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Driblando o preconceito

17 de agosto de 2023 Posted by admin In Colunas

Driblando o preconceito

O esporte é uma das instituições mais poderosas. Os clubes, as federações, confederações possuem um forte instrumento a seu favor: o marketing esportivo. Fortunas são movimentas no mundo, e sua estreita relação com o universo do ilícito é pouco comentado. No Brasil, o sonho em tornar-se um jogador de futebol da seleção é alimentado desde tenra idade nos meninos, graças ao marketing esportivo, de tempos em tempos são criados ídolos, independente de suas competências técnicas ou mesmo características morais. O importante é existir um ídolo, um símbolo onde se apegar para alimentar a crença de que o amanhã poderá ser melhor. Muitos destes grandes nomes do futebol brasileiro estiveram envolvidos em escândalos com drogas, pedofilia e estupro de vulneráveis.

O esporte de rendimento é uma das instituições onde o preconceito sexual é enraizado. Apesar do fanatismo nacionalista pelo futebol, quando podemos ter o privilégio de ver uma partida feminina dos clubes brasileiros? O futebol é um ótimo exemplo para fomentarmos uma discussão sobre as mulheres cisgênero nos esportes. Vale lembrar dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, quando a seleção feminina fez sua estreia. Foi um arraso, vitória após vitória, as atletas do Brasil conseguiram chegar à quarta colocação. Mesmo assim, fica a pergunta: o que aconteceu com aquelas jogadoras depois de uma estreia que as deixou perto das melhores do mundo? Suas histórias terminaram de um modo bem diferente daquela dos ídolos masculinos. Muitas nem sequer tiveram seus contratos refeitos nos clubes nacionais. A grande surpresa foi que clubes “famosos”, como Fluminense, Grêmio e Corinthians, seguiram as recomendações do projeto de Marketing do Saad (clube de futebol feminino de São Paulo), que dizia que, além de competência técnica, é necessário ter beleza para entrar em campo. Como o conceito de beleza para os homens (cis/hétero) é bastante questionável, podemos imaginar qual foi o destino das nossas craques lésbicas e de todas aquelas que fogem ao padrão heteronormativo.

Podemos dizer que isso faz parte de uma tradição de vigilância sobre o corpo e o comportamento das mulheres, de um imaginário coletivo no qual a passividade, o sacrifício, a submissão e a maternidade seriam dons privilegiados das mulheres. As duas primeiras publicações da Escola Militar de Educação Física (1930 e 1932) do Rio de Janeiro, sobre as mulheres na educação física, eram muito claras neste sentido: as mulheres têm a missão de fortalecimento nacional através da procriação, por isso não deveriam realizar atividade de força, pois as atividades físicas deveriam, sim, trabalhar a “bacia” e fazer a “correção das formas”, no popular, hoje, deixá-las “gostosas”. É interessante observar, por exemplo, que a dança (vista no senso comum como atividade feminina) era indicada com sérias restrições nestas publicações, pois poderia mobilizar “paixões, energia sexual, impulsos eróticos e a lascívia”.

Ignorância e preconceito à parte, as mulheres persistiram, mas veio a legislação. Em 1941, o Conselho Nacional de Desportos (CND) cria o decreto Lei 3.199, que no artigo nº 54 dizia que as mulheres não poderiam praticar esportes incompatíveis com sua natureza e, na deliberação 7, dizia que não seria permitida a prática de futebol, futsal, futebol de praia, pólo, halterofilismo, baseball e lutas de qualquer natureza. Essa aberração vigorou até 1975 e teve uma revisão insignificante em 1965, quando definiu o que poderia e o que não poderia ser jogado.

Enquanto isso, as escolas alemãs de educação física para Mulheres, em 1930, tinham o seguinte lema: “Uma garota para cada esporte e um esporte para cada garota”, elas já brigavam com as americanas que pregavam o jogo pelo jogo. Do outro lado do mundo, no Japão, em 1926, já se realizava a primeira Conferência da Kodokan (primeiro dojô, ginásio para prática de judô, inaugurado em 1882) de Judô Feminino. E, muito antes disso, as mulheres das famílias de samurais estudavam o Nagitana (luta com espada) e o Kyudo (arco e flecha), bem como mulheres que se desenvolveram na tradição do Jujitsu (no popular Jiu Jitsu). Podemos ainda tomar como exemplo Rusty Kanokogi, pioneira no judô feminino, cujo esforço se deve o primeiro campeonato Mundial de Judô para mulheres em Nova York, em 1980. Sua história marca as dificuldades pelas quais muitas mulheres atletas tiveram que superar. Em 1955, a muito custo, ela conseguiu entrar no dojô local e teve que treinar com 40 homens, muitos dos quais tombaram no tatame. Ela entrou para a história do judô, dentre muitos feitos, por participar de campeonatos contra homens e sair vitoriosa. Incansável, Kanokogi processou o Comite Olímpico do EUA e o USJudô Inc., por excluir as mulheres do Nacional Sports Festival em 1981, alegando discriminação sexual.

