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Colunas

Por que marchamos?

Por que marchamos?

 

“Esse é o resumo da nossa chegância. Mulherizar e indigenizar. Somos mulheres bioma, mulheres terra, água. Somos mulheres ancestrais.”

Célia Xakriabá

 

As mulheres, cis e trans, formam multidões marchando pelas ruas ao redor do mundo e adentrando nos espaços virtuais com muita criatividade, arte e ativismo social. As reivindicações são pontualmente localizadas ao sabor do tempo e da geografia. Nem todas se definem como feministas, mas, certamente, as feministas e/ou transfeministas ocupam lugares de destaque no agenciamento, na preparação e produção destes megaeventos sociais. Suas agendas são múltiplas: lutas por direitos, contra o feminicídio, contra o racismo, pela ecologia, pelos direitos dos povos indígenas, contra o estupro, pró-aborto legal etc.

Um ótimo exemplo foi a multidão que tomou as ruas de Buenos Aires, na Argentina, no dia 4 de junho de 2018, reivindicando mudanças na legislação que regulamentava a prática do aborto. Seu símbolo era o lenço verde e as vozes entoavam: “aborto legal no hospital!”. O lenço é emblemático naquele país. Lembremo-nos das Madres de la Plaza de Mayo (Mães da Praça de Maio). Elas formaram um agrupamento de mães em busca de seus filhos e filhas assassinados/as ou desaparecidos/as, no período entre 1976 e 1983, pelo terrorismo de Estado perpetrado na ditadura militar. O movimento começou silenciosamente, pois falar e protestar era arriscado. Foi então que as mães adotaram os lenços brancos como forma de se identificarem e se encontrarem clandestinamente para fugir da repressão, para trocarem informações e levarem suas demandas para a imprensa internacional. As mulheres de lenços verdes, assim como as mães de lenços brancos, escreveram um novo capítulo na história. Em dezembro de 2020, foi aprovada a lei de interrupção voluntária da gravidez nos hospitais da Argentina.

Muitos séculos antes das reivindicações na Argentina uma marcha além-mar marcou a história mundial. Cito a Marcha das Mulheres sobre Versalhes, realizada nos dias 5 e 6 de outubro de 1789. Aproximadamente 7 mil mulheres iniciaram o movimento no rumo do Palácio de Versalhes. Elas reivindicaram alimento para a população e mudanças constitucionais. A Revolução Francesa já estava em curso. O povo vivia na miséria e passava fome enquanto a nobreza e o clero ostentavam luxos absurdos. A notícia de um banquete em comemoração pela chegada de uma infantaria, que prometia proteger o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta, causou revolta popular especialmente entre as mulheres que não tinham pão para alimentar as suas famílias. Cerca de 20 mil pessoas aportaram nos portões do palácio exigindo mudanças sociais e alimento para o povo.

Anne-Josèphe Théroigne de Méricourt (1762-1817) foi uma das lideranças do movimento. Ela era uma campesina que havia participado da Tomada da Bastilha e, mais adiante, estaria na ocupação do Palácio das Tulherias. Seus discursos arrancavam aplausos da multidão. Ela dizia que era preciso levar “o padeiro, a padeira e o pequeno aprendiz” até Paris, fazendo referencia ao rei, a rainha e ao delfim. A ocupação em Versalhes foi sangrenta. Conta-se que aproximadamente 2 mil guardas tiveram as cabeças arrancadas e fincadas nos arredores do palácio. O rei, temeroso, assinou a afamada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Alguns anos depois, em 1791, Olympe de Gouges (1748-1793), pseudônimo de Marie Gouze, escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. A declaração rendeu-lhe a morte na guilhotina e só foi, parcialmente, agregada a legislação nos anos 1980 – período marcado como a década dos direitos das mulheres, sobretudo, com o início das Conferências Mundiais da Mulher alavancas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Muito se sabe sobre a Revolução Francesa, as cabeças dos nobres rolaram e a burguesia tornou-se uma classe de prestígio. No entanto, poucas pessoas sabem sobre a Marcha das Mulheres sobre Versalhes e o papel das lideranças femininas na insurreição e, em consequência, a abertura das portas para inclusão das mulheres como dignas de direitos.

Como havia escrito no início, cada lugar e temporalidade carrega suas bandeiras de luta. No dia 3 de abril de 2011 em Toronto, no Canadá, aconteceu uma manifestação transnacional a SlutWalk – divulgada no Brasil como Marcha das Vadias (MdsV). É importante recordar que as Marchas das Vadias tomaram as ruas do mundo depois de um estupro em que a vítima foi acusada pelo policial que a atendeu. Quando o agente judicial questionou sobre qual roupa ela estava vestindo no dia da violência sexual que havia sofrido, ele, automaticamente, a responsabilizou de seduzir o criminoso. A violência machista é reforçada e reafirmada no questionamento que se faz à vítima sobre suas roupas, local e horário de circulação na tentativa de demarcar o espaço público como local não apropriado para as mulheres, local perigoso, local de exclusiva circulação para os machos sedentos por sexo e sangue.

A MdsV sucedeu em um período de renovação nas ações marcadas pelos artivismos feministas, nestes os corpos das mulheres são territórios de paz e de luta social, tendo em vista que buscam o respeito e reivindicam direitos. A arte, o ativismo feminista e a educação libertária nos permitem, assim, entender que a construção de um mundo melhor passa pela pluralidade das vozes sociais, pela rebeldia como ato político e por práticas de resistência que podem ecoar rapidamente via redes sociais. 

A MdsV para Margareth Rago, em sua obra A Aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade, “traz algumas novidades no modo de expressão da rebeldia e da contestação, caracterizando-se pela irreverência, pelo deboche e pela ironia. Se a caricatura da antiga feminista construía uma figura séria, sisuda e nada erotizada, essas jovens entram com outras cores, outros sons e outros artefatos, teatralizando e carnavalizando o mundo público”.

Um artivismo posterior, com a marca de uma geração que faz sua arte circular de forma veloz pelas redes sociais, causando impacto ao redor do mundo, foi a ocupação das ruas proposta pelas feministas do Coletivo Las Tesis, do Chile. No dia 25 de novembro de 2019, elas ocuparam as ruas e os espaços virtuais com a performance Un violador en tu camino. Mulheres cis e trans, nos dias que seguiram, ocuparam as ruas e praças na América Latina, em Paris, Nova Iorque, Madri, em muitas cidades brasileiras, dentre outros tantos sítios geopolíticos e virtuais. Com uma sequência de dança sincronizada e simples, com uma venda preta nos olhos, ao som de tambores, elas cantavam, entoando a frase “o estuprador é você!”. O artivismo feminista tornou-se, em poucos dias, uma ode contra o feminicídio, deixando a mensagem feminista novamente nas ruas e na web: “a culpa não é minha, nem de onde eu estava e nem de como me vestia”.

No Brasil a realidade social das mulheres é muito complexa. Lemos no site da Sempreviva Organização Feminista (SOF): “Uma mulher é morta a cada nove horas durante a pandemia no Brasil”. A Revista Afirmativa apresentou, em 2021, alguns dados alarmantes: 74,7% das vítimas de feminicídio têm entre 18 e 44 anos; 61,8% são mulheres negras; 81,5% são assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros; 8,3% são mortas por familiares e em 55,1% dos casos o assassino usa arma branca. Segundo o Observatório do Terceiro Setor, o Brasil ocupa o 2º lugar no ranking mundial de exploração sexual de crianças. Por ano são registrados mais de 500 mil casos de exploração sexual de crianças e de adolescentes. São mais de 1.369 casos por dia. Estima-se que somente 10% deles sejam notificados.

Devemos lembrar que o Brasil é um território coronelista e latifundiário, nas mega fazendas de sangue e de veneno existe toda ordem de barbárie: exploração sexual de crianças, trabalho análogo ao escravo, safaris clandestinos, narcotráfico etc. Segundo a Agência Patrícia Galvão, estima-se que somente 10% dos casos de estupro sejam registrados. A subnotificação ocorre por vários fatores, dentre eles: os estupradores são homens conhecidos, o criminoso ameaça a vítima e sua família de morte, a vergonha de ter o corpo violado etc. Levando o percentual em conta, seria em torno de 822 a 1.370 estupros por dia no Brasil. Importante registrar que, após o Golpe de Estado que destituiu a Presidenta Dilma Roussef e preparou a tomada do poder pelo narcogoverno, pela bancada ruralista e pela bancada evangélica, a violência sexual contra mulheres e crianças aumentou vertiginosamente. A liberação de armas de fogo foi o estopim para o aumento de assassinatos e favoreceu o narcotráfico. Violências fomentadas pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. A relação de sua família com a morte de Marielle Franco ainda não foi esclarecida, muito embora alguns livros apontem a relação, como, por exemplo, Mataram Marielle: como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca, de Chico Otavio e Vera Araújo.

