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Nem toda feiticeira é corcunda

Nem toda feiticeira é corcunda

Texto dedicado à minha avó materna, Conceição Nunes Lessa, benzedeira.

 

Na letra da música Pagu, de Rita Lee, as feiticeiras não obedecem aos clichês de corcundas ou feias. Estão por toda parte. Fazem da sua história um grito de alerta. A roqueira escreve:

“Mexo, remexo na inquisição

Só quem já morreu na fogueira

Sabe o que é ser carvão”

(Rita Lee – 2004).

A história das bruxas merece ser recontada para que não se apague da memória coletiva a apropriação dos conhecimentos tradicionais das mulheres realizada para facilitar a aceitação da medicina como ciência da cura.

As mulheres reconhecidas como bruxas eram membros fundamentais da comunidade campesina na Europa medieval. Elas eram as médicas, as conselheiras, as parteiras, as guardiãs da vida e da morte. Além disso, as mulheres foram pioneiras nos estudos e nas práticas de cultivo e manejo de plantas medicinais. Não somente na Europa, mas ao redor do mundo. Elas eram médicas sem diploma, passavam seus conhecimentos de geração em geração de forma oral. Bruxas, feiticeiras, parteiras, rezadeiras, curandeiras, erveiras, eram, portanto, mulheres sábias que ajudavam a comunidade e aconselhavam na tomada de decisões. 

O período caracterizado pela caça às bruxas foi amparado por justificativas inventadas pelo clero europeu. O mais famoso documento criado para fundamentar a perseguição às mulheres foi o Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum), primeiro manual inquisitorial endossado pelo papa, publicado em 1486. O livro defendia que a feitiçaria era resultado direto de um pacto com o demônio, que a mulher era sexualmente insaciável e, portanto, vulnerável às tentações do diabo. Foi uma invenção da igreja para facilitar a aceitação dos homens como terapeuta, pois, “durante a caça às bruxas, a igreja legitimou a profissão dos médicos, já recomendada pelo Martelo das Feiticeiras, que declarava: “uma mulher que tenha a ousadia de curar sem haver estudado é uma bruxa e deve morrer” (Telles, p. 45).

A repressão, perseguição e extermínio de mulheres acusadas de estarem “endemoniadas” foi uma disputa pelo monopólio político e econômico. Os algozes visavam uma institucionalização da teoria e da prática medicinal. Para alcançarem o seu objetivo, fizeram uma campanha de terror contra as mulheres. O Martelo das Feiticeiras oferecia instruções detalhadas para o uso da tortura com a finalidade de arrancar confissões e denúncias de novas acusadas de pacto com o diabo.

A apropriação dos saberes e das práticas de curandeirismo das mulheres se deu à custa de muita violência e terror. A medicina nasceu do sangue derramado das mulheres. As feiticeiras já utilizavam, muito antes da medicina e da farmacologia, os analgésicos, digestivos e tranquilizantes. Usavam a beladona, entre outras funções, para inibir as contrações uterinas quando havia risco de aborto espontâneo. Existem indícios de que a digitalina (extraída da Digitalis purpúrea), fármaco usado para tratamento de doenças cardíacas, foi descoberto por uma bruxa inglesa. Apesar dos registros históricos, os livros de medicina inventam nomes de homens que supostamente teriam “descoberto” a planta séculos depois de seus usos pelas bruxas. Muitos registros mostram o uso das plantas durante os trabalhos de cura: “A beladona cura a dança fazendo dançar” (Michelet, p. 107).

As benzedeiras e rezadeiras foram perseguidas com aval do Estado e, para elas, muitas dedicatórias são feitas hoje por mulheres, como o poema de Keyane Dias:

 

Benza

Por Keyane Dias

 A bença da velha, eu peço,
Pra bem ficar protegida.
Em mão rugosa, confio
A benza da fé acolhida.

Com ramo tira quebranto,
Mistério pouco revelado.
Ave Cruz, canto em credo!
Sara do mau olhado.

Socorro de mulher prenha,
Aconchego para criança.
Ajuda com erva santa
Corpo fraco que se cansa.

É dom, fonte ancestral,
Quem recebe esse saber.
E se tiver pouca fé,
Nem adianta se benzer.

Elas resistem na cidade
E nas matas do interior.
Senhoras de valentia,
Guerreiras do bom senhor.

Trabalho de caridade,
Auxílio pra alma sofrida.
Com jejum e bom respiro
Apruma espinhela caída.

Sincretismo de benfeitura,
Catolicismo popular.
No terreiro, na pajelança,
Baixinho a sussurrar:

“Quem pra ti olhô
Com os olho malvado
Eu vou jogar nas onda
Do mar sagrado.”

Tal qual essas senhoras,
Tem os velho rezador.
Trabalham com a mesma fé,
Com a força do mesmo amor.

Salve Deusa!, essas mão santa.
A cura do benzimento!
Escudo da santa cruz.
A graça que traz alento.

(Poesia dedicada à Dona Pedralina, benzedeira de Ribeirão da Areia – MG.)

As bruxas verdes estão redescobrindo o valor das plantas e seus usos nas infusões, nos chás medicinais, nos banhos de ervas e noutras práticas. Suas práticas, somadas aos benzimentos e banimentos, estão sendo recuperadas por mulheres e grupos de mulheres empenhadas no resgate de uma história secular. Vale lembrar o registro de Jules Michelet: “O obstáculo não é o rancor. Os mortos estão mortos. Os milhões de vítimas – albigenses, valdenses, protestantes, mouros, judeus, índios da América – dormem em paz. O mártir universal da Idade Média, a feiticeira, nada diz. A cinza está ao vento” (p. 274). Bruxas, feiticeiras, benzedeiras, curandeiras, erveiras, mulheres da terra, parteiras, rezadeiras estão entre nós para reconstruir a história e registrar novas formas de ver, sentir e agir em meio à natureza. 

 

Sugestões de leitura:

EHRENREICH, Barbara; ENGLISH, Deirdre. Bruxas, parteiras e enfermeiras: uma história das curandeiras.

ILHEO, Mariana de Carvalho. Tradição e prática: um estudo etnográfico do benzimento em Campestre (MG). Campinas: Setor de publicações, 2027.

MILHELET, Jules. A Feiticeira: 500 anos de transformações na figura da mulher. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

TELLES, Norma. Ronda das feiticeiras. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Quinta-feira, 12 de outubro de 2023 – Lua nova

Quinta-feira, 12 de outubro de 2023 – Lua nova

Tenho há dias, meses (a vida inteira, talvez?), revisitado lugares profundos em mim, que têm a ver com um passado longínquo, e feito muitas perguntas… quem fui, quem sou agora, o que desejo, quando e como e por que surgiu algo transformador em mim… tantos lugares, tantas transformações… e um desses lugares são os livros, que por si só não são transformadores, transformam porque acontece o encontro, porque toca (ou não) quem lê.

Eu despertei interesse pela leitura, que eu me lembre, na adolescência, mas muito espaçadamente – lia os títulos obrigatórios da escola, alguma indicação ou influência de irmãs (minha irmã mais velha lia muito Paulo Coelho, cheguei a ler alguns), do meu avô, de professor(a), colega, amiga(o), enfim. Dessas leituras, nada que me fizesse parar tudo e ler avidamente ou querer mais. Isso só foi acontecer, apaixonadamente, quando, por causa de um vestibular seriado, tive de ler cinco obras de autoras brasileiras: Clarice Lispector, Nélida Piñon, Cecília Meireles, Cora Coralina e Hilda Hilst. (explosão) como escreveria a Clarice em alguns de seus maravilhosos livros…

Minha vida mudou completamente a partir do primeiro livro dessa leva que li: Um sopro de vida – pulsações, da magnífica Clarice. Como esse livro me fez eu me comunicar tão profundamente comigo… me instigava, me inspirava, me deixava estarrecida, sensação de que nada mais importava: “… depois de ter você, pra que querer saber que horas são?” rsrs.

Aí eu quis ler tudo dela e sobre ela, passei a frequentar assiduamente a biblioteca municipal e da escola (pública, estadual). Romances, contos, crônicas, cartas, biografias… e a partir daí fui adentrando o universo da Clarice e o meu, fascinada. Então a vida não era só dar conta das obrigações, existia um universo diverso, confuso, bizarro, incrível, sensível e horrendo dentro de mim e daqueles livros. Então veio Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Fernando Pessoa, Nietzsche… e os livros passaram a ser espelhos, mas não só. Porque havia revelações. Havia tanta humanidade, e isso me humanizava, me fazia sentir, e eu me tornava alegria pura ou tristeza profunda ou empolgação ou melancolia, me afetava como nenhuma outra coisa.

Foi daí que nasceu minha vontade de ocupar completamente minha vida com a literatura, os livros, a palavra escrita. Quis ser escritora – escrevia poemas e alguns contos, jogava muita coisa fora, guardava outras –, mas rapidamente achei que não era capaz, por pura comparação e baixa autoestima e imaturidade, claro; vislumbrei um dia ter um sebo, pensava que poderia viver a vida inteira em um, independente de onde moraria – também tinha um sonho de sair do interior de Minas, mas, na época, não via possibilidade de isso acontecer. Ser editora mesmo, não cheguei a pensar nisso naquela época, mas decidi fazer o curso de Letras, para estudar literatura.

Fui desejar abrir uma editora na graduação – momento propício para expandir os universos… lembro carinhosamente de, lá em Viçosa na UFV (2008 a 2010), falar, com convicção, com uma colega de graduação e amiga poeta, que sempre me mostrava seus fortes e excelentes poemas, que, quando tivesse minha editora, publicaria o livro dela. Quem diria que 10 anos depois estaria mesmo abrindo minha editora…

 

Eu não poderia estar fazendo outra coisa. Como é incrível ter essa certeza.

E assustador também.

 

As palavras me conectam com meu mundo interno. Eu que, facilmente, me distraio de mim… Os livros, mas não por si só me conectam com tantos mundos possíveis da nossa humanidade. Existe beleza e horror nisso. Um imenso paradoxo.

(Parece que a lua está em escorpião… talvez por isso estou assim hoje, vasculhando mais que os outros dias. E expressar, colocar em palavras, é uma necessidade que me acompanha desde que me entendo por gente. Quero entender, entender e comunicar, sempre.)

Isso sou eu. E tantas outras coisas também.

Meu mundo interno e o mundo externo mudam através dos livros. Eles me conectam também com o outro, com as pessoas. Eu me sinto em conexão profunda, empatia radical, amor incondicional – espiritualidade, talvez, seria o nome. 

Ser editora é mais que um ofício. Eu não poderia fazer qualquer coisa que não fosse movida pela paixão. Eu sou uma pessoa apaixonada. Apaixonadíssima. Falo isso hoje de um outro lugar – já fui muito criticada por isso, o que me fazia me ver equivocadamente mal, com os olhos dos outros, e sufocar a mim mesma (com redundância mesmo, reforçando a gravidade rs).

Ser uma pessoa movida pela paixão faz com que o meu tempo seja muito peculiar. Às vezes demoro para começar a ler um(uma) autor(a), livro, artista, músicas que muita gente indica. Tem que me tocar profundamente num lugar muito meu – e cada um tem esse lugar, claro. Talvez o meu seja o lugar que faz com que eu me conecte comigo mesma, porque esse é meu maior desafio. (Isso está no meu mapa astral também, com um Nodo norte em áries.) Tenho uma tendência de colocar o outro em primeiro lugar, de me sentir através do outro… Com o tempo, fui descobrindo o quanto isso me deixa vulnerável e contra mim mesma. Tenho descoberto, na verdade.  O tempo é mesmo nosso melhor amigo…

Trabalhar com livro me conecta comigo, e estar com mulheres me transforma o tempo inteiro. E isso é fascinante. Eu não poderia ter feito algo que não fosse fundar uma editora que publica exclusivamente livros escritos por mulheres e que são feitos por nossas mãos.

(Penso criticamente na questão do binarismo, se não estaria reforçando… mas me tranquilizo por saber que a desconstrução desse sistema vem das feministas, e estamos lidando com isso. Tudo em transformação, sempre.)

Sou muito grata a parte de mim que seguiu o imperioso desejo de estar no mundo dos livros e ser feminista e trilhar meu caminho sob essa base.

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   Cecília Castro – Fundadora e diretora editorial da Editora Luas. Nasceu no norte de Minas, é feminista, ativista, apaixonada por livros, poesia e literatura.

