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Conexões entre especismo e masculinidade cis tóxica

Conexões entre especismo e masculinidade cis tóxica

“Um touro currado na cruz” – desenho de Einsenstein presente no livro A farra do boi – Do sacrifício do touro na antiguidade à farra do boi catarinense, Nise da Silveira (coord.).

A Farra do Boi é uma prática que consiste em soltar o animal em local aberto, fazendo com que ele corra atrás dos homens que participam desta ação. O boi é torturado e agredido violentamente até ficar exausto, na maioria das vezes morre durante a tortura. Em alguns casos, os homens envolvidos sofrem acidentes graves. No Brasil, a prática é criminalizada. Mesmo assim, no período da Quaresma, ela é realizada clandestinamente.

É importante ressaltar que a maioria esmagadora dos envolvidos nestes eventos clandestinos são homens cis. A Farra do Boi passou a ser muito combatida a partir da década de 1980, quando entidades de proteção aos animais e a sociedade em geral iniciaram a realização de campanhas de conscientização. Por meio da mídia, a polêmica teve repercussão tanto nacional quanto internacional.

Em 2023, alguns grupos atuaram nas redes sociais acolhendo e encaminhando denúncias. O grupo do Instagram @brasilcontrafarra fez um comunicado público informando que todo ano em Santa Catarina os mesmos grupos e financiadores realizam a tortura no mesmo local, e, diante dos olhos indignados da população que é contra, denúncias são feitas, mas nada acontece. Deve haver muito dinheiro envolvido para que o poder público se silencie diante de tamanha brutalidade. Não por acaso, sabemos que o estado de Santa Catarina foi um dos que mais apoiou o neofascismo bolsonarista.

A ONG Anti-Defamation League (ADL) realizou um levantamento de dados em 2022 e concluiu que o Brasil é o país onde mais cresce o número de grupos de extrema direita, especialmente nos estados de Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Segundo o estudo realizado na Universidade de Campinas pela Dra. Adriana Dias, antropóloga, a maioria dos grupos atua em São Paulo. De acordo com os dados, havia no país mais de 530 grupos extremistas nos primeiros meses de 2022, demonstrando um avanço com relação a 2019 – quando foram identificados 334 grupos.

Mas, o que isso tem a ver com o especismo? Tudo! Existem muito estudos feministas que apontam a conexão das violências sexistas, racistas, classistas e especistas. Maria José Sales Padilha foi presidenta da Associação Amigos Defensores dos Animais e do Meio Ambiente (AADAMA), é formada em psicologia com Mestrado em Educação pela George State University (EUA). Ela estudou a relação da violência especista e sexista no livro Crueldade com animais x Violência doméstica contra mulheres: uma conexão real, publicado em 2011, em Recife, pela FASA.

Esse debate ganhou força internacional quando a UNESCO aprovou em 1978, em Paris, a Declaração Universal dos Direitos do Animal. Esse fato alavancou as discussões sobre o especismo, que significa uma discriminação baseada em espécies, envolve atribuir a animais sencientes diferentes valores e direitos baseados na sua espécie. De modo similar ao sexismo (discriminação baseada no gênero), a discriminação especista pressupõe que os interesses de um indivíduo são menos importantes pelo mero feito de se pertencer a uma determinada espécie. O livro é resultado de uma pesquisa realizada em Pernambuco, em 2010, que examinou as conexões entre a crueldade praticada contra animais e a violência doméstica contra as mulheres. O método de pesquisa incluiu a elaboração de um questionário que foi aplicado e dividido entre as Delegacias da Mulher de Jaboatão dos Guararapes e de Recife. Tais questionários continham nove perguntas sobre a agressão, incluiu a questão se a vítima possuía animais em casa e se houve agressões e quais os tipos de violência contra os animais.

Os percentuais mostraram que a maior parte das mulheres vítimas tem idade superior aos trinta anos e um nível de escolaridade razoável, o que indica que, nesta idade e com certo estudo, as mulheres já têm mais consciência de seus direitos. A escolaridade do agressor, assim como a da vítima, nos mostra que não importa o grau de educação escolar, que todas são passíveis de violência. Diz a autora: “[…] as mulheres estão mais conscientes de seus direitos e também, encorajadas pela Lei Maria da Penha, registram a violência cometida por seus agressores” (p. 42).

Já os números encontrados com relação à violência contra os animais parecem aumentar nas últimas décadas no Brasil, e os números apontam que os agressores, em sua maioria, são homens cis. Diz ela: “Dentre os diversos tipos de violência praticados contra os animais de companhia, principalmente contra cães no contexto familiar, a violência física é a que predomina e tem como principal agressor o mesmo homem que agride a mulher” (p. 48).