Voltando para as marchas, destaco a Marcha Internacional Mundo de Mulheres por Direitos realizada em Florianópolis, Santa Catarina. Entre os dias 30 de julho a 4 de agosto de 2017, aconteceu o 13º Congresso Mundo de Mulheres (MM) e o 11º Seminário Internacional Fazendo Gênero no campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A temática do evento foi “Transformações, Conexões, Deslocamentos”. O MM foi realizado pela primeira vez na América do Sul. No quarto dia de evento, aconteceu a marcha que reuniu mais de 10 mil pessoas no centro de Florianópolis reivindicando direitos. Havia gente de todos os cantos do mundo levando as suas bandeiras de luta, suas artes, cores e sons para as ruas da capital da Ilha da Magia. Ao final do percurso, houve uma roda de dança circular com mulheres indígenas, que ritualizaram o momento cantando, dançando e queimando incenso. Quero destacar que Marielle Franco estava marchando entre nós. Quem é da luta não foge da caminhada!

E, por fim, quero contar do encontro de duas grandes marchas de mulheres que aconteceu em 2019. Trata-se da 6ª Marcha das Margaridas e da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas.  Do dia 9 a 13 de agosto, as mulheres indígenas reuniram diferentes povos em torno da temática: “Território: nosso corpo, nosso espírito”. E nos dias 13 e 14, a Marcha das Margaridas caminhou em luta e sororidade, reunindo as mulheres do campo, da floresta, das águas, as indígenas e as quilombolas. Seu tema foi “Margaridas na luta por um Brasil com Soberania Popular, Democracia, Justiça, Igualdade e Livre de Violência”. As ruas da capital federal foram tomadas por mais de 100 mil pessoas durante cerca de 4 quilômetros, houve uma concentração na Esplanada dos Ministérios com diversas atividades. A imagem que ilustra este texto é deste encontro sublime e marcante na história deste país.

Em 2023, a Marcha das Margaridas será realizada em Brasília nos dias 15 e 16 de agosto e terá como lema a reconstrução do Brasil. Estima-se que serão mais de 150 mil pessoas reivindicando e lutando por um país mais justo e igualitário, com redução da violência e alimento para todas as bocas. As mulheres caminham irmanadas há séculos em todos os rincões do planeta, buscando por justiça social, direitos e pela abolição do feminicídio, da pedofilia e do estupro. Espera-se que os homens cis/hétero evoluam e consigam entender que somos multidão e não vamos parar de andar na direção de um mundo melhor. Retomando a frase inicial de Célia Xakriabá, vamos mulherizar o Brasil com a nossa chegância honrando as nossas ancestrais. Respondendo à questão do título: marchamos pelas irmãs que lutaram por nós, marchamos pelas que lutam pela vida, pelas nossas vidas, marchamos pelas que virão.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Antropornografia na obra de Carol Adams

Antropornografia na obra de Carol Adams

Mesmo se estivermos famintas, não somos pobres de experiência.

Gloria Anzaldúa

Uma das mais importantes autoras que estuda a relação do sexismo e do especismo é a feminista vegana Carol Adams. Ela cunhou o termo “antropornografia”, que significa mostrar animais pedindo para serem comidos. As relações entre mulher e natureza têm raízes na filosofia humanista e recebe grande apoio das ciências modernas, principalmente da psicanálise. Ecofeministas como Bila Sorb, Vandana Shiva e Maria Mies apontam que existe uma íntima ligação entre o paradigma humanista e a cultura patriarcal, discussão também presente na obra de várias feministas, dentre elas de Donna Haraway. Essa ligação manifesta-se na obsessão pela dominação e controle tanto sobre as mulheres quanto sobre a natureza e todas as outras espécies.

Por especismo se entende a ideia de promover a espécie humana como superior a todas as outras e, além disso, deliberar sobre todas as outras. Incluindo o direito sobre a vida e a liberdade. É a ideologia que justifica a exploração de uma espécie sobre as demais. Essa terminologia é assim expressa nos Cadernos Antiespecismo (Les Cahiers Antispécistes: Rèflexion et action pour l´égalité animale), criados na década de 1990 na França:

O especismo é para a espécie o que o racismo e o sexismo são respectivamente para a raça e para o sexo: a vontade de não levar em conta (ou de levar menos em conta) os interesses de alguns para o benefício de outros, alegando diferenças reais ou imaginárias, mas sempre desprovidas de conexão lógica com aquilo que elas são consideradas. Na prática, o especismo é a ideologia que justifica e impõe a exploração e o uso dos animais pelos humanos com meios que não seriam aceitos se as vítimas fossem humanas.

Um dos marcos das mudanças em relação ao tratamento dado aos animais foi a promulgação da Declaração Universal de Direitos dos Animais pela UNESCO em 15 de outubro de 1978, em Paris. O patriarcado influenciou nossas ideias mais fundamentais sobre a natureza humana. Nessa relação as mulheres estariam mais próximas dos animais, por isso são, na nossa cultura, associadas a nomes como vaca, galinha, égua, potranca, cachorra.

Para Carol Adams, as pessoas que comem animais estão se beneficiando de um relacionamento dominante/subordinado. Nossa cultura encoraja a invisibilidade das estruturas físicas, permitindo assim uma completa negação da individualidade animal, até que isso não seja visto como subordinação. A carne é percebida como a razão ontológica para a existência dos animais, indica que eles existem para serem comidos. Para proposta ética de cuidado feminista, uma das coisas de que precisamos é questionar a ordem da racionalidade ocidental norteada por desdobramentos filosóficos e científicos misóginos. Por isso é necessário problematizar o tema nos quadros de uma epistemologia feminista, como propõe a bióloga e feminista vegana. Não vamos quebrar paradigmas usando teorias que negam e invisibilizam as mulheres e os animais, por isso trabalhamos com as teorias feministas contemporâneas. É preciso questionar a objetividade dos paradigmas dominantes que coisificam mulheres e animais.

Conforme Adams, a antropornografia é um dos alicerces do patriarcado. Assim é que para essa autora comer carne exercita as representações de dominação/subordinação. A carne é a reinscrição do poder masculino em cada refeição. Se carne é um símbolo de dominância masculina, então a presença da carne proclama o desempoderamento das mulheres. Na capa do seu livro As políticas sexuais da carne há uma ilustração que apareceu originalmente em uma toalha de praia em 1969, mostrando uma mulher dividida em cortes de “carne” como a imagem dos cortes da carne de vaca, onde se lia o subtítulo “Qual é o seu corte?”. Seu livro analisa imagens publicitárias em que os animais abatidos para o consumo humano são representados como “felizes” em sua condição de alimento para a espécie humana. Outras imagens de alimentos derivados de carne associam o corpo feminino como comida.

Outra importante estudiosa na área é Naama Harel, da Universidade de Israel. Segundo a autora, o mito de que os homens “necessitam” da proteína derivada da carne coloca-os à frente da problemática da exploração animal e das questões ambientais, como a devastação das florestas para a criação de gado.

Adams concorda que a fonte desse mito reside numa progressão da importância dada do papel do gênero masculino na produção de alimentos. Ambas concordam que, quanto mais uma sociedade dependia de recursos alimentares vegetarianos, mais efetiva era a importância do papel econômico das mulheres. Para ambas, a carne representa um poder simbólico. A caça sempre foi um problema comum entre os homens, tanto que ainda hoje é considerado um hobby para os homens endinheirados que pagam fortunas para os safáris de caça aos elefantes e outras espécies em vias de extinção. Por outro lado, a caça, também, representa a dominação dos homens sobre as mulheres.

Naama Harel argumenta que os homens falam, representam e tratam as mulheres como caça e assim realizam metaforicamente a dominação. A própria terminologia representa uma ordem hierarquizada, ordenada sequencialmente assim: homens, mulheres e, por último, animais. Nessa ordem, os homens assumem um duplo significado, como os membros da espécie humana e como os membros do gênero masculino. Enquanto categoria, ela é vista como oposta aos membros da espécie feminina e aos animais, colocando-os em aproximação. Assim: “(1) homens ≠ mulheres, (2) homens ≠ animais, (3) mulheres = animais”.