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Vozes das poetas mortas

Vozes das poetas mortas

O início do mês de outubro de 2023 foi marcado pelo derramamento de sangue inocente no Oriente Médio. A Palestina, desde o inicio do século XX, sofre um brutal processo colonizador de apartheid social e de expropriação de seu território. O mundo árabe pós-otomano foi fragmentado pela Inglaterra e França e contou com o apoio das elites monárquicas locais. Foi um período de revolta nos países do Oriente Médio, sobretudo contra o imperialismo franco-britânico e em combate à colonização sionista da Palestina.

O Mandato Britânico da Palestina operou entre 1920 a 1948 com vistas à pilhagem e subtração de territórios e de seus povos, reconfigurando o mapa geopolítico. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, houve um esforço das Nações Unidas e das organizações sionistas para a criação de um Estado judeu. A justificativa seria uma forma de reparação do Holocausto. A Revolução Árabe (1936-1939) foi um marco na resistência e levou a uma longa greve anticolonial, foram seis meses de greve nacional árabe em 1936. Entre 1947 e 1948, aconteceu a Guerra Civil e a Guerra árabe-israelense que culminam na criação do Estado de Israel em 14 de maio de 1948 [1].

Para além da luta armada, existe uma guerra de narrativas que demoniza o povo palestino para gerar uma comoção pública e fomentar o ódio ao povo árabe. Por isso, acho importante documentar visualmente a expropriação de terras que vem ocorrendo desde a criação do Mandato Britânico.

Os 75 anos de apartheid e genocídio do povo palestino são percebidos como um holocausto, e as ações militares de Israel, com apoio dos Estados Unidos, estão sendo nomeadas de nazisionistas. Sabemos que o Oriente Médio, assim como a América Latina e a África, vivemos sob o jugo da política armamentista norte-americana. A diáspora palestina, iniciada nas guerras de 1948 e 1967, causou um enorme deslocamento de pessoas. A Faixa de Gaza é, atualmente, considerada a maior prisão a céu aberto da história mundial. O Hamas não representa a voz e o desejo de todo um povo. O Hamas nasceu da fúria contra quase um século de destruição, tortura, estupros e morte de toda uma população.

Sabemos que os EUA desempenham um papel decisivo nas guerras. Em 2007, das 27 maiores guerras, 20 delas foram financiadas pelos norte-americanos, garantindo, com isso, um lucro de mais de 30 bilhões de dólares com a venda de armas [2]. Em 2022, o valor passou dos 200 bilhões, segundo a Money Times. Decorre daí o interesse do “tio Sam” em manter sob o seu jugo o Sul Global e estar alinhado às grandes potências imperialistas. 

 Neste ano, ao final de outubro, dois casos envolvendo escritoras palestinas chamaram a atenção da imprensa transnacional. Uma delas assassinada brutalmente pelo exército israelense-estadunidense durante um dos bombardeios contra civis na Faixa de Gaza. A outra, morta simbolicamente pelos alemães organizadores da 75ª edição da Feira do Livro de Frankfurt. O terror vivenciado no Oriente Médio e a culpabilização do povo palestino pela mídia hegemônica reforçam a tese de um esforço imperialista para proteger os crimes de guerra perpetrados por Israel-EUA contra o povo palestino. A feira do livro, ironicamente, tem a mesma idade do apartheid e do genocídio palestino, sua atitude mostrou sua face imperialista, racista, machista e ultraviolenta.

No dia 20 de outubro de 2023, o Ministério da Cultura palestino anunciou que a poeta Heba Abu Nada foi uma das vítimas dos bombardeios em Khan Yunis, na Faixa de Gaza. Seu primeiro romance Oxygen is not for the dead (2017) rendeu-lhe o segundo lugar no Prêmio Sharjah de Criatividade Árabe. Ela nasceu em Meca, em 1991, estudou bioquímica na Universidade Islâmica de Gaza e concluiu um curso de mestrado em nutrição clínica. O assassinato da jovem poeta causou uma comoção no mundo das letras, das artes, da cultura ou mesmo entre pessoas com um mínimo de empatia. Nas redes sociais, estamos compartilhando um de seus recentes poemas:

“A noite a cidade é escura,

exceto pelo brilho dos mísseis.

Silenciosa,

exceto pelo som dos bombardeios.

Aterradora,

exceto pela promessa lenitiva da oração.

Tenebrosa,

exceto pela luz dos mártires.

Boa noite!”

As cidades na Faixa de Gaza são escuras, os déspotas cortaram água, luz, fornecimento de alimentos e remédios. É silenciosa. O povo palestino vive em uma prisão a céu aberto há quase um século – nada podem falar ou fazer, o inimigo não dorme. É aterradora, pois, ao viver sob as botas de um tirano e saber do pacto de silêncio internacional, resta-lhes acreditar na justiça divina. Hoje, Heba Abu Nada é mais um nome na história dos mártires de seu povo.

Poeta e novelista palestina, assassinada por um bombardeio sionista, tinha 32 anos e uma vida repleta de poesia pela frente. Assim como o seu povo, ela queria a libertação. Deixou-nos um poema que foi recitado por ela e postado no YouTube durante uma entrevista. É um poema sobre a solidão da/na Palestina. Foi traduzido para o espanhol e está gravado no Twitter de Dani Mayakovski [3]:

Oh, solitarios, todos ganaron sus guerras y tú te quedaste solo, desnudo.

Ninguna poesía, oh Darwish [4], restaurará lo que los solitarios han perdido.

Oh, solitarios, ésta es otra era de ignorancia.

Maldito el que usó la guerra para separarnos y estar juntos en tu funeral.

Oh, solitarios, la tierra es un mercado libre y tu gran país es una subasta aprobada.

Oh, solitarios, nadie nos apoyará, en esta era de ignorancia.

Así que borrad vuestros viejos y nuevos poemas y el llanto.

Oh país, sé flerte.

O sentimento de solidão transformado em poesia pode nos oferecer pistas para entender o isolamento e o apartamento que seu povo vive desde o início do século XX. Diz ela: “Ninguém nos apoiará, nesta era de ignorância”. Em sua página de Twitter é possível ver algumas das imagens que ela compartilhou nos últimos anos e ver a divulgação de seu livro [5]. Trata-se de um arquivo virtual da jovem poeta morta, nestes dias de campanha de genocídio, pela ira militar de Israel-EUA.

A outra poeta que quero trazer à luz desta reflexão é Adania Shibli. Ela nasceu na Palestina em 1974. É PhD pela University of East London na área de Mídia e Estudos Culturais. Estudou, também, em Berlin. Trabalhou na Universidade de Birzeit, na Palestina. É autora do romance Minor detail, escrito originalmente em árabe, publicado em alemão em 2022. A tradução para o inglês rendeu-lhe a indicação aos prêmios National Book Award, em 2020, e Booker Internacional Prize, em 2021.

No dia 20 de outubro de 2023, mesmo dia do assassinato da poeta Heba, Adania Shibli receberia o LIBeraturpreis, prêmio concedido a escritoras do Sul Global por obra publicada em alemão. A cerimônia de premiação que iria homenagear a escritora ocorreria na Feira do Livro de Frankfurt. A homenagem foi cancelada sob o argumento da guerra em Israel, informou a LitProm, associação literária alemã que organiza o prêmio.

O livro foi traduzido para o Brasil pela Editora Todavia. Trata-se de uma obra que aborda a história de uma menina beduína palestina. O cenário é o deserto de Neguev. No verão de 1949, um ano depois do êxodo de Nakba que forçou o deslocamento de mais de 700 mil árabes para promover o Estado sionista de Israel, soldados israelenses atacaram um grupo de beduínos no deserto. A menina foi a única sobrevivente, todo aquele povo foi dizimado. Ela foi sequestrada, torturada e estuprada.

No mesmo dia, 20 de outubro de 2023, as duas poetas são mortas. Uma fisicamente pelos bombardeios do exército de Israel-EUA contra civis. A outra, simbolicamente, por contar a história de seu povo, que há quase um século sofre as consequências da invasão, exílio, tortura, prisão e morte de sua população. Ironicamente, os nazistas da Alemanha de ontem mataram e torturaram judeus, e, hoje, a atitude destes revela o apoio ao genocídio palestino cometido por Israel. A Europa branca, civilizada e limpinha se cala diante da barbárie que é cometida na Palestina desde o século XX e, hoje, usa a retórica do ataque do Hamas. O povo palestino não é o Hamas!

O sionismo e o imperialismo estão promovendo um show de horrores no mês de outubro. A barbárie levou o povo às ruas para pedir que cesse a violência e violação dos direitos humanos em Gaza. No dia 21 de outubro, ao redor do mundo, a multidão tomou às ruas pedindo libertação, reivindicando o direito de um corredor humanitário para resguardar a vida de civis, crianças, mulheres, mães, pessoas idosas, doentes. A ação global gerou a fúria dos militares de Israel-EUA que encenaram um dos piores bombardeios do período. Gaza foi alvejada de norte a sul. Os alvos foram os civis, as crianças, as mulheres, as mães, as pessoas idosas, os doentes, os hospitais. Os protetores dos animais não humanos mostram os horrores que estes seres inocentes estão sofrendo. Seus corpos mutilados espalhados pelas ruas ou soterrados pelos escombros.

A luta global é pelas vidas, não somente do povo palestino, mas da Cisjordânia, do Líbano e, inclusive, do povo de Israel que não pode se opor ao terrorismo de Estado. Não se iluda, o pior terrorista é quem lucra com a venda de armas, quem se ocupa em fomentar guerras para gerar lucro com o sangue inocente. “Nesta era de ignorância”, precisamos abraçar o conhecimento e combater a bestialidade, a desumanidade, a estupidez. No Twitter do Hoy Palestina foi disponibilizada a tradução para o espanhol da última mensagem de Heba em sua rede social, ela escreveu: “Se morrermos, saibam que estamos firmes, e digam ao mundo o nosso nome, que somos pessoas justas, ao lado da liberdade”. Boa noite, Heba Abu Nada! Tua juventude foi ceifada, tua poesia reverbera ao redor do mundo.

Palestina livre do rio ao mar!

Notas:

[1] Dossiê Palestina. Letralivre: revista de cultura libertária, arte e literatura, a. 14, n. 50, Rio de Janeiro, 2009.

[2] Dossiê Palestina. Letralivre: revista de cultura libertária, arte e literatura, a. 14, n. 50, Rio de Janeiro, 2009.

[3] Ela fez referência ao poeta e escritor Mahmoud Darwish (1941-2008). Ele foi um poeta e escritor palestino, nasceu no período do Mandato Britânico. Entre 1961 e 1967, foi preso e torturado pelo Estado Islâmico. Em 1970 passou a viver como refugiado. Foi autorizado a retornar em maio de 1996 para o funeral. O poema de Heba fala dos malditos que usam a guerra para separar o povo e suas famílias e para reunir nos funerais.

[4] A tradução para o espanhol está publicada no Twitter:  https://twitter.com/DaniMayakovski/status/1715894280592453771.

O vídeo original está publicado no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=T65eqU3_NTI&t=33s.

[5] https://twitter.com/HebaAbuNada.

[6] https://twitter.com/HoyPalestina.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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O Estrangulador de Boston

O Estrangulador de Boston

O true crime é um gênero em ascensão na cultura pop. Embora os seus primeiros registros sejam datados da Grã-Bretanha de 1550, as obras têm conquistado espaço em diferentes tipos de mídia nas últimas décadas. Parte do interesse vem do fato de que elas se baseiam em evidências dos crimes, contam com depoimentos de pessoas envolvidas na investigação e, quando possível, com a transcrição dos julgamentos. Dessa forma, as análises são pautadas no material coletado pelos autores e não em impressões, o que contribui para diferenciar o true crime das produções baseadas em fatos reais, nas quais existe margem para interpretação.

Em geral, narrativas têm como ponto de partida um crime que ganhou notoriedade e é comum que elas tenham sido repercutidas pela mídia. Contudo, nem sempre a abordagem é feita de modo responsável porque existe a preocupação com o espetáculo, o que contribui para aumentar a audiência. Infelizmente, nós vivemos em um país que oferece diversos exemplos deste tipo de tratamento mórbido. Talvez, o maior deles seja o caso de Eloá Cristina, visto que a apresentadora Sônia Abrão chegou a falar ao vivo com Lindemberg Alves, o sequestrador que mantinha a sua ex-namorada e uma amiga dela em cárcere privado.