Em suas considerações finais, a autora nos diz que, em geral, as pessoas não enxergam que as agressões contra animais estão ligadas com as agressões contra humanos. Para Padilha, é necessária uma conscientização, com mais pesquisas e trabalhos na área educacional. O livro é claro e direto, apresenta os dados em gráficos e reforça a necessidade de estudos sobre o tema. Existe uma íntima ligação entre o paradigma humanista e a cultura patriarcal. Essa ligação manifesta-se na obsessão pela dominação e controle tanto sobre os corpos das mulheres quanto de outras espécies.

A libertação das outras espécies já era uma luta anarquista desde o século XIX e, hoje, com o veganismo e o antiespecismo está mais forte e se interseccionalizando às questões libertárias, com os debates sobre o sexismo, o classismo, o racismo, o etarismo, o especismo, dentre outros. Os séculos XX e XXI estão marcados pela luta vegana, ecofeminista e ecológica. Muitas e diferentes vozes se erguem pelas pessoas não humanas. Uma delas é a escritora polonesa Olga Tokarczuk, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura ao publicar o romance Sobre os ossos dos mortos (2009). Na obra ela escreveu: “Tristeza, senti uma grande tristeza, e um luto interminável por cada animal morto. Termina um luto e logo começa outro, então estou em constante luto. É meu estado natural. Me ajoelhei sobre a neve ensanguentada e acariciei a pelagem áspera, fria e rija do javali” (p. 98).

O romance gira em torno da caça de animais silvestres e nos surpreende pelo refinamento da linguagem e pela presença de um tom de mistério que nos deixa com vontade de lutar pelos animais ao lado da protagonista Janina Dusheiko. A caça predatória está, juntamente com a questão do uso de pessoas não humanas nos testes científicos, na produção de morte em escala industrializada para fabricação de carne, no comércio e na venda de “animais de estimação” dentre outros usos dos corpos, no centro de um debate contemporâneo sobre as nossas relações com a vida planetária, com as outras espécies e com o meio no qual vivemos. Os temas ampliaram desde os textos das feministas dos séculos XIX e XX que escreveram sobre as pessoas não humanas. Foi no contexto em que Maria Lacerda de Moura escreveu sobre a vivissecção e o vegetarianismo no livro Amai… e não vos multipliqueis. Sobre a alimentação ela escreveu: “No dia em que a mulher se dispuser a libertar-se do jugo do estômago civilizado, passar a comer frutas e legumes, a apagar o fogo doméstico que é o ‘fogo eterno’ do inferno feminino na sua escravidão ao estômago do homem – nesse dia ela recomeçará a sua auto-educação física e mental e iniciará a sua verdadeira libertação humana” (p. 233).

Outro livro que quero destacar é A política sexual da carne: a relação entre carnivorismo e a dominância masculina, da feminista vegana Carol Adams. Neste livro ela identifica mulheres vegetarianas ligadas às reivindicações feministas. Segundo ela, no século XIX muitas mulheres tornaram-se vegetarianas e escreveram sobre a necessária libertação delas mesmas e das outras espécies. Mulheres como: Agnes Ryan (1878-1954, EUA); Annie Wood Besant (1847, Inglaterra – 1933, Índia); Clara Barton (1821-1912, EUA); Elizabeth Cady Stanton (1815-1902 – EUA); Lou Andreas-Salomé (1861, Rússia – 1937, Alemanha) e Matilda Joslyn Gage (1826-1898, EUA) foram precursoras da alimentação sem carne e da luta contra o uso de animais na ciência e na indústria, sobretudo na luta antivivisseccionista.

Nise da Silveira (2012), nascida em 1905, foi uma das pioneiras na discussão da antipsiquiatria e no debate sobre os laços afetivos entre pessoas e animais, por ela nomeados animais não humanos. Ela via na relação com os gatos uma possibilidade de diálogo com o inconsciente, e sobre os animais escreveu: Gatos, a emoção de lidar (1998) e A farra do boi (1989), ambos esgotados. Neste livro, ela escreve: “Vamos retroceder dos altos níveis do processo de individuação aos baixos degraus onde ainda ocorre a festa-sacrifício do boi, no litoral de Santa Catarina.

Esta ‘festa’, ou seja, ‘a Farra do Boi”, por incrível que pareça, tem defensores.

Argumentam que é uma tradição cultural.

Tradição oriunda de trogloditas, de bárbaros…” (p. 65).

A barbárie da masculinidade cis tóxica ainda é pouco questionada quando se trata da violência especista, mas cumpre lembrar que, na maioria dos casos de extrema violência, os protagonistas são homens cis. O recente extermínio de crianças na escola de Blumenau-SC chamou a atenção pelo fato de o assassino já ter cometido crime contra os animais. Não é coincidência! O machismo mata!

A libertação humana não será possível sem a libertação das outras espécies. Como dizia Maria Lacerda de Moura, devemos colocar fim no tempo do antropocentrismo (macho-cis-branco) e construirmos o biocentrismo, em que todas as formas de vida importem.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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