Ela nos indica algumas metáforas, o sexo não raras vezes é denominado de prazeres da carne, luxúrias da carne, fome sexual. Quando um homem procura uma mulher para uma noite, ele é visto como o caçador, sua arma é o falo, símbolo da masculinidade e da virilidade. Se a mulher se dá facilmente, então ela é a presa fácil. Por isso, muitos eventos em que o corpo feminino é destaque são nomeados de mercado de carnes, açougue. A antropornografia indica que mulheres e animais estão na base da economia que é movida pela indústria do sexo, pelo mercado de carnes e de corpos.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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MANIFESTO FEMINISTA PELA VIDA

MANIFESTO FEMINISTA PELA VIDA

Em fevereiro de 2022, quando a guerra entre a Rússia e a Ucrânia começou, alguns grupos e feministas independentes fizeram circular a arte de Laura Árbol que retrata a imagem de um corpo de mulher cis, associada à origem da vida, e de um homem cis, associada à origem da guerra. A imagem nos remete aos famosos quadros A origem do mundo (1866)de Gustave Courbet e A origem da guerra (1989), da artista francesa Orlan. Ela expõe o desconforto das artistas contemporâneas que adentram o espaço do museu como objeto do olhar masculino e, vai além, utiliza o pênis como metáfora de arma de guerra. A imagem não é mera reprodução binária, mas faz alusão à materialidade dos corpos cis e suas conexões com a vida e a morte.

Quando a imagem circulou nas redes sociais, vimos uma avalanche de ataques antifeministas. Após um ano de guerra na Europa, é importante retomarmos a análise para pensar como estamos lidando com a escalada de violência e qual a relação entre a liberação de armas e o avanço do feminicídio, do estupro e do extermínio em massa.

Começo perguntando: por que defendermos as nossas vaginas e sermos opostas às guerras causa tanto desconforto? Qual a relação dos ataques virtuais ao conteúdo da imagem que circulou com relação à nova onda antifeminista? Devemos aceitar caladas, enquanto nossos corpos são açoitados? Mulheres cis e trans são mortas e violadas todos os dias no Brasil, no entanto ainda é mais chocante dizer que a vagina está associada à vida do que olhar os altos índices de feminicídio e de transfobia. É importante ressaltar que algumas mulheres trans, por opção ou falta de opção, não fazem a cirurgia de redesignação, mas, já são percebidas e vivenciam a experiência de ser mulher em um mundo misógino. Neste caso, podem ainda serem acusadas de recusa em adotar hábitos consolidados pela masculinidade tóxica.

Querem nos fazer acreditar que a continuidade da exploração da vagina e do útero como depósito de sêmen para gerar o filho do Homem cis não é um problema de gênero (homem em maiúsculo serve para identificar o homem como humanidade). O Homem da Revolução Francesa, que, via razão, pretendeu substituir Deus. Ele é o filho daqueles que nos queimaram em piras, enquanto gritavam histéricos: queimem no inferno bruxas! Indico o livro Ronda das Feiticeiras, da Norma Telles, para o estudo sobre um dos maiores extermínios de mulheres na história.

Para Carole Pateman o contrato sexual moderno garantiu ao patriarca a posse dos corpos das mulheres e das suas filha/o/s. Foi um negócio lucrativo para o patricapitalismo moderno a criação da família burguesa tradicional, garantindo ao patriarca uma mulher para copular, para trabalhar gratuitamente para ele dentro do lar sagrado e, ainda, gerar a/o/s filha/o/s “dele” para ele usar a seu serviço.

Enquanto a mãe ficava circunscrita ao reduto do lar, as prostitutas eram usadas por ele, que pagava por mais sexo. As solteironas eram encarceradas para todo o sempre nos hospitais psiquiátricos com aval da indústria médica e farmacoquímica, então nascente. Seus corpos serviram como cobaias para o patriarca brincar de cientista e inventar modos de gerar mais lucro, fundamentados na teoria de Hipócrates, que pensava existir uma suposta perturbação no útero que criaria um distúrbio cerebral.

No final do século XIX e início do XX, foi inventada a histeria, que seria um suposto distúrbio mental das mulheres causado pelo útero. O médico francês Jean-Martin Charcot transformou o Hospital Psiquiátrico Pitié-Salpêtrière no seu laboratório, as cobaias eram as mulheres que não obedeciam ao patriarca. Elas eram transformadas em histéricas, e, portanto, justificava o sequestro, a tortura, a prisão perpétua, os assassinatos em massa ou a medicalização forçada, para servir ao nascente mercado da indústria farmacoquímica.

Como as solteironas, as lésbicas foram catalogadas como doentes e também foram usadas como cobaias da ciência moderna. As lésbicas foram classificadas pelos juristas como criminosas. Afinal, é uma “aberração da natureza” não se curvar diante do altar do Santo Pênis. Por isso, o patriarca criou o estupro corretivo, já que o problema era que as lesbianas nunca foram “comidas” por um macho de verdade. O destino das lésbicas seria o estupro seguido do encarceramento na cadeia ou no hospício.

As mulheres trans ainda são acusadas de serem foragidas da masculinidade, da virilidade e, portanto, da supremacia masculinista, por conta disso são relegadas a toda sorte de discriminação, violência e perseguição. A transfobia é um desafio a ser enfrentado no Brasil, um dos países que mais mata e violenta as pessoas transexuais e travestis.

A imagem é bem clara, mas já que o desenho não foi compreendido pelas pessoas que defendem o Santo Pênis, pergunto: o pênis, simbolicamente, não é uma arma de guerra? Não é com ele que os homens estupram crianças, mulheres, pessoas não humanas (termo criado por Barbara Smuts)? Explico um pouco mais: o pênis como arma de guerra é uma metáfora que indica os usos para todos os tipos de violação aos corpos vulneráveis. Falo aqui do pênis e não do dildo ou dos similares criados pela indústria do sexo ou pela indústria médica.

A exploração patricapitalista da indústria médica e farmacoquímica das barrigas de aluguel, que rendem bilhões é outra criação do patriarca para serem os donos das crianças que foram geradas nos úteros. Teriam úteros e vaginas as pessoas que lucram nestes vários mercados de carnes e de corpos? No livro da escritora mexicana Patrícia Karina Vergara Sánchez Siwapajti (Medicina de mulher): Memória e teoria de mulheres, lançado no Brasil pela Editora Luas, a autora aborda a questão. A medicina viu nos corpos com útero mais um mercado fértil e transformou o processo de gestação em um negócio lucrativo, que rende milhões aos doutores e empresários.

O serviço doméstico não remunerado ainda é uma realidade para a massa das mulheres com útero e vagina. A diferença de salários entre homens e mulheres ainda é discrepante, muito embora a luta feminista anarquista, libertária, marxista, sufragista tenha começado a denunciar a desigualdade entre homens e mulheres no século XIX. Explico: não se usava o termo gênero naquele momento histórico.

Os postos de decisão, os cargos políticos, no judiciário e nas várias instituições ainda são ocupados majoritariamente por homens cis. Esses corpos cis com pênis, ao serem quem comanda a política, a polícia e o judiciário, aceitam com naturalidade que os corpos matáveis sejam, majoritariamente, os das mulheres – cis, trans, negras e indígenas no Brasil.

Os ataques aéreos, realizados pelas pessoas do agronegócio, que jogam veneno nas aldeias indígenas, nos povos quilombolas e ribeirinhos, são realizados por mulheres pilotando os aviões? Quem realiza às queimadas criminosas, o desmatamento das florestas brasileiras? De quem são as megafazendas que estão invadindo outras terras para ampliar seu capital? Muitas mortes estão sendo invisibilizadas nesse discurso antifeminista de luta pelo pênis. Não foi o Francis Bacon quem disse que a natureza e as mulheres deveriam ser dominadas, exploradas e torturadas? A modernidade foi construída reproduzindo o discurso de que as mulheres, as pessoas não europeias, não brancas e a natureza são selvagens que seriam controladas à luz da racionalidade do homem cis, branco, da elite.

Após a Revolução Francesa, em 1789, a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão era uma forma de garantir direitos aos homens brancos europeus heterossexuais. Pessoas não brancas e que não nasciam com pênis não eram consideradas cidadãs dignas de terem direitos. Foi por entender que as mulheres deveriam ter direitos e serem consideradas cidadãs que Marie Gouze escreveu A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. A ousadia custou-lhe a vida, ela foi guilhotinada na praça da Concórdia, em Paris, no dia 3 de novembro de 1793. Mesmo usando o pseudônimo de Olympe de Gouges, ela não escapou ao destino de nascer em um corpo matável.

A palavra feminicídio foi uma longa batalha feminista para ser dicionarizada no mundo à fora e, mais ainda, no Brasil. Para ser contemplada pela legislação e o assassinato ser classificado como feminicídio, ainda estamos na luta, pois não basta a lei estar escrita se não for efetivada. Os números apontam o aumento de mortes, mas poucas vezes o crime é classificado como feminicídio.

Quando uma mulher cis estuprada é humilhada pelos doutores diante do tribunal e os criminosos são blindados por pertencerem a famílias de classe privilegiada e de pele branca e são transformados em vítimas, todas as pessoas que nasceram com útero e vagina são reafirmadas como corpos estupráveis. Muitos ainda insistem em dizer que homem cis equivale à humanidade. E assim, a voz das mulheres segue silenciada.