Se saímos do Brasil, a morbidez permanece. Um caso popular é o de Charles Manson, que fundou um culto ao redor da sua figura em meados da década de 1960. A seita, conhecida como Família Manson, atuava na Califórnia e foi responsável pelo assassinato da atriz Sharon Tate, bem como o de outras oito pessoas. Apesar disso, os produtos jornalísticos da época passavam a impressão de glorificar a figura de Manson, tratando a organização da seita e o seu poder de persuasão como características admiráveis. Além disso, boa parte dos conteúdos ignorava porque Charles Manson coopta majoritariamente jovens do sexo feminino com problemas familiares. Não é preciso fazer muito esforço para entender os impactos de uma figura que prometia acolhimento para garotas fragilizadas, especialmente uma que se colocava na posição de messias.

Quando olhamos para as sutilezas de casos como esses, é possível começar a entender um pouco do fascínio que o true crime desperta no público feminino. Esse interesse tem sido alvo de estudos, como o da Civic Science, uma plataforma que analisa hábitos de consumo. De acordo com o levantamento, 18% dos entrevistados têm o true crime como gênero favorito no formato de podcast. O apelo é maior entre membros da Geração Z e passa por uma queda conforme a idade dos ouvintes aumenta, girando em torno de 9% na audiência com mais de 55 anos. Além disso, o estudo revela que o true crime tem mais adesão entre as mulheres: 26% das entrevistadas têm preferência por conteúdo desse estilo. Isso vai de encontro a uma matéria veiculada pelo O Globo a respeito da ascensão do gênero no Brasil. Nessa reportagem, as hosts do Modus Operandi, um podcast com milhões de ouvintes, contaram que 75% do seu público é composto por pessoas do sexo feminino. Seguindo a mesma linha, Rachel Fairburn, do All Killa No Filla, revelou à BBC que entre 80% e 85% dos seus ouvintes são mulheres.

Ambas as matérias servem para ilustrar aspectos interessantes a respeito da presença feminina no true crime e a da BBC cita cinco possíveis motivos pelos quais as mulheres gostam do gênero: medo, compaixão, fascínio pelas motivações, mistérios para solucionar e escapismo. Entre eles, o último se mostra intrigante, mas também tem uma explicação. Durante a pandemia, o Google Trends divulgou que o número de buscas da palavra “terror” triplicou, deixando claro o crescimento do gênero, que é bastante próximo do true crime. Assim, vários sites se interessaram por investigar o que motivou esse cenário e as respostas indicavam que as narrativas funcionavam como um meio de fugir de um contexto que era ainda mais assustador, uma lógica que também pode ser aplicada ao true crime.

Também é interessante comentar a respeito da compaixão, que se parece mais com empatia quando olhada com atenção. Em casos como o de Ted Bundy e Gary Ridgway (ou Green River Killer), as vítimas são do sexo feminino. Logo, as mulheres acabam se colocando no lugar delas com maior facilidade, o que também serve para ilustrar porque o medo é um incentivador do consumo de true crime: se eu posso me tornar uma vítima, é melhor saber reconhecer os sinais do que ser surpreendida. Embora esse senso de segurança seja ilusório, ele torna as mulheres mais vigilantes. Todavia, essas motivações ainda são insuficientes para explicar totalmente o interesse feminino pelo true crime, tanto do ponto de vista da produção quanto do consumo e a matéria do O Globo serve para amarrar algumas pontas soltas.

Para Carol Moreira, uma das apresentadoras do Modus Operandi, quando mulheres produzem conteúdo do gênero existe maior predisposição para compreender as vítimas sem julgá-las. De encontro a isso, a escritora Luiza Lusvarghi comenta a respeito da tendência do true crime ao sensacionalismo, algo minimizado em títulos com assinatura feminina, em especial no que se refere à exploração dos sentimentos, o que pode ser ilustrado pela série Dhamer: Um Canibal Americano. Categorizada pelas famílias das vítimas como imprudente e cruel, ela chegou a colocar em tela uma  cena na qual os atores repetem, palavra por palavra, os depoimentos do julgamento de Jeffrey Dahmer, inclusive o da irmã de um dos jovens mortos pelo serial killer. Além das famílias, a jornalista Anne E. Schwartz, que cobriu o caso em 1991, afirmou que o programa troca a  precisão pela dramaticidade e é pouco fiel aos detalhes do caso que aborda. Curiosamente, essa produção é a segunda série mais vista da Netflix, com mais de 700 milhões de horas assistidas, o que revela um apreço do público geral pela espetacularização de tragédias.

Considerando esses pontos, é possível concluir que grande parte das mulheres que ocupa um espaço na produção de conteúdo de true crime o faz por acreditar que é possível respeitar as vítimas e se ater aos fatos, deixando de lado a necessidade de inflamar o público para conseguir engajamento. E se olharmos para os números conquistados por essas produtoras, essa visão está correta. Em 2019, 11 dos 20 podcasts mais ouvidos do iTunes eram classificados como true crime e sete deles tinham apresentação feminina.

Somado a essa mudança de perspectiva, existe um componente histórico relevante. Para a escritora Patrícia Hargreaves, se não olharmos para o passado dos crimes, a tendência é que sigamos cometendo os mesmos erros. Para ilustrar, ela citou o exemplo de Ângela Diniz, uma socialite morta pelo namorado na década de 1970. Embora o caso não deixasse margem para dúvida quanto à autoria, a defesa de Doca Street aproveitou uma ideia vigente desde o Império para conseguir fazer com que o caráter da vítima fosse julgado ao invés do assassino: o crime passional em legítima defesa da honra, algo. Ainda que o Código Penal não permita mais esse tipo de abordagem, Hargreaves ressaltou que a sociedade ainda enxerga a traição como motivo plausível para o feminicídio. Ou seja, a legislação pode ter mudado, mas a mentalidade permanece a mesma.

Então, é possível afirmar que as narrativas de true crime criadas e consumidas por mulheres são muito mais sobre a sociedade e sobre todos os fatores que possibilitaram a ocorrência dos crimes. Elas são extremamente humanas e fundamentais para a memória coletiva, extrapolando bastante a abordagem padrão da mídia e se distanciando do culto à figura do assassino. Nesse sentido, um exemplo recente que merece destaque é o filme O Estrangulador de Boston (Boston Strangler, 2023), que, apesar de não ser assinado por uma diretora, é conduzido de uma forma que nos faz pensar a respeito desses novos caminhos que o gênero tem seguido depois de se tornar um território feminino.

O primeiro ponto que contribui para isso é a escolha do diretor Matt Ruskin de deixar de lado Albert DeSalvo (David Dastmalchian), o serial killer que matou mais de dez mulheres em Boston entre 1962 e 1964. Ele não recebe mais do que vinte minutos de tela, o suficiente para que a sua identidade seja revelada, bem como alguns fatos inquietantes sobre a sua confissão. Entretanto, DeSalvo não tem maior aprofundamento. Para o diretor, as figuras centrais da história são Loretta McLaughlin (Keira Knightley) e Jean Cole (Carrie Coon), as repórteres que se dedicaram à cobertura do caso. Antes mesmo que a polícia entendesse que os três primeiros crimes do Estrangulador estavam conectados, Loretta foi a responsável por identificar um padrão e apurar os fatos, que posteriormente foram divulgados no jornal Boston Record America. Porém, ainda que a repórter tenha seguido todos os passos necessários para conseguir a sua confirmação, a polícia se recusou a aceitar a teoria por um tempo, o que acabou custando mais vidas.

Assim, a perspectiva feminina serve para expor as diversas camadas de misoginia da sociedade do contexto. Isso começa pela própria redação do jornal, que mantém Loretta confinada na seção de estilo de vida mesmo que ela tenha potencial para mais. As tarefas mais complexas, quase sempre ligadas a casos criminais, são destinadas aos homens, que não parecem interessados em desafiar as normas ou incomodar as autoridades para checar os fatos. Eles estão confortáveis com respostas vagas em nome de uma espécie de camaradagem, ainda que o trabalho de um jornalista seja questionar e incomodar para chegar à verdade. Isso se torna ainda mais claro quando um policial de alto cargo vai até o Boston Record para falar com Jack Maclaine (Chris Cooper), o chefe de Loretta, e afirma que foi um golpe baixo enviar um “rabo de saia” para falar com o detetive que esteve na cena do terceiro crime. Durante esse diálogo, ele também afirma que Jack não poderia ter publicado a reportagem, uma vez que as informações foram fornecidas somente porque o oficial acreditou que conseguiria obter favores sexuais de Loretta.

Embora o machismo seja mais evidente quando pensamos na personagem de Keira Knightley, ele também afeta Jean. Ainda que ela consiga trabalhar com investigações criminais, não está mais perto do que a colega de redação de ter o respeito dos seus pares. Conforme O Estrangulador de Boston avança, conseguimos perceber que boa parte dos jornalistas acredita que Jean somente trabalha nesses casos por causa da sua aparência. A diferença entre as duas repórteres está no fato de que Jean ocupa essa posição há mais tempo e, portanto, sabe lidar com esse tipo de insinuação e com os impactos da carreira na sua vida pessoal, algo que Loretta ainda está aprendendo a administrar. Em um primeiro momento, James (Morgan Spector), o marido da personagem, apoia o seu trabalho no jornal, mas isso muda a partir do ponto em que Loretta começa a ganhar relevância com a investigação do Estrangulador. Uma vez que a foto dela aparece no Boston Record, as coisas tomam um rumo diferente, e ela passa a ser alvo de cobranças que antes não existiam, um cenário potencializado pelo crescimento do caso e do sensacionalismo midiático ao seu redor.

Todos os jornais da região queriam uma fatia das vendas geradas pelo serial killer. Porém, nem sempre havia preocupação em apurar os fatos, e diversas reportagens baseadas em boatos foram veiculadas, espalhando o pânico pelas ruas de Boston. Isso serve para confirmar que o sensacionalismo é uma parte intrínseca do true crime há muito tempo, mas também para ilustrar como as vítimas muitas vezes são ignoradas na cobertura de casos dessa natureza. De um lado, tem-se uma imprensa preocupada em vender jornais às custas da tragédia. Do outro, uma polícia que deseja livrar a própria pele e escapar do tribunal da opinião pública. Porém, ninguém parece se importar em obter justiça para as mulheres que foram mortas pelo Estrangulador. Mesmo a ideia de prendê-lo tem pouco a ver com elas e muito mais com punitivismo, com aplacar a sede de sangue da comunidade e da própria polícia, ridicularizada algumas vezes ao longo da investigação.

Assim, as cenas em que vemos Lorretta e Jean conversando com as famílias das vítimas parecem caminhar na contramão do que produções pautadas em investigações criminais normalmente fazem. Nesses diálogos, percebemos que as jornalistas têm mais interesse em oferecer alento e justiça do que em receber algum tipo de gratificação pelo seu trabalho. A sua principal motivação é manter as mulheres de Boston seguras, visto que a falta de um padrão nas escolhas de vítimas do Estrangulador serve para revelar que qualquer uma pode ser o próximo alvo, independente de idade, raça ou outros marcadores que serviriam para criar uma separação. Dessa forma, nasce um senso de coletividade e a certeza, infelizmente atual, de que as mulheres só têm umas às outras quando enfrentam um mal que toca somente o sexo feminino.

Nesse ponto, é importante tomar um pouco de distância do filme para falar a respeito de como ele foi recebido por alguns veículos de imprensa. Avaliado com 2 de 5 estrelas do The Guardian, O Estrangulador de Boston foi descrito como sem emoção dramática e tensão. O texto do jornal também afirma que diretores como Jonathan Demme ou David Fincher poderiam ter feito um trabalho melhor com este material, mas Matt Ruskin prefere se manter “do lado certo do gosto contemporâneo”. É desnecessário dizer que a crítica foi escrita por um homem, Peter Bradshaw, dada a incompreensão das ideias apresentadas e dos motivos para essa “frieza”. Além disso, somente um homem poderia acreditar que não existe tensão suficiente em ver duas mulheres enfrentando praticamente sozinhas um serial killer. E apenas um homem seria capaz de afirmar que O Estrangulador de Boston não tem elementos capazes de despertar “calafrios de medo”.