A questão é que os argumentos machistas sempre foram contraditórios, tentaram excluir as mulheres em função de uma suposta fragilidade física, intolerância à dor e dom da procriação, sem pensar que o próprio ato de parir envolve força, coragem e muita dor. Mas o importante é que as mulheres resistiram, tiveram seus nomes marcados nos momentos de maior alegria para quem realmente gosta de esportes, afinal quem não se lembra do quarteto que arrebentou corações, Marta, Paula, Janete e Hortência, esta que até recebeu o título de rainha do basquete? Em 1994, no Mundial de Basquete da Austrália, a seleção feminina nos proporcionou a alegria de vê-las desfilar em nossas cidades brasileiras carregando no peito uma medalha de ouro. Hortência, que com apenas 1,74 de altura, muita garra, tendo de 10 a 12 horas de treino diário, permaneceu imune aos podres jogos da instituição desportiva, de domínio, ainda, quase exclusivamente masculino.

Poderia ainda falar das Ligas e Federações de Juízes, da qual fiz parte e, como muitas companheiras, tive que trabalhar completamente só num universo dominado por homens, quando aos 20 anos de idade fui aprovada no concurso da Liga Pelotense de Futsal, em Pelotas R.S., assumindo a cadeira e o peso de estar entre as primeiras mulheres a ingressar nessa instituição. Como muitas companheiras, compartilho a ideia de que a distribuição de jogos, de categorias e de trabalho em campo é desigual, injusta e acarreta uma diferença salarial substancial. Assim é com o Comitê Olímpico Internacional, com os “grandes clubes”, com as Confederações.

Em 2010, realizei uma pesquisa documental na Biblioteca Nacional (BN) do Rio de Janeiro e encontrei matérias sobre os testes de sexo, realizados pelo Comite Olímpico Internacional. Eram testes obrigatórios para as mulheres poderem participar dos jogos e garantirem a sua “carteira rosa”, ou seja, a prova definitiva de que eram mulheres. Os testes começaram nos jogos de 1968 e se prolongaram por oito edições, até os anos 2000. Eram testes invasivos, nos quais uma comitiva de médicos, todos homens, vasculhavam e fotografaram as genitálias das atletas. Encontrei matérias que relatam que algumas fotos vazaram na imprensa e levaram muitas atletas a desistirem da carreira após tamanha humilhação pública. Um dos textos sobre a pesquisa pode ser encontrado na Revista de História da BN e também no meu site: https://patricialessa.com.br/artigos/.

Em 2023, tivemos, pela primeira vez no Brasil, a oportunidade de assistir em rede nacional a Copa do Mundo Feminina. O governo federal, pela primeira vez na história, decretou ponto facultativo nos dias que a seleção brasileira jogou. Foi algo inédito no Brasil, apesar de ser bem comum em muitos países, onde o machismo e o ódio às mulheres não são tão escancarados como nas terras brasileiras. Infelizmente, foi a última Copa do Mundo na qual a jogadora número 10, Marta, participou. Felizmente, para as mulheres, tivemos a honra de acompanhar uma carreira de glórias, de ética e de muita luta. Marta, mulher nordestina, lésbica, teve que sair do Brasil, hoje é atleta do Orlando Pride, nos Estados Unidos. No Brasil ainda é difícil para as mulheres viver do esporte, mesmo no futebol.

Mesmo com as barreiras impostas pela misoginia, Marta é recorde entre mulheres e homens, sendo eleita seis vezes a melhor do mundo, com 119 gols pela seleção brasileira. Número que a define como a maior goleadora entre mulheres e homens. Pelé fez 77 e vem logo depois. Além disso, ela ficou conhecida pela campanha contra as marcas de tênis. Ela cobre com uma fita a marca a fim de mostrar que a desigualdade no patrocínio entre mulheres e homens é imensa e, portanto, deve ser exposta publicamente.

Futebol, SK8, bodyboard, ciclismo, equitação, basquete, corrida, atletismo, halterofilismo, fisiculturismo, boxe, esgrima de espada e de sabre dentre muitos outros esportes, alguns deles até poucos anos “contraindicados” para o “sexo frágil”, são hoje praticados por mulheres que não se dobram às injustiças sociais e, com muitas dificuldades, falta de patrocínio, assédio moral e sexual dentre outras questões, levantam todos os dias com garra e força e transformam o mundo dos esportes de rendimento em um cenário renovado com a sua presença. No mês da visibilidade lésbica, vamos saudar as atletas, lesbianas ou não, que estão dando uma lição de força e resiliência dentro de um universo muitas vezes hostil.  

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.