Quem criou a teoria queer foi uma feminista norte-americana. Teresa de Lauretis, nos anos 1990, ampliou o campo da Epistemologia Feminista para explicar o estranhamento e o impacto causado pela multiplicação de gênero favorecida pelos movimentos sociais na segunda década do século XX. Feministas como Oyèrónke Oyěwùmí e María Lugones escrevem que o binarismo de gênero é uma construção moderna criada para justificar o controle sobre os corpos das mulheres. Em algumas comunidades no continente Africano e em algumas tribos indígenas no continente Americano, havia outros gêneros para além daqueles criados pelo homem heterossexual, branco e europeu antes das invasões dos colonizadores. Eles aqui vieram com a missão de roubar terras, dizimar povos, e, como consequência, estupravam e escravizaram as mulheres cis não europeias que aqui viviam e as que foram sequestradas da África.

Estamos com a possibilidade de vivenciar a Terceira Guerra Mundial. As experiências do fascismo, do nazismo, do franquismo, das ditaduras impostas na América Latina não foram suficientes. Os donos do poder, os magnatas da indústria bélica querem mais sangue para aumentar o lucro. Mas, o perigo somos nós, as feministas. Novamente somos o alvo e os nossos discursos continuam sendo distorcidos para justificar o antifeminismo, a misoginia e a continuidade da exploração de nossos corpos.

Em tempos de guerra, mirar na cabeça das mulheres, que se orgulham e aprenderam a amar seus corpos, é mais uma violência. Sou uma feminista pacifista ecovegana, me tornei vegana por empatia às outras espécies, sou contra todo o tipo de violência, seja ela física, psicológica, moral, patrimonial, sexual. Portanto, nesta pequena reflexão sobre a imagem, quero dizer que a vagina e o útero nos permitiram estarmos aqui, independente do gênero, etnia ou classe social.

O pênis, no patricapitalismo, é usado como arma de guerra, tendo em vista que a indústria bélica e farmacoquímica foi uma invenção moderna, mesma época em que criaram o binarismo de gênero, hierarquizaram os gêneros, em masculino racional versus feminino sentimental. Todos os outros gêneros foram classificados como aberração. Esta foi uma invenção da ciência feita pelo homem heretossexual, branco, burguês e europeu. A epistemologia feminista se empenhou, desde o fim do século XIX e início do XX, na elaboração de uma crítica ao modelo científico moderno, comprometido com o capitalismo e com o industrialismo. As feministas criaram os Estudos de Gênero e a Teoria Queer para explicar que somos uma multidão complexa e não binária, a questão política deve ser sempre pensada na interseccionalidade de gênero, etnia-raça, classe e espécie.

Não foram as mulheres cis e trans que inventaram a pólvora, a bomba atômica, armas químicas, o canhão, os caças de guerra! Não foram mulheres que jogaram duas bombas atômicas no Japão! Não são as mulheres que lideram o ranking de estupros de crianças, de mulheres, de pessoas não humanas! Não são as mulheres que lideram o ranking do extermínio de mulheres (feminicídio), o extermínio de pessoas não brancas (racismo), o extermínio de pessoas LGBTI+!

Já tivemos duas Guerras Mundiais, duas pandemias, estamos vivendo o problema climático e vendo ele se agravar sobre os nossos lombos marcados pelo chicote do opressor. Mas, como dizia Paulo Freire, “o sonho do oprimido é virar opressor”. No altar do Santo Pênis, as armas de destruição em massa estão novamente nas telinhas, nas telonas e nas redes sociais para divertir as mentes sádicas e doutrinadas para se contentarem em confundir conhecimento com informação.

Enquanto isso, a indústria bélica e a indústria farmacoquímica avançam sem parar, dizimando as florestas na África, na América Latina, na Ásia, promovendo guerras e extermínios em massa para que a elite empresarial gere mais lucro para os poucos bilionários. Eles sobrevoam alegremente em suas naves, almejando a invasão de outros planetas para esgotarem outras fontes naturais e transformarem em royalties. Eles se escondem, covardemente, nas costas de sua guarda pretoriana contemporânea vestida de robocop-militar ou se acovardam escondidos em seus bunkers particulares.

Sou pacifista e não me curvo ao altar bélico do Santo Pênis! Como ecofeminista, luto para a cura planetária, independente da etnia-raça, classe, gênero ou espécie, sou contra o extermínio de pessoas promovido pelos homens brancos, cis, privilegiados. Pachamama está em chamas, queimando, fruto da ganancia promovida pelo patricapitalismo. Deveríamos nos preocupar coletivamente e trabalhar pelas soluções e redução dos danos da “emergência climática”, termo adotado desde 2019, inspirado nas proposições de Greta Thunberg.

A imagem não foi criada para atacar ninguém, pelo contrário, expõe um dos problemas da binarização de gênero, que é a guerra, a venda de armas a serviço dos narcogovernos, das disputas de territórios promovidas, majoritariamente, pelos homens cis. Não sou defensora do patriotismo e nem abordo aqui qual dos lados está certo ou errado, minha pátria é o Universo, assim aprendi com Maria Lacerda de Moura e com o anarquismo pacifista. Como a Epistemologia Feminista colaborou para a luta LGBTI+, para a criação das Teorias de Gênero e Queer e para a crítica da invenção moderna da divisão social binarizada, mas isso não bastou, as mulheres seguem sendo o alvo, mesmo diante da ameaça de uma Terceira Guerra Mundial. Por tudo isso, decido que a partir de hoje a minha identidade de gênero é feminista.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Conexões entre especismo e masculinidade cis tóxica

Conexões entre especismo e masculinidade cis tóxica

“Um touro currado na cruz” – desenho de Einsenstein presente no livro A farra do boi – Do sacrifício do touro na antiguidade à farra do boi catarinense, Nise da Silveira (coord.).

A Farra do Boi é uma prática que consiste em soltar o animal em local aberto, fazendo com que ele corra atrás dos homens que participam desta ação. O boi é torturado e agredido violentamente até ficar exausto, na maioria das vezes morre durante a tortura. Em alguns casos, os homens envolvidos sofrem acidentes graves. No Brasil, a prática é criminalizada. Mesmo assim, no período da Quaresma, ela é realizada clandestinamente.

É importante ressaltar que a maioria esmagadora dos envolvidos nestes eventos clandestinos são homens cis. A Farra do Boi passou a ser muito combatida a partir da década de 1980, quando entidades de proteção aos animais e a sociedade em geral iniciaram a realização de campanhas de conscientização. Por meio da mídia, a polêmica teve repercussão tanto nacional quanto internacional.

Em 2023, alguns grupos atuaram nas redes sociais acolhendo e encaminhando denúncias. O grupo do Instagram @brasilcontrafarra fez um comunicado público informando que todo ano em Santa Catarina os mesmos grupos e financiadores realizam a tortura no mesmo local, e, diante dos olhos indignados da população que é contra, denúncias são feitas, mas nada acontece. Deve haver muito dinheiro envolvido para que o poder público se silencie diante de tamanha brutalidade. Não por acaso, sabemos que o estado de Santa Catarina foi um dos que mais apoiou o neofascismo bolsonarista.

A ONG Anti-Defamation League (ADL) realizou um levantamento de dados em 2022 e concluiu que o Brasil é o país onde mais cresce o número de grupos de extrema direita, especialmente nos estados de Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Segundo o estudo realizado na Universidade de Campinas pela Dra. Adriana Dias, antropóloga, a maioria dos grupos atua em São Paulo. De acordo com os dados, havia no país mais de 530 grupos extremistas nos primeiros meses de 2022, demonstrando um avanço com relação a 2019 – quando foram identificados 334 grupos.

Mas, o que isso tem a ver com o especismo? Tudo! Existem muito estudos feministas que apontam a conexão das violências sexistas, racistas, classistas e especistas. Maria José Sales Padilha foi presidenta da Associação Amigos Defensores dos Animais e do Meio Ambiente (AADAMA), é formada em psicologia com Mestrado em Educação pela George State University (EUA). Ela estudou a relação da violência especista e sexista no livro Crueldade com animais x Violência doméstica contra mulheres: uma conexão real, publicado em 2011, em Recife, pela FASA.

Esse debate ganhou força internacional quando a UNESCO aprovou em 1978, em Paris, a Declaração Universal dos Direitos do Animal. Esse fato alavancou as discussões sobre o especismo, que significa uma discriminação baseada em espécies, envolve atribuir a animais sencientes diferentes valores e direitos baseados na sua espécie. De modo similar ao sexismo (discriminação baseada no gênero), a discriminação especista pressupõe que os interesses de um indivíduo são menos importantes pelo mero feito de se pertencer a uma determinada espécie. O livro é resultado de uma pesquisa realizada em Pernambuco, em 2010, que examinou as conexões entre a crueldade praticada contra animais e a violência doméstica contra as mulheres. O método de pesquisa incluiu a elaboração de um questionário que foi aplicado e dividido entre as Delegacias da Mulher de Jaboatão dos Guararapes e de Recife. Tais questionários continham nove perguntas sobre a agressão, incluiu a questão se a vítima possuía animais em casa e se houve agressões e quais os tipos de violência contra os animais.