Isso porque o crítico falha em perceber que o horror do longa reside em elementos muito mais sutis do que a tradicional exploração das mortes e da figura do assassino. Conforme Loretta e Jean investigam o caso do Estrangulador, elas se deparam com diversas possibilidades de criminosos além de Albert DeSalvo. Inclusive, ainda que ele tenha confessado a autoria, alguns crimes simplesmente não poderiam ter sido cometidos por ele, que estava preso quando eles ocorreram. Assim, O Estrangulador de Boston trabalha com a ideia de que o serial killer não é uma pessoa, mas uma mentalidade misógina, algo que permanece atual quando consideramos que mais de 50 anos se passaram desde esse caso e nós convivemos com a existência de incels, red pills e outros grupos que incentivam o ódio às mulheres. Para qualquer pessoa do sexo feminino, essa ideia por si só é aterrorizante. Porém, um cinema que explora a possibilidade de que mulheres vítimas de crimes sejam tratadas com respeito ainda é algo incômodo para muitos homens.

Em partes, isso acontece porque a ideia de que filmes devem servir exclusivamente como entretenimento é muito presente na sociedade. E o interesse de alguns grupos pelo true crime, como sugeriu a BBC, está ligado à solução dos mistérios. Portanto, os elementos que despertam a curiosidade são fundamentais para uma parcela do público. Assim, quando o foco é um novo olhar sobre o gênero, especialmente um olhar centralizado em mulheres, o incômodo masculino surge porque, junto com a nova perspectiva, vem a ideia de que transformar as mortes em espetáculo visual é desrespeitoso. Logo, escolher um caminho que se desviar do sensacionalismo e traz outras possibilidades de abordagem para um caso já extensivamente explorado é algo que rende uma recepção, no mínimo, ambígua. Porém, essa reação é algo que serve para ilustrar porque as mulheres precisam continuar tomando os seus espaços nesse tipo de discussão e produção de conteúdo. Como O Estrangulador de Boston mostra com eficiência, é somente quando nós contamos as nossas próprias histórias que passamos a ser vistas como mais do que corpos violados nas tramas criadas pelo patriarcado.

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Amanda Guimarães – Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), atua há mais de 10 anos como corretora de textos e redatora e escreve sobre cultura em vários sites pela internet afora desde 2012. Obcecada por cinema de horror, gatos e música dos anos 90, curte viajar para festivais e ficar em casa rodeada de suas gatas.

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Um novo universal?

Um novo universal?

A língua que você fala envenena a glote a língua o palato os lábios. Elas dizem: a língua que você fala é feita de palavras que a matam.

                                Monique Wittig, As guerrilheiras, 1969

 

Linguagem inclusiva é diferente de linguagem neutra. De acordo com a gramática, quando existe pelo menos um elemento masculino, o gênero predominante é o masculino. As pessoas que não se identificam como homem ou mulher buscam resolver esse impasse utilizando-se de símbolos “@” ou “x” no lugar dos marcadores de gênero. Porém, a alteração na grafia (uso do “x” ou “@”) dificulta a compreensão, e muitas pessoas com deficiência visual, que utilizam programas de leituras de texto, se veem prejudicadas, tendo em vista que os softwares não conseguem ler palavras escritas neste formato modificado. Escritoras feministas, como Monique Wittig, já apontavam em seus textos a mortificação das mulheres via linguagem, como lemos na citação inicial desta reflexão.

A editora francesa Des Femmes, fundada em 1973 por Antoinette Fouque, se dedica exclusivamente a publicar obras escritas por mulheres. Na página virtual da livraria, lemos: “écrire ne sera donc jamais neutre”. A ideia central é de que a escrita não é, e jamais será, neutra, pois ela reflete as experiências de quem escreve no mundo do qual participa.

Aqui vemos o imbróglio tomar grandes dimensões. A discussão sobre linguagem não sexista já estava consolidada desde meados dos anos 1960 com vistas à inclusão das mulheres na linguagem. A atual proposta de linguagem neutra, que seria mais adequadamente definida como linguagem não binária, propõe uma mudança gramatical. A linguagem não sexista, também conhecida como linguagem inclusiva, propõe uma comunicação sem excluir ou invisibilizar nenhum grupo social. A proposta da linguagem neutra ou não binária, busca a inclusão das pessoas não binárias, e sugere algumas alterações do idioma e do uso de novas grafias de palavras tais como: tod@s, todxs, todes.

O que é a linguagem sexista então? Um conjunto de vocábulos que, sendo primariamente do gênero masculino, simboliza ambos os gêneros em situação de comunicação. Mensagens estereotipadas e discriminatórias de ambos os gêneros com base em convenções preestabelecidas pela cultura e que nada têm a ver com condicionalismos biológicos intrínsecos aos seres humanos. Foi partindo desse entendimento que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) definiu, a partir de publicações e formas diversas de intervenção sobre o tema, algumas diretrizes para Redação sem discriminação. A linguagem sexista tem sido um objeto de estudo e intervenção tratado em diferentes níveis de governo, chegando ao âmbito das Nações Unidas através da 24ª reunião da Assembleia Geral da UNESCO, em 1978, que propôs o exame e a revisão dos registros escritos e dos discursos orais que apresentem formas de discriminação de linguagem com relação às mulheres.

 Mudanças significativas nas relações sociais e humanas começam com o uso das palavras adequadas e com mensagens não verbais que reafirmem a equidade entre os gêneros e valorizem a diversidade sociocultural, sexual e racial. Introduzir estes parâmetros nos materiais de educação é fundamental para forjar novas relações entre as pessoas.

Algumas recomendações para evitar sexismo na elaboração de materiais de educação são:

– Eliminar da linguagem todas as expressões de conteúdo desqualificador ou discriminatório, que tenham como mensagem a inferioridade das mulheres, sua ausência na vida pública e a sua definição e identidade em função do homem. Dessa forma, torna-se injustificável manter o jargão “história do homem”, “o homem moderno”, tão comuns nos livros didáticos, especialmente aqueles dedicados à história natural.  Há palavras e expressões mais interessantes como “humanidade”, “espécie humana”, “homens, mulheres cis, trans e pessoas não binárias”, que substituem esse vício com propriedade.

– Fomentar nos textos e nas ilustrações imagens de equidade, cooperação e associação entre as pessoas, as crianças e jovens de raças, etnias, idades, religiões, posições sociais diferenciadas. Eliminar aquelas que contenham conteúdos estereotipados, desqualificadores ou discriminatórios.

– Mostrar situações em que o poder e a liderança estejam distribuídos por personagens de ambos os gêneros, em que os diferentes gêneros sintam-se representados nas atitudes positivas e propositivas.

As propostas para uso de uma linguagem não sexista já são comuns em várias línguas, tais como francês, inglês, alemão e espanhol. Na América Latina, os países, em sua maioria de língua espanhola ou castelhana, criaram redes de divulgação, distribuição de manuais, postagem de poemas e textos não sexistas, chegando mesmo a organização de uma campanha para a América Latina – que tem no dia 21 de junho uma data comemorativa, dia no qual as proponentes disseminam cartazes, poemas, textos e outros documentos visando a difusão de uma ideia muito simples, assim expressa: “No alfabeto é assim: ‘A = O’.   Duas letras diferentes, iguais em importância. Na vida dos seres humanos, naturalmente deveria também ser assim: iguais em direitos humanos e respeitados em suas diferenças”.

A = O torna-se o símbolo dessa luta contra o sexismo, travada no âmbito da linguagem. Outra proposta interessante é do Mujer Palabra, um grupo autodenominado de “independente” e “autogestionado”, dedicado a trabalhos de criação, pensamento e ativismo, cujo lema é: “Se a linguagem não importa não é essa nossa revolução!”.

A reivindicação do grupo é para a adequação da linguagem aos tempos atuais, em que as mulheres nem sempre concordam silenciosamente com as violências sexistas. A linguagem é historicamente construída e como tal deve ser revisada de modo que contemple as pessoas envolvidas no discurso, seja oral ou escrito. O que nos transmite a linguagem sexista? Que o homem ou o masculino serve como medida do humano, da norma, a referência. Que as mulheres são apagadas nessa referência universal. Que as formas femininas partem sempre do masculino. Que o masculino dita as regras de concordância. Que os homens são criaturas racionais enquanto as mulheres são criaturas sexuais, emotivas e, por isso, apêndice do homem.

Em suma, a linguagem tem servido para fustigar ou excluir as pessoas não brancas, deficientes, idosas, as crianças, minorias e as mulheres cis e trans que, apesar de serem mais de metade da população mundial, continuam sendo anuladas, apagadas ou eliminadas dos discursos orais e escritos. É imperioso proceder à reescrita da gramática fazendo uma revisão da ordem das relações sociais de gênero. É importante ensinar as pessoas a falar usando uma linguagem não sexista, paritária, inclusiva e democrática.

A linguagem influencia poderosamente nas atitudes, nos comportamentos e nas percepções. E é por isso que na Argentina, e em alguns países na Europa, criam-se orientações em manuais que assegurem, na medida do possível, uma linguagem não sexista nos documentos públicos.

Um exemplo é o projeto de lei da deputada Paula Cecília Merchan, publicado em 2011 na Argentina, intitulado: Uso de linguagem não sexista na administração pública. A linguagem é uma construção cultural e histórica que tem colaborado para a violência sexista. A crença que a humanidade é composta de “homens” e que, naturalmente, as mulheres são incluídas na palavra é motivo de sexismo. Do mesmo modo que um/a palestrante se referir a uma plateia de docentes composta em sua maioria por mulheres como: “os senhores” ou “os professores” é um tratamento sexista e excludente, que parte do princípio de que as mulheres são uma segunda categoria, inclusa na categoria “homens”. Dessa forma, a contribuição feminista para o debate está em evitar o sexismo na linguagem como um passo importante para o combate às discriminações de gênero. As práticas linguísticas, prioritariamente nos espaços de administração pública, podem servir de modelo e permitir o desenvolvimento coerente com as práticas sociais que se renovam, foi assim que vários países já produziram Guias de orientação para a utilização de uma linguagem não sexista.

Iniciativas semelhantes aconteceram na Europa e na América Latina, onde os guias de orientação formam materiais pedagógicos para serem utilizados nos textos escritos e nos discursos orais dentro dos setores públicos, pois se entende que, nesses locais, a prioridade deve ser a inclusão e a garantia do exercício da cidadania. A partir disso, aponto o argumento do guia elaborado pelo Instituto Canário, nas Ilhas Canárias na Espanha: “Nos últimos 30 anos generaliza-se um amplo conhecimento sobre como utilizar uma linguagem inclusiva em todos os âmbitos, especialmente na linguagem administrativa. São publicados livros, manuais, dicionários, conclusões etc. com a finalidade de utilizar a riqueza da língua espanhola em prol da generalização da linguagem não sexista para a cidadania” (Instituto Canário de la Mujer, 2010).

A urgência dos governos em adotar manuais de orientação se faz como medida para amenizar as dificuldades de adoção de uma gramática não androcêntrica, ou menos androcêntrica que as atuais. Na linguagem sexista está presente a crença quase geral que confere poder e superioridade ao homem e se manifesta em palavras e expressões que ocultam ou desqualificam o feminino. Um dos exemplos mais marcantes é o uso da palavra homem para designar todos os seres humanos, enquanto a palavra mulher designa apenas a fêmea da espécie. Alguns dicionários ainda propõem que a palavra mulher designa alguém da espécie humana depois da puberdade ou do casamento, deixando uma lacuna quanto ao que seriam antes desses dois casos. Se não são mulheres, o que seriam então? Este é apenas um exemplo dentre tantos. Como este exemplo existem outros em que o masculino precede, oculta e domina o feminino, ou que a mulher recebe sua identidade em função da relação com o homem.

A linguagem que nós usamos traduz o grau de desenvolvimento civilizacional em que nos encontramos. Ela é o reflexo do nosso sentir e agir, além disso, ela afeta diretamente a percepção da realidade. A linguagem sexista legitima comportamentos de desigualdade, desrespeito, discriminatórios, ao omitir retira importância, reduz à inexistência grande parcela da humanidade, o que reforça e promove a violência sexista. A linguagem, ao denominar as mulheres como propriedade dos homens, sustenta uma visão patriarcalista do mundo. É preciso prever sanções para quem não respeitar o direito de todas as pessoas se verem representadas com dignidade nos textos escritos e produzidos oralmente em contextos públicos, por isso os vários manuais elaborados a partir das diretrizes propostas pela UNESCO são um passo importante para a construção de uma gramática não androcêntrica.

