulo, 2017. Disponível em: file:///C:/Users/Patricia/Desktop/ocupacao_nise_da_silveira.pdf. Acesso em: jun. 2022.

LESSA, Patrícia. “Nise da Silveira”. In: Diccionario biográfico de las izquierdas latinoamericanas. Argentina, 2021. Disponível em: http://diccionario.cedinci.org. Acesso em: jun. 2022.

Museu de Imagens do Inconsciente. Disponível em: http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/#chegando. Acesso: jun. 2022.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1953.

SOIHET, Rachel. Mulheres e biografias: significados para a História. In: Locus, Revista de História, v. 9, n.1. p. 33-48, 2004.

WERNECK, Maria. Sala 4: primeira prisão política feminina. Rio de Janeiro: Editora CESAC, 1988.

_____________________________________________________________________________________________________________________

Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

Posted by admin