Os percentuais mostraram que a maior parte das mulheres vítimas tem idade superior aos trinta anos e um nível de escolaridade razoável, o que indica que, nesta idade e com certo estudo, as mulheres já têm mais consciência de seus direitos. A escolaridade do agressor, assim como a da vítima, nos mostra que não importa o grau de educação escolar, que todas são passíveis de violência. Diz a autora: “[…] as mulheres estão mais conscientes de seus direitos e também, encorajadas pela Lei Maria da Penha, registram a violência cometida por seus agressores” (p. 42).

Já os números encontrados com relação à violência contra os animais parecem aumentar nas últimas décadas no Brasil, e os números apontam que os agressores, em sua maioria, são homens cis. Diz ela: “Dentre os diversos tipos de violência praticados contra os animais de companhia, principalmente contra cães no contexto familiar, a violência física é a que predomina e tem como principal agressor o mesmo homem que agride a mulher” (p. 48).

Em suas considerações finais, a autora nos diz que, em geral, as pessoas não enxergam que as agressões contra animais estão ligadas com as agressões contra humanos. Para Padilha, é necessária uma conscientização, com mais pesquisas e trabalhos na área educacional. O livro é claro e direto, apresenta os dados em gráficos e reforça a necessidade de estudos sobre o tema. Existe uma íntima ligação entre o paradigma humanista e a cultura patriarcal. Essa ligação manifesta-se na obsessão pela dominação e controle tanto sobre os corpos das mulheres quanto de outras espécies.

A libertação das outras espécies já era uma luta anarquista desde o século XIX e, hoje, com o veganismo e o antiespecismo está mais forte e se interseccionalizando às questões libertárias, com os debates sobre o sexismo, o classismo, o racismo, o etarismo, o especismo, dentre outros. Os séculos XX e XXI estão marcados pela luta vegana, ecofeminista e ecológica. Muitas e diferentes vozes se erguem pelas pessoas não humanas. Uma delas é a escritora polonesa Olga Tokarczuk, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura ao publicar o romance Sobre os ossos dos mortos (2009). Na obra ela escreveu: “Tristeza, senti uma grande tristeza, e um luto interminável por cada animal morto. Termina um luto e logo começa outro, então estou em constante luto. É meu estado natural. Me ajoelhei sobre a neve ensanguentada e acariciei a pelagem áspera, fria e rija do javali” (p. 98).

O romance gira em torno da caça de animais silvestres e nos surpreende pelo refinamento da linguagem e pela presença de um tom de mistério que nos deixa com vontade de lutar pelos animais ao lado da protagonista Janina Dusheiko. A caça predatória está, juntamente com a questão do uso de pessoas não humanas nos testes científicos, na produção de morte em escala industrializada para fabricação de carne, no comércio e na venda de “animais de estimação” dentre outros usos dos corpos, no centro de um debate contemporâneo sobre as nossas relações com a vida planetária, com as outras espécies e com o meio no qual vivemos. Os temas ampliaram desde os textos das feministas dos séculos XIX e XX que escreveram sobre as pessoas não humanas. Foi no contexto em que Maria Lacerda de Moura escreveu sobre a vivissecção e o vegetarianismo no livro Amai… e não vos multipliqueis. Sobre a alimentação ela escreveu: “No dia em que a mulher se dispuser a libertar-se do jugo do estômago civilizado, passar a comer frutas e legumes, a apagar o fogo doméstico que é o ‘fogo eterno’ do inferno feminino na sua escravidão ao estômago do homem – nesse dia ela recomeçará a sua auto-educação física e mental e iniciará a sua verdadeira libertação humana” (p. 233).

Outro livro que quero destacar é A política sexual da carne: a relação entre carnivorismo e a dominância masculina, da feminista vegana Carol Adams. Neste livro ela identifica mulheres vegetarianas ligadas às reivindicações feministas. Segundo ela, no século XIX muitas mulheres tornaram-se vegetarianas e escreveram sobre a necessária libertação delas mesmas e das outras espécies. Mulheres como: Agnes Ryan (1878-1954, EUA); Annie Wood Besant (1847, Inglaterra – 1933, Índia); Clara Barton (1821-1912, EUA); Elizabeth Cady Stanton (1815-1902 – EUA); Lou Andreas-Salomé (1861, Rússia – 1937, Alemanha) e Matilda Joslyn Gage (1826-1898, EUA) foram precursoras da alimentação sem carne e da luta contra o uso de animais na ciência e na indústria, sobretudo na luta antivivisseccionista.

Nise da Silveira (2012), nascida em 1905, foi uma das pioneiras na discussão da antipsiquiatria e no debate sobre os laços afetivos entre pessoas e animais, por ela nomeados animais não humanos. Ela via na relação com os gatos uma possibilidade de diálogo com o inconsciente, e sobre os animais escreveu: Gatos, a emoção de lidar (1998) e A farra do boi (1989), ambos esgotados. Neste livro, ela escreve: “Vamos retroceder dos altos níveis do processo de individuação aos baixos degraus onde ainda ocorre a festa-sacrifício do boi, no litoral de Santa Catarina.

Esta ‘festa’, ou seja, ‘a Farra do Boi”, por incrível que pareça, tem defensores.

Argumentam que é uma tradição cultural.

Tradição oriunda de trogloditas, de bárbaros…” (p. 65).

A barbárie da masculinidade cis tóxica ainda é pouco questionada quando se trata da violência especista, mas cumpre lembrar que, na maioria dos casos de extrema violência, os protagonistas são homens cis. O recente extermínio de crianças na escola de Blumenau-SC chamou a atenção pelo fato de o assassino já ter cometido crime contra os animais. Não é coincidência! O machismo mata!

A libertação humana não será possível sem a libertação das outras espécies. Como dizia Maria Lacerda de Moura, devemos colocar fim no tempo do antropocentrismo (macho-cis-branco) e construirmos o biocentrismo, em que todas as formas de vida importem.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Magó e o feminicídio no Brasil

Magó e o feminicídio no Brasil

No dia 26 de janeiro de 2023, aconteceu o ato Justiça por Magó! 3 anos sem Magó!,  na praça do Teatro Reviver Magó, na cidade de Maringá/PR. O evento público reuniu familiares de Magó, sua mãe Daisa Poltroniere e sua a irmã Ana Clara Poltronieri Borges, ativistas, feministas, artistas, autoridades e a comunidade local. Aconteceram apresentações do Baque Mulher Maringá, de Dança circular, Hip-hop, Rap e Capoeira feminina.

Maria Glória Poltronieri Borges, conhecida como Magó, era bailarina, artista, pandeirista, capoeirista, vegana, feminista e tantas outras facetas. Ela nasceu dia 30 de maio de 1994 e teve a vida interrompida por um brutal assassinato. No dia 26 de janeiro de 2020, ela estava em uma propriedade rural no município de Mandaguari, próximo a Maringá. Ela planejava realizar um recolhimento espiritual no local onde havia uma cachoeira. Foi neste lugar que ela foi vítima de feminicídio. O assassino e estuprador foi encontrado e preso. A vida de Magó foi arrancada pouco antes de ela completar 26 anos. Seu corpo foi cremado e sua morte mobilizou manifestações em várias cidades brasileiras.

A parceria de trabalho com a irmã Ana Clara Poltronieri Borges era bem conhecida. Ambas com formação em artes e dança circulavam o Brasil e faziam da vida um espetáculo de movimento, força e fé. Em um depoimento de Ana Clara (publicado no site:  https://mariagloria.com.br/), podemos ver a potência da aliança entre as duas:

 

“Magó é indefinível porque ela sempre foi muitas coisas. (…) Uma coisa que ela levava a sério era a brincadeira. A gente chamava isso de PANAKISSE, com K. A brincadeira, o jogo, era levado a sério por nós. Onde tem brincadeira tem sorriso.

Atenta e observadora, via dança em todo e qualquer movimento do corpo humano. Amava as acrobacias circenses e era muito boa nisso. Adorava plantar bananeira em todo e qualquer lugar do globo terrestre e no mundo paralelo dos sonhos. Dançava com tudo o que tinha dentro dela.

Pedalava sua bike como se estivesse indo pra lua encontrar nossas ancestrais.

Cantava como uma deusa, uma voz doce, forte, guerreira.

Lutava aikido. Uma mestra maga zen. Praticava yoga e jogava muita capoeira. Amava esse jogo-dança que a capoeira levava para ela. Amava o samba de roda, porque colocava toda a sua potência ali: dança, jogo, sorriso, canto, fé e amor, sempre.