Esse debate está apenas começando no Brasil, e como vimos, em atraso com relação ao restante da América Latina, proponho uma revisão morfológica, além, é claro, da elaboração de manuais e guias de orientação para a utilização da linguagem não sexista nos espaços públicos, tais como escolas, centros de saúde, prefeituras etc.

Além disso, ficam alguns questionamentos: como aprender a falar/escrever sem silenciar as outras pessoas? Como não transformar o “todes” em um novo universal, que substitui o “todos” e, novamente, exclui as mulheres do discurso? Creio que o debate está apenas começando e, portanto, vale lembrar que não será alimentando velhas exclusões que se fará nascer uma nova proposta.

Para concluir, vale lembrar que, entre a metade final do século XX e início do século XXI, a linguagem não sexista ou inclusiva esteve presente nas pautas feministas e nas organizações de direitos humanos. Nas últimas décadas, vimos surgir um debate propondo uma linguagem não binária. É muito justa e importante a reivindicação empreendida por pessoas que não se identificam como homens ou mulheres, preferindo se autodefinirem como pessoas não binárias. Porém, se faz urgente a compreensão de que mulheres cis e trans definem-se como tal e, em consequência, todas querem ser contempladas pela linguagem. Este é um ponto urgente e importantíssimo! Vencer a barreira do machismo na linguagem e nas práticas sociais do Brasil, um dos países com maior número de estupros, feminicídio e transfobia.  

Retomo a frase inicial de Wittig que diz: “a língua que você fala é feita de palavras que a matam”. Excluir as mulheres cis e trans da linguagem é uma forma de eliminar suas existências. É estranho e desrespeitoso ver feministas nomeando outras mulheres em suas assembleias, eventos ou reuniões valendo-se da linguagem não binária. Se a linguagem no masculino não representa mulheres cis e trans ou pessoas não binárias, vale dizer o mesmo para a linguagem não binária, ela não representa o conjunto de homens e mulheres cis e trans, que assim se definem. Uma forma inclusiva para contemplar uma plateia de ouvintes, com identidades múltiplas, pode ser mais gentil se falarmos: “Saudações à todas, todes e todos!”.

A nova exclusão das mulheres da linguagem estaria ocorrendo para criar um novo universal que as exclui ou seria uma forma simplista de falar menos/escrever menos fomentada pela comunicação virtual? São muitas dúvidas e muitos desafios. O certo é que mulheres cis e trans irão continuar lutando por espaço social, voz e direitos, na mesma medida que a discussão sobre a linguagem não binária deve ganhar novos contornos e um debate linguístico, social e político para além da perversa uniformização humana.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Domingo, 24 de setembro de 2023 – Lua crescente

Domingo, 24 de setembro de 2023 – Lua crescente

Após cumprir as demandas de trabalho do dia (de freela e de casa), comecei hoje a ler uma edição de cartas da Virginia Woolf e Vita Sackville-West (Editora Morro Branco, 2023), que comprei ontem numa livraria de rua em BH. Elas foram amantes apaixonadas. Tem coisa mais inspiradora do que carta de mulheres apaixonadas? Li 40 páginas e quis vir aqui escrever um pouco – há dias tenho pensado nisso, mas não fiz.

Tanta coisa aconteceu do último texto para cá… em relação ao meu trabalho como preparadora e revisora (tem aparecido muitas demandas!), ao mestrado (cursos, congressos, simpósios, apresentações, encontros, lançamentos de livros…), tudo direta ou indiretamente girando em torno da Luas e do meu ofício de trabalhar com livros e estudar sobre eles e sobre as demandas feministas. Enquanto isso, na minha cabeça fica martelando o que preciso fazer para que a Luas tenha mais visibilidade, que venda livros, mas não só… (porque, pasmem, uma editora pequena não sobrevive financeiramente de venda de livros… E, poxa, a Luas é um projeto tão legal… E importante. Me apaixono todos os dias por esse projeto.) Como fazer uma das partes que tanto sonhei/sonho com a Luas acontecer, que é ser um lugar de encontro de mulheres que escrevem, profissionais da edição e da cadeia do livro, leitoras/leitores, para espairecer as dificuldades do existir e aprimorarmos os bons encontros a partir dos livros?

Ter uma editora, lançar um livro, abrir uma livraria, montar cursos etc., tudo isso é sempre um risco. Tenho pensado muito sobre isso. Tudo na vida é sempre um risco. Por que temos tanto medo? Ou melhor, do que tenho tanto medo?

Depois de um pouco mais de três anos fora de BH, volto a morar aqui, e sei que não quero viver nesta cidade como se morasse numa qualquer, ou seja, ficar trancafiada em casa, trabalhando loucamente no computador e pensando no tanto de coisas que quero fazer, imaginando, criando, mas também lamentando estar sozinha nessa (mesmo, de fato, não estando, pois tanta mulher me apoia, apoia a Luas – somos uma coisa só…), não ter dinheiro para concretizar tudo o que minha imaginação cria com a rapidez de um falcão em voo… rs.

O curioso é que, ao mesmo tempo, pela primeira vez, tenho tomado decisões para focar cada vez mais no que quero ser e fazer com a Luas, vislumbro isso com mais claridade e calma. Com certeza tem a ver com o que trilhei até aqui, com as experiências – boas e não tão boas – que me fizeram, em alguns momentos, focar, noutros, desfocar do meu projeto editorial feminista. E isso me assusta. Tenho propensão a me perder nos desejos dos outros… empolgadamente… ingenuamente… e isso não é justo com ninguém, não é mesmo?

Eu sempre quis fazer algo que transformasse o mundo e me transformasse o tempo todo, e a Luas faz isso comigo – é como uma filha, existimos juntas. E tenho refletido, criticamente, sobre a lente com que olho tudo o que me acontece e faço acontecer – pequenas transformações não seriam conquistas maiores do que penso ser? E, juro, não é só como um mecanismo para seguir em frente. É que, de fato, temos em funcionamento uma cultura cuja base e perspectivas são muito cruel, anti-vida, principalmente para as mulheres, pessoas racializadas e pessoas não homens-cis-hétero-branco. E precisamos estar o tempo todo atentas às armadilhas que nos fazem ver que o que fazemos, desejamos, criamos, somos (ou pretendemos ser) é pouco, ou menos, ou menor, enfim…

Sob esta lua crescente, começo a semana querendo fazer planos, colocar no papel, como diz… organizar as ideias, os desejos, para materializá-los. Abrir um espaço da Luas, juntar dinheiro, criar um clube do livro, grupo de estudos, podcast… encontrar, compartilhar, trocar… mudar o mundo todo um dia… um pouco… de pouco em pouco… como dá… hoje.

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   Cecília Castro – Fundadora e diretora editorial da Editora Luas. Nasceu no norte de Minas, é feminista, ativista, apaixonada por livros, poesia e literatura.

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De A Fonte da Donzela a Bela Vingança: as contradições do rape and revenge

De A Fonte da Donzela a Bela Vingança: as contradições do rape and revenge

O rape and revenge (em tradução livre, estupro e vingança) é um subgênero do horror marcado por contradições. Embora a sua data de surgimento seja incerta, ele existe desde os anos 1950, e, até meados dos anos 2000, tais histórias eram majoritariamente contadas por homens, salvo exceções como O Mundo É o Culpado (Outrage, 1950), de Ida Lupino. Contudo, mesmo os títulos assinados por mulheres eram repletos de incongruências nesse contexto.

Em um primeiro momento, os filmes seguiam a seguinte estrutura: uma mulher era brutalizada e morta. Então, o seu pai ou marido tentava encontrar uma forma de sobreviver à tragédia enquanto começava a tramar a sua vingança. Por fim, ele encontrava os culpados pelo crime para o acerto de contas. Logo, as mulheres eram mero acessório para avançar a trama dos personagens masculinos, um tipo de tropo narrativo que se tornou conhecido como Mulher na Geladeira após a publicação da HQ #54 do Lanterna Verde, de 1994.

Isso deixa claro que o estupro era visto como uma mácula na honra do homem. Essa noção, ainda que indiretamente, vinculava o valor feminino à conduta sexual e à virgindade. Além disso, como as mulheres morriam no primeiro ato, os filmes se dedicavam a mostrar os reflexos da violência na vida de outras pessoas, algo que pode ser visto em A Fonte da Donzela (Jungfrukallan, 1960). Nesse longa, Tore (Max von Sydow) é o agente da vingança porque se torna consumido pela culpa de ter enviado a filha, Karin (Birgitta Pettersson), à igreja e feito com que ela cruzasse o caminho dos estupradores. Ingmar Bergman, o diretor, tenta estabelecer um laço de empatia entre o público e Karin usando a ideia de violação da inocência, principalmente através da criação de um contraste entre a donzela e a serva da família, Mareta (Birgitta Valberg), o que deixa implícita a ideia de que algumas mulheres merecem ser violadas.

É importante pontuar que algumas dessas contradições começaram a desaparecer a partir da década de 1970, contexto no qual o rape and revenge passou a ser associado ao cinema exploitation. O exemplo mais popular é A Vingança de Jennifer (I Spit on Your Grave, 1978), que serve tanto para apresentar uma nova forma de contar histórias quanto para expor outros problemas, todos causados pela perspectiva masculina. Nesse filme, Jennifer (Camille Keaton) é uma escritora que se isola em uma casa na floresta durante as suas férias. Desde a sua chegada, ela passa a ser observada por um grupo de homens que, posteriormente, a estupra, espanca e abandona para morrer. Porém, contrariando as expectativas, Jennifer sobrevive e começa a tramar a sua vingança.

Ao mesmo tempo em que a personagem passa a ter o poder de decidir como deseja conduzir a narrativa, o male gaze está mais presente do que nunca. Existe fetichismo na forma como a violência é filmada, sempre explorando o corpo de Jennifer e as suas reações. Em um texto do site de Roger Ebert, o crítico conta como foi assistir ao longa no cinema em 1980, e este relato serve para ilustrar os problemas presentes em A Vingança de Jennifer. De acordo com ele, embora a plateia não fosse tão grande, ela era perturbadora e extremamente verbal a respeito das suas impressões. Para Ebert, caso eles realmente acreditassem nas coisas que diziam, seriam criminosos sexuais. Como ilustração, ele cita um homem de meia-idade que, após a última cena de estupro do longa, disse que já tinha visto algumas boas, mas aquela era a melhor. Além disso, em uma sequência na qual três dos estupradores incentivam o quarto a atacar Jennifer, houve muitas risadas na plateia.

Em certa medida, esse tipo de reação aconteceu porque A Vingança de Jennifer não tem qualquer cuidado com a construção dos personagens. Eles são apenas quatro homens e uma mulher envolvidos em ataques brutais, o que leva o termo exploitation ao pé da letra. Tudo é sensacionalista e tem como único objetivo o choque – ou, como ilustrou Roger Ebert, o gozo. Além disso, é importante ressaltar que, enquanto Meir Zarchi não tem o menor problema em mostrar as violações sofridas por Jennifer, quando a vingança assume o primeiro plano e os homens passam a ocupar a posição de vítimas, a barbárie ganha contornos mais sutis. Logo, é possível concluir que o estupro surge em tela como um espetáculo visual grotesco e quase glorificado.

Apesar dos problemas evidentes, é interessante destacar que algumas estudiosas, como Carol J. Clover, autora de Men, Women and Chainsaws: Gender in Modern Horror Film, defendem que tecer análises condenatórias do rape and revenge não é algo proveitoso. Ainda que este seja um estilo que presenteia o público com numerosas inconsistências, elas são provocadas pelo olhar masculino e não pelo formato em si, algo que se prova verdadeiro quando filmes mais recentes são observados.

Atualmente, esse subgênero tem sido retomado por diretoras, o que não apaga os problemas passados, mas serve para escrever uma trajetória diferente, em especial no sentido de não explorar o sofrimento de maneira fetichizada. O primeiro título feminino do rape and revenge moderno é o francês Baise-moi (Baise-moi, 2000), de Virginie Despentes e Coralie Trinh Thi, um longa brutal que retrata duas garotas marginalizadas buscando acertar as contas contra a sociedade que as violou e humilhou. Entretanto, existem produções com direção feminina que acabam tendo mais a dizer a respeito da violência contra a mulher e da cultura do estupro, como Vingança (Revenge, 2019) e Bela Vingança (Promising Young Woman, 2021). 