Era uma passarinha livre. Uma anciã guerreira. Corajosa. Uma ótima ouvinte e conselheira. Sabia, no momento certo, fazer com que eu conseguisse enxergar minha própria força. Sabia, no momento certo instigar a vontade de continuar remando o barco da vida.

Um presente. Uma doce mulher. Uma fada”.

 

Magó era muito querida e deixou saudades. Virou um símbolo de luta contra o feminicídio. O feminicídio é o assassinato praticado contra as mulheres em decorrência do gênero, trata-se de crime de misoginia, menosprezo pela condição das mulheres e, em muitos casos, envolve a violência sexual.

A lei 13.104/15, mais conhecida como Lei do Feminicídio, alterou o Código Penal brasileiro, tipificando o crime contra as mulheres em função de gênero. Foram anos de muita luta para conseguir a aprovação da lei. O Brasil é marcado pelo coronelismo, pelo machismo e racismo. Por muito tempo a ideia da “legítima defesa da honra” garantia impunidade aos assassinos que matavam suas esposas, irmãs, filhas, ex-mulheres, namoradas caso se sentissem traídos. Os homens, com isso, justificavam o injustificável, que é o assassinato. Tal lei foi possível vigorar por tanto tempo graças ao entendimento de que as mulheres não são sujeitas de direito, suas vidas eram atreladas à dos homens. Pais, namorados e maridos consideravam os corpos das mulheres sua propriedade. O corpo tornado objeto entra para o rol dos descartáveis.

Magó representa a juventude no mercado de carnes e de corpos de um país onde ainda se encontram fortes traços coronelistas. Com a ascensão do bolsonarismo e do neofascismo, o problema agravou. A Agência Patrícia Galvão apresenta alguns dados importantes: desde 2018, as taxas de feminicídio estão aumentando; 61% das vítimas são mulheres negras; a maioria das vítimas é jovem e menor de idade; 88,8% dos casos de violência são cometidos pelo companheiro ou ex-companheiro; 70,7% das vítimas tinham, no máximo, ensino fundamental. As crianças e as jovens são as maiores vítimas de estupro seguido de tortura e assassinato.

É claro que, diante de números absurdos, que colocam o Brasil entre os países mais violentos com as mulheres, as pautas feministas avançam a cada ano. Em várias frentes de trabalho que englobam a necessidade de mais mulheres ocupando os cargos políticos, cargos de decisão e com os avanços das coletividades, ONGS´s e associações de mulheres, houve, em contrapartida, o avanço nas demandas por leis mais rigorosas.

No 8M/2023 uma das discussões que está ganhando força é a reivindicação pela criminalização da misoginia. As piadas sexistas sobre mulheres, a defesa de sua inferioridade, de sua sexualidade, os discursos de ódio e desprezo a nós, mulheres, reforçam a misoginia e fortalecem a cultura do estupro. Esse pedido de Projeto de Lei que criminaliza a misoginia, juntamente com o racismo, a homofobia e a transfobia, esteve circulando e ganhou fôlego nas redes sociais nos últimos. A ideia é levar a discussão para o Senado buscando a criação de leis mais rigorosas. O projeto foi protocolado, dia 6 de março, na Câmara dos Deputados.

A vida pede passagem, os corpos das mulheres estão nas pautas pela libertação, pelo direito de existir, pelo direito de andar na rua, pelo direito de amar livremente. Direitos que são considerados como naturais aos homens e que ainda estão nas pautas das mulheres.

Magó, presente!

Criminalização da misoginia – Apoie esta ideia!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Glória! O adeus de uma mulher livre

Glória! O adeus de uma mulher livre

Dois de fevereiro é um dia de comemorações no Brasil. Dia de Iemanjá, para as religiões de matriz afro-brasileiras, e Dia de Nossa Senhora dos Navegantes, para os cristãos. O sincretismo religioso faz com que a festa ganhe grande repercussão. De ponta a ponta do país, fieis se reúnem em procissão para levar oferendas e imagens da orixá ou da santa para o mar. E foi embalada nas águas salgadas que as festividades, em 2023, foram um misto de comemoração e de despedida.

Glória Maria Matta da Silva nasceu no Rio de Janeiro no dia 15 de agosto de 1949 e faleceu no dia 2 de fevereiro de 2023 vitimada pelo câncer. O reconhecimento público de sua magnitude fez das festividades religiosas também uma grande despedida. Envolta nas águas salgadas da mãe dos orixás, Glória recebeu homenagens nas emissoras de televisão, nas redes sociais e na grande imprensa nacional e internacional.

A Ministra da Cultura, Margareth Menezes, postou em seu Instagram:

“No dia da Rainha das Águas nossa querida Glória Maria nos deixou.
As águas rolaram nos olhos e corações de milhões de brasileiros que certamente amavam e admiravam essa que foi uma mulher negra pioneira em muitas conquistas. A maior da sua geração!

Uma mulher incrivelmente livre, uma profissional à frente do seu tempo. Inspiração para tantas mulheres iguais a ela e para muitos jornalistas, homens e mulheres, de várias gerações.

Ela deixa um legado imenso, inaugurou um estilo próprio e conquistou com muito talento e trabalho um lugar de destaque no jornalismo nacional e internacional.

Aplausos, aplausos, aplausos!

Muitas flores para nossa querida, grande, imensa e maravilhosa Glória Maria.

Adeus e obrigada!”

Glória foi jornalista, repórter e apresentadora, durante muito tempo, na TV Globo. Uma questão importante para se destacar foi o seu protagonismo como mulher negra. Foi a primeira repórter a realizar matérias ao vivo e a cores na televisão. Graduou-se em jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) nos anos 1960, deu início aos trabalhos na emissora de TV, onde fez uma carreira ao longo de 50 anos.

Seu protagonismo se deve, em parte, a uma personalidade forte que não se dobrou às injunções da mesmice, disse ela:

“Eu não gosto de fazer nada igual, então na hora que começa a ficar chato, eu sei lá… eu acho um caminho novo”

(Observação: os depoimentos da jornalista foram selecionados da matéria dedicada a ela no Jornal Nacional do dia 02/02/2023).

A personalidade mutante de Glória fez dela um ícone do jornalismo brasileiro. Ela foi uma mulher culta, que navegou pelas redes sociais, pelas diferentes mídias, foi capa de revistas, viajou mundo a fora, adentrou palácios e palafitas, locais luxuosos e humildes. Entrevistou muita gente famosa e muita gente do povo. Creio que essa tenha sido a sua marca, o gosto pela vida, pela mudança, pelo movimento e pela circulação em diferentes espaços.

Como mulher negra enfrentou esse duplo preconceito: o sexismo e o racismo, sem nunca esquecer a lição deixada pela sua avó: “A minha avó me ensinou uma coisa, a mais importante, desde pequenina: ‘Você tem que ser livre. Porque a nossa história é uma história de escravidão’. A minha vida é ser livre. Não há nada, nem casamento, nem trabalho… Só filho, talvez, agora, é que tira um pouco minha liberdade. Mas o resto, não”.

Foi assim que ela preferiu não publicizar seus relacionamentos afetivos, negando-se a aceitar a condição da obrigatoriedade do casamento e da união nos moldes normativos. Adotou duas meninas baianas, Laura Matta da Silva e Maria Matta da Silva. Daí sua conhecida frase: “Solteira, sim. Sozinha, nunca!” Ela preferiu seguir os conselhos da avó que dizia da importância de buscar a liberdade na alma.

Ser uma mulher de alma livre em um mundo onde, ainda, predomina o casamento indissolúvel e as juras de amor eterno pode ser um ato de coragem, sobretudo para as mulheres, que, como ela, estiveram diante das câmeras durante grande parte de sua vida. Como mulher negra ela foi um exemplo de coragem e determinação. Uma vez, ao ser barrada em um hotel de luxo, ela acionou a Lei Afonso Arinos. Chamou a polícia após de ter sido impedida de entrar pela porta da frente e afirmou: “Foi quando percebi que tudo o que eu tinha tentado aprender na minha vida deu resultado. Não me fiz de vítima, não me fiz de algoz. Simplesmente soube usar a lei”.

Noutra ocasião, em plena ditadura militar, afrontou o general Figueiredo afirmando: “O senhor me desculpa, mas o senhor precisa aprender um pouco mais da gramática portuguesa porque isso que você falou não existe mais na gramática”. Como consequência, o ditador mandou que a retirassem do local. Vale lembrar que, em momentos de política autoritária no Brasil, a liberdade de imprensa e de manifestação social é reprimida. Glória não se dobrou à repressão, nem ao sexismo e nem racismo. Portanto, sua presença no cenário jornalístico teve a marca da coragem e da resiliência.

Ela partiu, mas as suas marcas ficam entre nós. Como diria bell hooks em seu livro Tudo sobre o amor:

“Ao aprender a amar, aprendemos a aceitar a mudança. Sem mudança, não podemos crescer. Nosso desejo de crescer no espírito e na verdade é como nos posicionamos diante da vida e da morte, prontos para escolher a vida”.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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UMA LÉSBICA NÃO É UMA MULHER

UMA LÉSBICA NÃO É UMA MULHER

A Coluna Pachamama abre os trabalhos em 2023 com uma mulheragem à escritora Monique Wittig. Veja bem, utilizamos mulheragem para marcar uma diferença com relação ao termo “homenagem”, que pode ser desmembrado em “homem-nagem” e reafirma o tributo aos homens. Neste caso, usando as lentes lesbofeministas, embarcamos em corrente de pensamento que recria as palavras para escapar dos meandros da adulação falocrática.

Monique Wittig nasceu em 1935 e foi uma escritora, poetiza, filósofa, militante lésbica-feminista, enfim uma personalidade de forte atuação em muitas frentes. Ela nasceu em Dannemarie, na França, estudou na Universidade de Paris, trabalhou na Biblioteca Nacional de Paris e em uma editora. Traduziu Herbert Marcuse para o francês, foi colaboradora, juntamente com Simone de Beauvoir e Christine Delphy, da revista Questions Feministes. Dentre seus escritos mais conhecidos, destaco: L’Opoponax (novela, 1964), Les Guérrillères (novela, 1969), Le Corps Lesbien (poesia, 1973), Le Voyage sans fin (teatro), La Pensée Straight (ensaio, 1978) e One is not Born a Woman (1980).

Transgressora e ousada, fez uma crítica aos escritos de sua conterrânea Simone de Beauvoir, ao denunciar o mito “da mulher”, da maternidade e da heterossexualidade como regime político ao qual, entende ela, as lesbianas recusam submeter-se, por isso, as lésbicas, para ela, não são mulheres.

Ser mulher é estar inserida no domínio heterossexista, portanto a lésbica não é uma mulher, já que não está inserida na relação heterossexual. Além disso, o discurso opressor é o discurso da heterossexualidade, e as lesbianas escapam da programação inicial, não se submetendo à hierarquização heterossexista. Logo, o lesbianismo – tema central em seus estudos, teorias e escritos – é, para Wittig, algo que se situa além das categorias homem e mulher; é uma experiência revolucionária.

Nos Estados Unidos, desde 1980, ela atuou como educadora em algumas universidades. Participou do Mouvement de Liberation des Femmes (MLF), do primeiro grupo lesbiano em Paris, do Les Gouines Rouges, em 1972, e, em 1974 propôs a criação do Front Lesbien.

O livro Le corps lesbien gravita entre o universo das Amazonas, das assembleias de mulheres, das feiticeiras e marca a presença do desejo sexual e do gozo entre mulheres. Sem dúvida, esse livro foi paradigmático, marcou os estudos lesbianos com a afirmação de um corpo que não se dobra facilmente ao sistema de pensamento hétero. O corpo lesbiano reivindica uma identidade própria, e, ao poetizar a corporeidade lesbiana, Wittig fornece uma positividade na relação com o prazer sexual e com a materialidade da sua experiência no mundo, mas ela não se limita à reprodução do real. A autora cria a lesbiana de forma afirmativa, propositiva e positiva. Portanto, as lésbicas não são mulheres para a autora, pois não se dobram as injunções do “pensamento hétero”.

O Pensamento hétero foi um texto elaborado e apresentado pela autora durante a Convenção da Associação de Linguagem Moderna, realizada em 1978, em Nova Iorque, e publicado em seu livro The Straight Mind: and other essays, em 1992. No texto, ela defende o lesbianismo como uma categoria política e a heterossexualidade como um sistema social que se baseia na opressão das mulheres pelos homens, produzindo a doutrina da diferença entre os sexos como justificativa para essa opressão. É importante ressaltar que ela usa o termo “diferença de sexos” naquele contexto em que a categoria de gênero ainda não estava na pauta das discussões entre as feministas lesbianas. Na obra Le corps lesbien, os códigos masculinos são ignorados pela autora em sua narrativa e os desejos sexuais estão voltados exclusivamente ao prazer feminino. Ela escreve:

 

E/u sou aquela que guarda o segredo do seu nome […].

Tão bela sua nuca suas bochechas seu olhar seus ombros seus seios seus

braços seu ventre seu sexo suas costas sua bunda suas coxas suas pernas

seus tornozelos seus pés (WITTIG, 1973, p. 146-147 tradução nossa).

 

O nome em “segredo” pode ser visto como um recurso poético que a autora utiliza ao abordar o encontro de olhares e de corpos, que em um barco naufragado flutuam entre tubarões sedentos por suas carnes expostas. Podemos desdobrar as linhas e ir de encontro aos corpos lesbianos vigiados, cercados e perseguidos pelo olhar heteronormativo, punitivo e corretivo. Sua crítica é mordaz, não deixa margem para dúvida: as lésbicas se encontram nas assembleias e escapam ao domínio heterossexista.

É possível inferir que a sua obra seja a primeira narrativa de positividade com relação ao prazer sexual lesbiano, tendo em vista que, desde os poemas de Safo ao romance de Radclyffe Hall, a tragédia e a morte como castigo pesavam sobre os corpos lesbianos. Desde as poéticas wittigianas, vemos a erupção das vozes lesbianas tanto na literatura quando nos escritos teóricos.

Vale lembrar que ela viveu com a cineasta Sande Zeig com quem produziu o filme The Girl. Trabalhou até o seu falecimento, em janeiro de 2003, nos Estados Unidos e em companhia de Zeig. Vinte anos após a sua morte ainda há um escasso trabalho de análise e de tradução de suas obras no Brasil. Nos Estados Unidos, seu trabalho foi publicamente reconhecido. Quem sabe seja um bom momento para recuperarmos o seu legado e avançar nas discussões diante de um acalorado debate sobre gênero e sexualidade.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Como nascem os livros feministas?

Como nascem os livros feministas?

“O fim do patriarcado e o início de uma nova era.
A transformação será feminista!”

Cecília Castro

 

A Coluna Pachamama no mês de novembro é comemorativa ao aniversário da Editora Luas e abre o texto com a frase de Cecília Castro que está publicada na apresentação do site da editora. A autora da frase é a criadora e diretora editorial da Luas. Na citação, a premissa é de uma “nova era” marcada pela contundente presença das mulheres nas práticas sociais, culturais, políticas e econômicas. A ação feminista é transformadora na medida em que impulsiona as mulheres a problematizarem o seu lugar no mundo e abre espaços para as novas gerações. E foi acreditando nisso que, em 2019, Cecília criou uma editora voltada para os textos literários e não ficcionais escritos por mulheres. Ressalto, ainda, que todo o processo de produção envolve o trabalho das revisoras, tradutoras, ilustradoras, diagramadoras e outras tantas mulheres ligadas à criação dos livros. As publicações da Editora Luas nascem embaladas pelas mãos de muitas mulheres, declaradamente feministas ou não.

A inspiração de Cecília Castro foi a Editora Mulheres. Criada em 1995 por Zahidé Lupinacci Muzart. Sua fundadora era, então, docente aposentada pela Universidade Federal de Santa Catarina e sua pesquisa sobre o resgate de escritoras do século XIX rendeu um projeto maior, o projeto editorial voltado para a recuperação das vozes destas escritoras silenciadas ao longo da história. Sua ideia inicial foi então reeditar livros de escritoras, brasileiras ou não, que haviam ficado esquecidos na poeira do tempo. Seguiu-se daí a publicação de textos de não ficção sobre questões de gênero. Vale ressaltar que os estudos de gênero chegavam ao Brasil entre as décadas de 1980 e 1990 e avançavam não somente nas áreas de humanidades, como também nas áreas tecnológicas, da saúde, entre outras. Dentre as muitas publicações importantes, destaco o livro A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas, cuja terceira edição nasceu na Editora Mulheres, foi coordenada por Zahidé Lupinacci Muzart e apresentada ao público por Constância Lima Duarte, que, além disso, realizou o cotejo com a primeira edição, escreveu um texto introdutório e as notas explicativas para contextualizar a obra original de 1899. Trata-se do primeiro romance fantástico publicado no Brasil. Apesar do pioneirismo da escritora Emília Freitas, sua obra ainda era pouco conhecida antes da publicação supracitada.

Tanto Zahidé, ontem, como Cecília, hoje, demonstram a preocupação com relação ao apagamento das obras escritas por mulheres. Corrobora com suas inquietações a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, cuja edição publicada em setembro de 2020, sob a coordenação do Instituto Pró-Livro, está disponibilizada gratuitamente na internet. A pesquisa objetiva avaliar o comportamento e os hábitos de leitura da população brasileira por meio de registros estatísticos. Em sua última edição, os dados são preocupantes para as mulheres, tendo em vista que são as que leem mais, porém, são menos lidas. Dentre as obras citadas, a maioria é de autoria masculina. Reflexo da obliteração da escrita das mulheres. Com vistas a minimizar os danos causados pelo apagamento das escritoras e de suas obras é que ao redor do mundo as editoras protagonizadas por feministas, declaradas ou não, publicam exclusivamente livros escritos por mulheres. Eis uma política feminista para salvaguardar as nossas vozes.