Esteticamente, Vingança se aproxima bastante de filmes como Planeta Terror (Planet Terror, 2007) e Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015). Isso significa que existe pouca preocupação com o realismo. Essa escolha serve à narrativa na medida em que Jen (Matilda Lutz) não tem tempo para planejar uma retaliação porque a sobrevivência se mistura à vingança nos atos finais do longa. Portanto, ela não escolhe ir atrás dos responsáveis pelo estupro, mas sim precisa caçá-los para não ser caçada graças ao isolamento geográfico local em que está. Assim, Coralie Fargeat, a diretora, transforma a personagem quase em uma heroína de videogames, o que é divertido de assistir e contribui para que o público torça pela protagonista de Vingança. Essa escolha também representa uma quebra na forma como Jen foi construída durante a primeira meia hora do filme.

Isso porque nós a conhecemos como a amante de um milionário que foi levada por ele para um retiro de caça. Nesse primeiro momento, ela é propositalmente retratada como alguém frívolo e um pouco irritante, o que parece querer desafiar a empatia do público. É como se Matilda Lutz e Coralie Fargeat quisessem testar até onde quem assiste consegue ir sem acreditar que Jen mereceu ser estuprada. Um aspecto que ajuda a reforçar essa ideia é o fato de que a dupla abre mão por completo da ideia de violação da inocência ao optar por criar uma personagem que conhece bem a sua sexualidade e as formas de usá-la a seu favor. Então, quando o abuso acontece, ao mesmo tempo em que Vingança parece querer dizer que isso era esperado, o longa lança mão de outros recursos para nos colocar ao lado de Jen. O principal deles é a escolha de nos deixar ouvir mais do que ver durante a sequência de estupro. Assim, quando a câmera da diretora abandona o quarto para mostrar o que outro personagem masculino está fazendo, o espectador o vê aumentando o volume da televisão e se sentando para assistir, algo que serve para reforçar o pacto silencioso entre os homens quando o assunto é o estupro.

Então, embora Vingança seja um filme extremamente estilizado e gráfico, ele não é explorador. Na verdade, Coralie Fargeat chega a brincar com essa ideia porque o único personagem que aparece nu durante toda a projeção é Richard (Kevin Janssens), o namorado de Jen. E isso acontece depois que a protagonista conseguiu matar Stan (Vincent Colombe) e Dimitri (Guillaume Bouchède), a dupla de amigos convidada para o retiro de caça. Ou seja, Jen e o seu amante estão sozinhos em um campo de batalha nivelado. Além disso, Richard está coberto de sangue e sendo perseguido de forma implacável, algo que remete à forma como Jennifer foi caçada em boa parte do segundo ato de A Vingança de Jennifer. Logo, trata-se de uma subversão bem-vinda e de um longa que realmente devolve algum poder para as mulheres.

Sobre essa retomada, Bela Vingança propõe algumas reflexões ousadas. Na cena de abertura, vemos Cassie (Carey Mulligan) bêbada em uma boate e ela é abordada por um homem “preocupado com a sua segurança”, Jerry (Adam Brody). Ele lhe oferece uma carona para casa e no meio do caminho propõe que eles mudem a rota e vão até o apartamento dele. Quando Cassie pede para se deitar, Jerry aproveita para beijá-la forçadamente e para começar a tirar a sua roupa. O tempo todo, nós tememos pelo que vai acontecer, e, quando a protagonista “acorda” completamente sóbria para questionar o que Jerry está fazendo, somos surpreendidos. Aos poucos, descobrimos que essa encenação faz parte de um plano de vingança maior e que Cassie vem executando-o pacientemente todas as noites desde que Nina, a sua melhor amiga, tirou a própria vida depois de ser estuprada por um colega de sala.

Inicialmente, a vingança de Cassie não é algo direcionado. Ela sequer conhece os homens com quem sai à noite. Na verdade, o seu objetivo é atacar algo que está no coração da cultura do estupro: a certeza da impunidade. Então, quando ela fica magicamente sóbria e assiste a esses caras tentando defender a sua conduta ou mesmo quando planta na cabeça deles a dúvida sobre existirem outras mulheres que adotam a mesma prática, nós entendemos que a justiça que ela deseja não é somente para Nina, mas sim para qualquer mulher que se veja exposta a esses tipos de homem, especialmente àqueles que insistem em se definir como “caras legais”. O adjetivo, entretanto, parece querer dizer somente que eles não são esquisitões em um beco escuro, mas sim rapazes bonitos que abordam mulheres por se importar com o que aconteceria caso elas permanecessem vulneráveis em um espaço hostil.

Algo bastante acertado para fazer com que o público perceba que um estuprador não tem um rosto definido foi escalar atores conhecidos por interpretar “caras legais” em produtos da cultura pop recente. Por exemplo, Adam Brody se tornou querido nos anos 2000 por dar vida a Seth Cohen em The O.C; Christopher Mintz-Plasse interpretou o desajeitado McLovin de Superbad – É Hoje (Superbad, 2008); e, por fim, Max Greenfield era o adorável Schmidt, de New Girl. Todos esses personagens são marcantes o suficiente para que os seus intérpretes sejam automaticamente associados a pessoas inofensivas e de boa índole. De certa forma, isso se conecta com a ideia presente no título original do filme, que em tradução livre significa jovem promissora. Segundo Emerald Fennell, a diretora e roteirista de Bela Vingança, quando ela estava escrevendo o roteiro, a ideia de dar este nome para o filme surgiu a partir de uma manchete de jornal que se referia aos homens que cometeram um estupro como “promising young men”. Ou seja, eles eram rapazes brilhantes que teriam a vida interrompida por um “erro” caso fossem condenados. Em momento algum a matéria se perguntava a respeito da vítima, e, dessa forma, Fennell construiu toda a narrativa do filme para não deixar que nós olhássemos para outra coisa.

Ainda que Nina comece a história morta, ela é o motor da trama e tudo acontece por causa dela. Desse modo, embora algumas pessoas tenham criticado o fato de que a vingança de Cassie se torna pessoal nos atos finais do longa, na verdade, é exatamente aí que Emerald Fennell encontra espaço para deixar o seu ponto de vista claro. Para além da cena da despedida de solteiro, existem dois passos no plano de Cassie que são brutais, mas extremamente necessários por não focarem nos homens e sim nas mulheres que contribuem para que a estrutura nos transforme em vítimas diariamente.

O primeiro desses passos é o seu encontro com Madison (Alison Brie), uma amiga da faculdade que sabia que Nina estava falando a verdade, mas escolheu ignorar e não testemunhou a seu favor quando os fatos cercando o estupro foram apurados. Inclusive, durante o encontro com Cassie, Madison volta a dizer que provavelmente nada aconteceu e Nina precisava chamar a atenção por ter se arrependido do que fez na festa. Então, quando vemos essa personagem, agora bêbada e vulnerável, sendo levada para um quarto de hotel por um homem e depois assistimos à protagonista recusando as suas ligações por dias a fio, nós entendemos exatamente o que Cassie pretendia ao armar essa situação. Na verdade, pouco importa o que aconteceu entre Madison e o homem, porque o episódio é traumático pela incerteza e, claro, por tudo o que naturalmente faria com que a credibilidade feminina fosse questionada. Inclusive, é curioso como Madison parece menos propensa a confiar na índole de um homem a partir do momento que ela se torna uma vítima em potencial.

O segundo episódio está ligado à visita que Cassie fez à reitora da faculdade na qual ela, Nina e o estuprador estudaram. Primeiramente, ela finge interesse em retomar os estudos e a partir disso introduz o que aconteceu com a amiga na conversa. Então, a reitora tenta se eximir da responsabilidade pela injustiça afirmando que casos como esse precisam ser verificados com cautela para que o futuro dos rapazes não seja arruinado. Novamente, Cassie lança mão da ideia de que a dor só é compreendida quando bate à porta e mente sobre ter deixado a filha adolescente da reitora no mesmo dormitório em que Nina foi estuprada. Imediatamente, a ideia de dar o benefício da dúvida aos homens desmorona, dando lugar ao desespero para manter a menina em segurança.

Embora tudo isso possa parecer implacável, ao mesmo tempo, é compreensível. Nina tentou justiça por todas as vias legais. De um lado, encontrou advogados dispostos a destruir o seu caráter com base em fotos postadas nas redes sociais. Do outro, encontrou a indiferença da universidade pelo caso, algo que é bastante comum na realidade estadunidense e já foi abordado no documentário The Hunting Ground (2015), uma produção que não desvia os olhos de assuntos desconfortáveis, como a predisposição das instituições de ensino para acobertar casos de estupro somente para conservar a sua reputação. Portanto, em uma sociedade na qual a vítima é a última coisa na cabeça de qualquer pessoa em uma posição de poder, resta a Cassie recorrer ao terror psicológico para conseguir mostrar o óbvio.

É por isso que o desfecho de Bela Vingança, apesar do amargor, é o único final possível para um filme que quer discutir o papel da certeza da impunidade na criação de contextos que possibilitam estupros. Ainda que algumas pessoas não gostem do tom pessimista, na verdade, não existe um cenário em que uma história como essa poderia terminar bem e Cassie sabia disso desde o momento que decidiu entrar naquela cabana – daí todos os arranjos feitos pela protagonista antes de seguir adiante com o seu plano. Então, por mais que às vezes ela se pareça com uma vingadora impiedosa, na verdade, Cassie é somente uma mulher quebrada lidando com o luto e a raiva gerada por ele de uma forma extrema. Portanto, era óbvio que ela não tinha preparo para se expor àquela situação e conseguir escapar ilesa. Todos os arranjos que ela faz antes de seguir viagem para o local em que o estuprador está dando uma festa são pensados justamente porque ela sabe que existe a chance de que a história acabe ali, com mais uma mulher pagando a conta para que homens continuem vivendo as suas vidas em liberdade.

Embora filmes como Vingança e Bela Vingança adicionem novas camadas de complexidade ao rape and revenge, afastando definitivamente o subgênero do sensacionalismo das décadas anteriores, eles deixam evidente algo bastante incômodo: as mulheres só são capazes de acertar as contas através do justiçamento. Mesmo que este recurso seja muito mais cinematográfico e catártico, ele também serve para expor o fato de que o estupro é o crime perfeito porque o que está em julgamento não é uma ação que lesa outra pessoa, mas sim a conduta da vítima. Quando se fala sobre atribuir culpa e punição, casos dessa natureza se importam pouco com fatos e provas. Na verdade, o que vale é criar uma narrativa que continue servindo à ideia de que mulheres provocam e homens são incapazes de se controlar. E ainda que a tal “vítima perfeita” realmente existisse, em alguma medida ela precisaria estar preparada para ter o seu caráter arrastado na lama se quisesse fazer justiça por meio de dispositivos legais – algo que também é mostrado de modo eficaz pelo cinema em Acusados (The Accused, 1988), em Elle (Elle, 2016) e em séries como Law and Order: SVU.

Logo, o rape and revenge atualmente é um subgênero que serve para deixar claro o quanto as mulheres ainda estão vulneráveis e têm a sua liberdade cerceada por uma sociedade que insiste em tratá-las como seres de segunda classe. Portanto, apesar do seu histórico contraditório e de alguns exemplos que continuam investindo em uma violência extrema e desproposital, trata-se de um estilo de cinema com potencial para dizer muito a respeito do mundo em que vivemos e da forma como, apesar de todos os avanços, ele continua pronto para transformar mulheres em vítimas diariamente, o que, mais uma vez, confirma a fala de Carol J. Clover a respeito de não tecer análises condenatórias. Isso não significa ignorar problemas, mas sim aprender a observar criticamente produtos culturais, bem como entender que o passado das coisas pode nos dizer muito sobre o lugar que estamos atualmente.

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Amanda Guimarães – Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), atua há mais de 10 anos como corretora de textos e redatora e escreve sobre cultura em vários sites pela internet afora desde 2012. Obcecada por cinema de horror, gatos e música dos anos 90, curte viajar para festivais e ficar em casa rodeada de suas gatas.

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Domingo, 13 de agosto de 2013, 20h30 – lua minguante

Domingo, 13 de agosto de 2013, 20h30 – lua minguante

Escrevo em diário desde os 13 anos de idade, quando tudo já era intenso e eu sempre ansiosa por me expressar. Desde criança sou curiosa, comunicativa, alegre e “justiceira” – daquelas que protegia as pessoas oprimidas, inclusive eu mesma, sentando o sarrafo em quem fazia bullying comigo. Sorrio ao me lembrar disso. Trouxe essas características sobre mim para dizer que, por tudo isso, ao meu redor sempre tive pessoas para compartilhar, falar e ouvir, as experiências da vida, alguns pensamentos, impressões. Mas, em algum momento, eu entendi que tinha coisas particulares minhas que só cabiam num caderno e que ninguém pudesse saber, inclusive alguns poemas que comecei a escrever ainda bem jovem, e parei quando adulta… A vida tem dessas coisas…

Nesta Coluna/Diário, obviamente, escreverei sobre mim e meu ofício de editar livros escritos por mulheres e fazer dessa prática minha contribuição na luta feminista para mudar o mundo. Sim, é isso que as feministas, todas, queremos, mudar o mundo.

Hoje tenho 37 anos, guardo mais de 50 cadernos (além do inacabado atual) onde escrevi somente para mim mesma – hoje bem menos que ao longo dos primeiros 15 anos de escrita em diário –, escolhi fazer graduação em Letras para estudar Literatura e tomei para mim, como ofício e práxis feminista, editar livros. Sim, me tornei EDITORA. Mas não somente uma editora, me tornei uma ativista feminista no fazer editorial (outro dia escrevo sobre as especificidades disso, que inclusive é meu tema de mestrado). Fundei, em 2019, a Editora Luas, que tem um projeto editorial feminista de publicar exclusivamente textos escritos por mulheres, de trabalhar prioritariamente com elas, de, assim, contribuir para a circulação de livros contemporâneos de literatura; livros antigos, de nossas antepassadas (reeditá-los); livros de não ficção que discutem temáticas feministas; e livros para as infâncias.

Fiz toda essa apresentação, porque sei que é um diário aberto, público, e sempre preciso (e adoro!) contextualizar rs.

Mas, o que quero “desabafar” mesmo aqui, neste espaço, é um certo cansaço… Cansaço acumulado diante de tantos afazeres por ser uma editora que tem uma equipe de duas pessoas – eu e minha irmã maravilhosamente incrível, Dani, que é responsável pela parte que sou desesperadamente ignorante: administrativo, financeiro, comercial, estoque e criação das artes de divulgação. Cansaço por enfrentar solitariamente, sabendo que muitas mulheres editoras estão como eu, as dificuldades de ser uma editora independente, pequena, mas que sonha grande grande. Cansaço por ansiar tantas publicações e ter limitação de caixa, e por isso ter de adiar ou mesmo abrir mão de algum projeto ou publicação incrível. Cansaço por estar num contexto econômico tão desfavorável para vivermos minimamente bem – nós, trabalhadoras/es de modo geral, mas destaco aqui as trabalhadoras do livro – e para nossos projetos editoriais serem autossustentáveis.

Me sinto muito muito cansada… de ter de cuidar da Luas em tantas frentes sozinha e pegar muitos freelas, prestar serviço para outras editoras, porque a Luas não se sustenta ainda, muito menos a mim… Outro dia escrevo aqui tudo que faço… hoje me sinto tão cansada que só de lembrar já cansei mais…

Ao mesmo tempo, ainda tenho muitos sonhos dentro de mim… parafraseando o poeta meu irmão gemini, o Pessoa… E sou uma eterna entusiasta de que devemos executar nossos sonhos, desejos, por mais difícil que pareça. Acho mesmo que toda pessoa que queira fazer livros, abrir uma editora, deva fazer, principalmente se for uma mulher…

Li algo muito bonito e forte hoje, da María Lugones, e vou reproduzir aqui – hoje escreverei pouco, outro dia, em que estiver menos cansada, escrevo mais – para finalizar o dia de hoje com esperança:

“Não se resiste sozinha à colonialidade do gênero. Resiste-se a ela desde dentro, de uma forma de compreender o mundo e de viver nele que é compartilhada e que pode compreender os atos de alguém, permitindo assim o reconhecimento. Comunidades, mais que indivíduos, tornam possível o fazer; alguém faz com mais alguém, não em isolamento individualista. O passar de boca em boca, de mão em mão práticas, valores, crenças, ontologias, tempoespaços e cosmologias vividas constituem uma pessoa” (Lugones, María. Rumo a um feminismo descolonial).

Um dia de cada vez, sempre e todo dia. Continuarei. Continuemos.

Avante, hermanas!

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   Cecília Castro – Fundadora e diretora editorial da Editora Luas. Nasceu no norte de Minas, é feminista, ativista, apaixonada por livros, poesia e literatura.

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Driblando o preconceito

Driblando o preconceito

O esporte é uma das instituições mais poderosas. Os clubes, as federações, confederações possuem um forte instrumento a seu favor: o marketing esportivo. Fortunas são movimentas no mundo, e sua estreita relação com o universo do ilícito é pouco comentado. No Brasil, o sonho em tornar-se um jogador de futebol da seleção é alimentado desde tenra idade nos meninos, graças ao marketing esportivo, de tempos em tempos são criados ídolos, independente de suas competências técnicas ou mesmo características morais. O importante é existir um ídolo, um símbolo onde se apegar para alimentar a crença de que o amanhã poderá ser melhor. Muitos destes grandes nomes do futebol brasileiro estiveram envolvidos em escândalos com drogas, pedofilia e estupro de vulneráveis.

O esporte de rendimento é uma das instituições onde o preconceito sexual é enraizado. Apesar do fanatismo nacionalista pelo futebol, quando podemos ter o privilégio de ver uma partida feminina dos clubes brasileiros? O futebol é um ótimo exemplo para fomentarmos uma discussão sobre as mulheres cisgênero nos esportes. Vale lembrar dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, quando a seleção feminina fez sua estreia. Foi um arraso, vitória após vitória, as atletas do Brasil conseguiram chegar à quarta colocação. Mesmo assim, fica a pergunta: o que aconteceu com aquelas jogadoras depois de uma estreia que as deixou perto das melhores do mundo? Suas histórias terminaram de um modo bem diferente daquela dos ídolos masculinos. Muitas nem sequer tiveram seus contratos refeitos nos clubes nacionais. A grande surpresa foi que clubes “famosos”, como Fluminense, Grêmio e Corinthians, seguiram as recomendações do projeto de Marketing do Saad (clube de futebol feminino de São Paulo), que dizia que, além de competência técnica, é necessário ter beleza para entrar em campo. Como o conceito de beleza para os homens (cis/hétero) é bastante questionável, podemos imaginar qual foi o destino das nossas craques lésbicas e de todas aquelas que fogem ao padrão heteronormativo.

Podemos dizer que isso faz parte de uma tradição de vigilância sobre o corpo e o comportamento das mulheres, de um imaginário coletivo no qual a passividade, o sacrifício, a submissão e a maternidade seriam dons privilegiados das mulheres. As duas primeiras publicações da Escola Militar de Educação Física (1930 e 1932) do Rio de Janeiro, sobre as mulheres na educação física, eram muito claras neste sentido: as mulheres têm a missão de fortalecimento nacional através da procriação, por isso não deveriam realizar atividade de força, pois as atividades físicas deveriam, sim, trabalhar a “bacia” e fazer a “correção das formas”, no popular, hoje, deixá-las “gostosas”. É interessante observar, por exemplo, que a dança (vista no senso comum como atividade feminina) era indicada com sérias restrições nestas publicações, pois poderia mobilizar “paixões, energia sexual, impulsos eróticos e a lascívia”.

Ignorância e preconceito à parte, as mulheres persistiram, mas veio a legislação. Em 1941, o Conselho Nacional de Desportos (CND) cria o decreto Lei 3.199, que no artigo nº 54 dizia que as mulheres não poderiam praticar esportes incompatíveis com sua natureza e, na deliberação 7, dizia que não seria permitida a prática de futebol, futsal, futebol de praia, pólo, halterofilismo, baseball e lutas de qualquer natureza. Essa aberração vigorou até 1975 e teve uma revisão insignificante em 1965, quando definiu o que poderia e o que não poderia ser jogado.

Enquanto isso, as escolas alemãs de educação física para Mulheres, em 1930, tinham o seguinte lema: “Uma garota para cada esporte e um esporte para cada garota”, elas já brigavam com as americanas que pregavam o jogo pelo jogo. Do outro lado do mundo, no Japão, em 1926, já se realizava a primeira Conferência da Kodokan (primeiro dojô, ginásio para prática de judô, inaugurado em 1882) de Judô Feminino. E, muito antes disso, as mulheres das famílias de samurais estudavam o Nagitana (luta com espada) e o Kyudo (arco e flecha), bem como mulheres que se desenvolveram na tradição do Jujitsu (no popular Jiu Jitsu). Podemos ainda tomar como exemplo Rusty Kanokogi, pioneira no judô feminino, cujo esforço se deve o primeiro campeonato Mundial de Judô para mulheres em Nova York, em 1980. Sua história marca as dificuldades pelas quais muitas mulheres atletas tiveram que superar. Em 1955, a muito custo, ela conseguiu entrar no dojô local e teve que treinar com 40 homens, muitos dos quais tombaram no tatame. Ela entrou para a história do judô, dentre muitos feitos, por participar de campeonatos contra homens e sair vitoriosa. Incansável, Kanokogi processou o Comite Olímpico do EUA e o USJudô Inc., por excluir as mulheres do Nacional Sports Festival em 1981, alegando discriminação sexual.

A questão é que os argumentos machistas sempre foram contraditórios, tentaram excluir as mulheres em função de uma suposta fragilidade física, intolerância à dor e dom da procriação, sem pensar que o próprio ato de parir envolve força, coragem e muita dor. Mas o importante é que as mulheres resistiram, tiveram seus nomes marcados nos momentos de maior alegria para quem realmente gosta de esportes, afinal quem não se lembra do quarteto que arrebentou corações, Marta, Paula, Janete e Hortência, esta que até recebeu o título de rainha do basquete? Em 1994, no Mundial de Basquete da Austrália, a seleção feminina nos proporcionou a alegria de vê-las desfilar em nossas cidades brasileiras carregando no peito uma medalha de ouro. Hortência, que com apenas 1,74 de altura, muita garra, tendo de 10 a 12 horas de treino diário, permaneceu imune aos podres jogos da instituição desportiva, de domínio, ainda, quase exclusivamente masculino.

Poderia ainda falar das Ligas e Federações de Juízes, da qual fiz parte e, como muitas companheiras, tive que trabalhar completamente só num universo dominado por homens, quando aos 20 anos de idade fui aprovada no concurso da Liga Pelotense de Futsal, em Pelotas R.S., assumindo a cadeira e o peso de estar entre as primeiras mulheres a ingressar nessa instituição. Como muitas companheiras, compartilho a ideia de que a distribuição de jogos, de categorias e de trabalho em campo é desigual, injusta e acarreta uma diferença salarial substancial. Assim é com o Comitê Olímpico Internacional, com os “grandes clubes”, com as Confederações.

Em 2010, realizei uma pesquisa documental na Biblioteca Nacional (BN) do Rio de Janeiro e encontrei matérias sobre os testes de sexo, realizados pelo Comite Olímpico Internacional. Eram testes obrigatórios para as mulheres poderem participar dos jogos e garantirem a sua “carteira rosa”, ou seja, a prova definitiva de que eram mulheres. Os testes começaram nos jogos de 1968 e se prolongaram por oito edições, até os anos 2000. Eram testes invasivos, nos quais uma comitiva de médicos, todos homens, vasculhavam e fotografaram as genitálias das atletas. Encontrei matérias que relatam que algumas fotos vazaram na imprensa e levaram muitas atletas a desistirem da carreira após tamanha humilhação pública. Um dos textos sobre a pesquisa pode ser encontrado na Revista de História da BN e também no meu site: https://patricialessa.com.br/artigos/.

Em 2023, tivemos, pela primeira vez no Brasil, a oportunidade de assistir em rede nacional a Copa do Mundo Feminina. O governo federal, pela primeira vez na história, decretou ponto facultativo nos dias que a seleção brasileira jogou. Foi algo inédito no Brasil, apesar de ser bem comum em muitos países, onde o machismo e o ódio às mulheres não são tão escancarados como nas terras brasileiras. Infelizmente, foi a última Copa do Mundo na qual a jogadora número 10, Marta, participou. Felizmente, para as mulheres, tivemos a honra de acompanhar uma carreira de glórias, de ética e de muita luta. Marta, mulher nordestina, lésbica, teve que sair do Brasil, hoje é atleta do Orlando Pride, nos Estados Unidos. No Brasil ainda é difícil para as mulheres viver do esporte, mesmo no futebol.

Mesmo com as barreiras impostas pela misoginia, Marta é recorde entre mulheres e homens, sendo eleita seis vezes a melhor do mundo, com 119 gols pela seleção brasileira. Número que a define como a maior goleadora entre mulheres e homens. Pelé fez 77 e vem logo depois. Além disso, ela ficou conhecida pela campanha contra as marcas de tênis. Ela cobre com uma fita a marca a fim de mostrar que a desigualdade no patrocínio entre mulheres e homens é imensa e, portanto, deve ser exposta publicamente.

Futebol, SK8, bodyboard, ciclismo, equitação, basquete, corrida, atletismo, halterofilismo, fisiculturismo, boxe, esgrima de espada e de sabre dentre muitos outros esportes, alguns deles até poucos anos “contraindicados” para o “sexo frágil”, são hoje praticados por mulheres que não se dobram às injustiças sociais e, com muitas dificuldades, falta de patrocínio, assédio moral e sexual dentre outras questões, levantam todos os dias com garra e força e transformam o mundo dos esportes de rendimento em um cenário renovado com a sua presença. No mês da visibilidade lésbica, vamos saudar as atletas, lesbianas ou não, que estão dando uma lição de força e resiliência dentro de um universo muitas vezes hostil.  

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Conversa suave, de Joyce Chopra

Conversa suave, de Joyce Chopra

As histórias sobre amadurecimento (ou coming-of-age), em geral, possuem enredos bastante simples: em um recorte curto da vida dos protagonistas, eles passam por momentos transformadores que contribuem para a sua saída da adolescência e entrada na vida adulta.

Assim, os eventos retratados não costumam ser grandiosos e as narrativas pertencentes a esse estilo de cinema priorizam aspectos psicológicos. Então, processos internos têm tanta importância quanto o que vemos em tela, de modo que o coming-of-age exige investimento emocional por parte do espectador.

Na década de 1980, esse “gênero” se tornou popular pelas mãos de John Hughes, responsável por clássicos como Clube dos Cinco, Curtindo a Vida Adoidado e Gatinhas e Gatões. De uma forma bem-humorada, o diretor se valia do universo de adolescentes para estudá-los e fazia isso de um modo que a sua produção fosse acessível para os jovens, que eram o seu público-alvo. Essa escolha rendia tanto sequências engraçadas, como Ferris Bueller (Matthew Broderick) levantando a multidão com Twist and Shout em um desfile, quanto momentos de muita sinceridade, como a cena em que os personagens de Clube dos Cinco conseguem se enxergar para além dos estereótipos que assumem nos corredores da escola.

Apesar de Hughes ter sido o grande destaque mainstream do coming-of-age oitentista, o estilo de cinema também foi um terreno bastante frutífero para a produção cinematográfica feminina, visto que essa década marcou o começo da carreira de diretoras como Amy Heckerling (Picardias Estudantis), Penny Marshall (Quero Ser Grande), Susan Siedelman (Smithereens), Martha Coolidge (Sonhos Rebeldes) e Joyce Chopra, que assina uma das maiores pérolas do estilo quando se fala sobre retratos de garotas adolescentes: Conversa Suave (Smooth Talk, 1985), filme que passou anos esquecido e foi resgatado em 2020 após um relançamento em festivais e mídia física.

Baseado no conto Where Are You Going, Where Have You Been?, de Joyce Carol Oates, Conversa Suave nos coloca como observadores da rotina de Connie (Laura Dern), uma garota de 15 anos que mora com a sua família em uma casa de fazenda no subúrbio. Durante as suas férias de verão, ela faz uma série de atividades comuns com as suas amigas e evita ao máximo o ambiente doméstico, tanto pelo tédio quanto por sua relação conflituosa com Katherine (Mary Kay Place), a sua mãe.

Dessa forma, os dois primeiros atos de Conversa Suave se dedicam à construção da imagem de Connie nos espaços pelos quais ela transita. Ao lado de Jill (Sara Inglis) e Laura (Margaret Welsh), a menina vaga pelo shopping da cidade demonstrando autoconfiança, usa roupas que ressaltam os seus atributos físicos e está sempre prestando atenção nos garotos ao redor, bem como tentando encontrar situações nas quais possa se colocar em contato com eles.

Entre sequências em lojas e conversas na fila do cinema, o que mais chama a atenção são os momentos nos quais a protagonista aparece no dinner à beira da estrada. Nesse ambiente, ela flerta abertamente e, por vezes, aceita deixar o local na companhia de algum rapaz. Porém, não é difícil perceber que Connie está apenas replicando um comportamento que aprendeu em revistas femininas: o seu rosto parece concentrado demais e os seus gestos cuidadosamente calculados. Além disso, uma vez que a possibilidade de um contato íntimo se torna tangível, a personagem acaba abandonando os seus encontros sem maiores explicações. Logo, é possível notar que as suas idas ao dinner têm muito mais a ver com um desejo de ser apreciada do que com um interesse por sexo.

Isso pode ser corroborado pela cena na qual ela volta sozinha para casa. Nela, Connie está caminhando por uma estrada escura e praticamente deserta quando acaba chamando a atenção de um grupo de jovens que está passando de carro. Nesse momento, a garota se irrita pela forma como é abordada, visto que acredita existir um contraste entre ouvir cantadas sendo gritadas aos quatro ventos e ditas na forma de uma conversa suave. Ainda que os dois “modus operandi” partam do mesmo tipo de ideia e tenham a mesma motivação, Connie não é capaz de perceber essa sutileza devido à sua inexperiência. Então, para ela, os garotos com quem flerta estão lhe oferecendo afeto e atribuindo importância à sua presença; enquanto os que passam de carro estão somente avaliando-a pela sua aparência, algo que não faz com que ela se sinta vista.

Vale comentar também que essa necessidade de ser apreciada tem ligação direta com a dinâmica familiar da personagem, em particular com a sua relação com a mãe, que favorece abertamente June (Elizabeth Berrige), a filha mais velha. O clima de hostilidade e incompreensão é estabelecido ainda na primeira cena em que vemos Katherine e Connie interagindo: a menina está no seu quarto ouvindo música e se preparando para sair com as amigas quando a mãe entra, olha para ela e diz que só enxerga “devaneios inúteis”. Além disso, Connie é constantemente cobrada em assuntos relativos à reforma da casa da família, em especial sobre a sua incapacidade de ajudar a acelerar o processo. Embora esses diálogos sirvam para acentuar a sobrecarga materna, visto que o pai está constantemente ausente devido ao seu trabalho, a mesma cobrança não recai sobre June, o que demonstra que Katherine apenas não sabe acessar a sua filha mais nova e prefere assumir um tom condenatório diante da sua necessidade de se encontrar enquanto sujeito.

Outro ponto interessante sobre as sequências nas quais Connie aparece convivendo com a sua família é a forma como a sua postura muda drasticamente. Com os ombros arqueados e os braços entrelaçados ao redor do corpo, ela parece deslocada e incomodada. Além disso, está constantemente voltada para dentro de si mesma e não se parece em nada com a garota extrovertida que assistimos nas demais sequências. A única coisa que Connie conserva é o seu senso de rebeldia, visto que ela se recusa a participar de atividades como o churrasco de vizinhos que o seu pai estava ajudando a organizar. E é exatamente essa recusa que abre espaço para que Conversa Suave se transforme em um thriller psicológico no seu último ato.

A mudança de tom acontece por meio da introdução de Arnold Friend (Treat Williams) na história. Ele é um homem mais velho, na casa dos 30 anos, que tem acompanhado Connie à distância. Conforme o diálogo entre os dois avança, é notável que Arnold já observou o bastante para colher elementos que pudesse usar para intimidar a menina e convencê-la a dar um passeio de carro com ele. Friend assume um comportamento predatório desde o seu primeiro momento em cena, e, mesmo se deixamos de lado a linguagem corporal, o principal elemento que denuncia as suas intenções, é curioso notar como o que ele diz pra Connie não se difere tanto do que os garotos do dinner dizem. Inclusive, o tom suave também está presente, mas no caso de Arnold ele serve para esconder a ameaça velada e o fato de que ele não está disposto a aceitar um “não” como resposta.

Os elementos discursivos e as atuações são fundamentais para que a apreensão cresça na última meia hora de Conversa Suave e quando eles se somam à ambientação, tanto pelo isolamento da casa de fazenda quanto pela fragilidade da porta de tela que separa Connie e Arnold, quem assiste se vê tão encurralado quanto a protagonista. Para além da construção da tensão, tudo isso serve também para justificar o uso de dois terços do filme para a construção de identidade de Connie. Na reta final do longa, embora ela esteja sendo lida por Friend como uma garota de “espírito livre”, ela está ocupando um espaço no qual pode deixar de lado a sua imagem cuidadosamente construída e ser o que é: uma menina de 15 anos que está procurando afeto nas pessoas erradas através das ferramentas erradas. E uma vez que não existe ninguém para impressionar ou mesmo o desejo de impressionar, Connie está vulnerável e não há nada que ela possa fazer para se esquivar da atenção indesejada.

Ainda que Joyce Chopra escolha, acertadamente, não mostrar o que acontece entre os personagens depois que eles partem para o passeio de carro, as sequências finais de Conversa Suave nos dão elementos suficientes para concluir, seja pela expressão no rosto de Connie ou por sua tentativa de resgatar momentos da sua infância através da música. Depois de voltar para casa, ela está acompanhada de sua irmã no quarto. Então, assume comportamento frágil e coloca para tocar uma canção que as duas costumavam ouvir com a mãe. A trilha sonora, bem diferente do pop rock que Connie escuta quando está sozinha, nos faz perceber que algo mudou internamente e, de repente, é como se ela não tivesse mais pressa de ser percebida como uma mulher porque, na verdade, a sua busca dizia muito mais respeito à carência afetiva do que a vontade de assumir um papel de adulta.

É bastante comum que os coming-of-age protagonizados por meninas façam esse tipo de caminho porque o crescimento das personagens não está ligado somente a uma experiência transformadora, mas à percepção de que adentrar o universo de mulheres adultas é algo muito mais complexo do que explorar possibilidades, estejam elas ligadas ao campo afetivo ou não. É também aprender a estar em constante estado de alerta e ciente de que o mundo não foi pensado para que a sua liberdade seja exercida sem ressalvas. E, principalmente, é saber navegar por essas questões sem se deixar paralisar. Portanto, o desejo de Connie por um retorno à infância encontra ecos nesses pontos, que infelizmente chegaram até ela de uma maneira violenta, mas que teriam lhe alcançado de qualquer outra forma – e isso é algo que o coming-of- age das últimas duas décadas demonstra com clareza por meio de títulos que vão do horror de It – A Coisa (It, 2017) ao desconforto de Oitava Série (Eight Grade, 2018).

Então, o que separa Conversa Suave de outras histórias sobre amadurecimento é o entendimento das implicações de crescer sendo uma garota em um mundo que sequer oferece opções saudáveis de inspiração. Joyce Chopra consegue colocar essas discussões nas entrelinhas do seu filme sem se esquivar de temas difíceis ou tratá-los de maneira panfletária e verborrágica, o que seria um equívoco em uma arte que é, antes de tudo, imagem. Através dessas escolhas, a diretora demonstra entendimento não só de Connie, mas de uma geração que cresceu em um período histórico turbulento e marcado por diversas mudanças coletivas de mentalidade que impactaram significativamente a maneira de sujeitos jovens de se colocarem no mundo e, claro, à forma como o mundo respondia a essas novas formas de existir.

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Amanda Guimarães – Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), atua há mais de 10 anos como corretora de textos e redatora e escreve sobre cultura em vários sites pela internet afora desde 2012. Obcecada por cinema de horror, gatos e música dos anos 90, curte viajar para festivais e ficar em casa rodeada de suas gatas.

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