No calor dos movimentos feministas das décadas de 1960 e 1970 nasceu uma das primeiras editoras europeia dedicada à produção de livros de autoria feminina. A Éditions des femmes foi fundada em 1973 por Antoinette Fouque e se dedica exclusivamente a publicar obras escritas por mulheres. No mesmo ano ela inaugurou a Librairie des femmes no coração do quartier Saint-Germain. Desde então foi um local de encontros entre as feministas francesas e de descobertas para as mulheres do mundo, que visitam a livraria situada na rua Jacob, em Paris. A criadora da editora e livraria des femmes é escritora, filósofa, psicanalista, foi deputada no Parlamento europeu, membra da Comissão de Direitos da Mulher nos anos 1990 e ficou conhecida historicamente entre as feministas como uma das fundadoras do Mouvement de Libération des Femmes (MLF) em 1968. O MLF teve impacto forte na França e repercussão mundial, apresentava em sua pauta questões como a descriminalização do aborto, paridade, licença maternidade, liberação sexual, combate à lesbofobia entre outros tantos temas.

Antoinette veio ao Brasil em 1974 para participar de encontros feministas e, doravante, começou a publicar as traduções de algumas das escritoras brasileiras, por exemplo, Carolina de Jesus e Clarice Lispector. Ela recuperou o termo feminologia, cunhado nos anos 1980, para propor um campo epistemológico ou uma “ciência das mulheres”, sobre o tema escreveu a obra Féminologie, dividida em três tomos. Um dos mais importantes livros da autora publicados pela des femmes é Géneration MLF: 1968 – 2008, trata-se de um documentário volumoso que conta a história do MLF e suas repercussões em outros países. A editora francesa sacudiu o mundo das letras e colocou as mulheres como protagonistas de suas histórias, reunindo livros escritos a partir das experiências do feminino na cultura, na arte, na política, nas ciências etc. Na página virtual da livraria lemos: “écrire ne sera donc jamais neutre”. A ideia central é de que a escrita não é e jamais será neutra, ela reflete as experiências de quem escreve no mundo no qual participa.

Na página da editora Luas lê-se o mesmo anseio que vimos nas editoras Mulheres e des femmes, ou seja, o de reunir mulheres em torno da linguagem escrita”. As mesmas estão cada vez mais em busca de grupos e coletivos para “exigir direitos e mudanças, transformar a realidade”, em cada encontro nota-se a troca de experiências e olhares sobre seus corpos e suas vivências no mundo. Com essas metas traçadas, a Editora Luas propõe a publicação de livros em três eixos: literatura contemporânea, não ficção, resgate de autoras do século XIX/XX, e, desde 2021, publica livros para crianças com o nascimento do selo Lunitas.

Apesar de criada recentemente, em meio a pandemia de Covid-19 e a crise econômica brasileira gerada por um governo golpista e avesso aos livros, à educação e à cultura, a editora já conta com quatro livros traduzidos, dois livros para crianças e 15 publicações até a corrente data. O livro Ecofeminismo, de Maria Mies e Vandana Shiva, publicado pela Editora Luas, pela primeira vez traduzido em português no Brasil, é uma das obras mais importantes na área que está avançando na academia e nos ativismos ecológicos. Na página da editora podemos acessar gratuitamente textos, manifestos feministas, entrevistas, matérias de divulgação na mídia e outras inovações. A Luas está nas redes sociais: Instagram, Facebook e no YouTube, onde encontramos lives com bate-papo, lançamentos de livros e entrevistas.

Retomo a questão inicial: como nascem os livros feministas? Para Cecília Castro, fundadora da Editora Luas, os livros feministas nascem do encontro de mulheres que anseiam dialogar sobre os seus corpos, os seus direitos, as suas demandas e agendas políticas, econômicas, sociais e culturais. Levantar a bandeira feministas em um país marcado pelo feminicídio, pelo machismo, pela misoginia é um ato revolucionário.

Vida longa à Editora Luas! Vida longa às editoras e livrarias feministas!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Leia para uma criança!

Leia para uma criança!

“Como adulto terei a coragem infantil de me perder?”

 

A pergunta que abre este texto foi feita por Clarice Lispector no livro A paixão segundo G.H. O perder-se é algo malvisto na perspectiva da racionalidade cartesiana, algo perigoso, pois pode levar uma pessoa adulta à loucura. Mas, na infância o perder-se pode ter um sentido físico relacionado ao comportamento curioso das crianças que vão adiante para descobrir algo novo e acabam por distanciar-se de suas mães ou tutoras/es em algum passeio. No sentido metafórico, o perder-se está relacionado ao mundo da imaginação, dos sonhos, das fantasias. Como Alice, a personagem central do clássico infantil Alice no País das Maravilhas, que é a história de uma menina que segue um coelho muito estranho e vai parar no País das Maravilhas.

A criança aprende se divertindo, imaginando, sonhando, fantasiando. A criança descobre o mundo através do brincar. A ludicidade não é característica da infância somente na espécie humana, em outros animais não humanos podemos observar comportamentos semelhantes quando vemos uma ninhada de gatinhos, de cães ou mesmo entre filhotes de animais silvestres, como, por exemplo, ao redor da leoa a sua ninhada brincando.  O livro de Johan Huizinga intitulado Homo ludens: o jogo como elemento da cultura aborda a questão. A descoberta da peculiaridade do aprender de forma lúdica na infância não é muito antiga em nossa história de tradição filosófica escrita pelos homens ocidentais racionalistas. É uma visão que atravessou os séculos pesando sobre as crianças e forjando o adultocentrismo. Se pensarmos que quem, em sua maioria avassaladora, cuida, educa e embala as crianças, desde o nascimento, são as mulheres, não é de se estranhar que os homens tenham escrito tantas bobagens sobre a infância ao longo da história. Vejamos algumas delas:

Descartes: “Enganamo-nos porque fomos crianças antes de sermos homens”;

Rousseau: “A infância é, por excelência, o período em que germinam o erro e o vício”;

Aristóteles: “Durante a infância não possuímos a faculdade de decisão senão sob forma imperfeita”;

Kant: “As crianças estão, por natureza, em estado de incapacidade, e os pais são os seus tutores naturais”.

A infância, então, para os filósofos citados é o locus do engano, do erro, do vício, da imperfeição e da incapacidade. Nenhum destes homens escreveu sobre a questão central da infância: o sentido do brincar, da imaginação, da fantasia e sua importância para a construção do conhecimento e para o reconhecimento do mundo ao seu redor.

Na Idade Média havia uma ausência do sentimento de infância. O historiador Philippe Ariès realizou um estudo iconográfico que mostra a criança quase sempre retratada com feições de adulto. Até a Idade Média a criança era um projeto de adulto, sua descoberta foi acontecer na Modernidade com os estudos relacionados ao papel do brinquedo e da ludicidade na educação.

Se hoje eu trabalho como educadora feminista devo isso aos meus estudos e aos trabalhos sobre a infância desde a minha primeira graduação em Educação Física, onde fiz estágio remunerado nas escolas e atuei em uma escola rural do MST. Após formada, fiz uma Especialização em Educação e defendi a monografia intitulada O Imaginário Infantil: do Mágico de Oz ao Space-man, em 1995. Nela fiz uma imersão etnográfica utilizando recortes do meu cotidiano entre as crianças. Além das crianças nas escolas onde atuei, havia em casa meu irmão e minha irmã, com, respectivamente, 16 e 17 anos de diferença de mim. Eram muitas vozes de crianças que eu escutava e que citei em minha monografia. Uma delas foi uma conversa entre meu irmão e minha irmã: “será que a mana é cliança?” A pergunta dele foi muito pertinente, denotou inteligência e a descoberta entre o que é ser criança e ser uma pessoa adulta, pois eu era uma adulta totalmente diferente do comportamento que ele via. Eu assistia desenho animado, brincava, lia literatura para crianças e inventava muitas histórias e personagens, algumas inclusive tinham figurino para caracterizar que não era a Patrícia. Além disso, naquela época eu atuava na companhia de teatro A Tua Ação, dirigida por Marta Garcia, e na ocasião minha mãe levou as crianças para me assistirem nas peças para crianças.

As crianças precisam da literatura, do teatro, da contação de histórias para auxiliar em seu processo cognitivo. Sônia Kramer, em seu livro Por entre as pedras: arma e sonho na escola, conta uma situação em que uma professora, sabendo da importância da literatura na vida das crianças, resolveu contar a história de Alice no País das Maravilhas. Porém a professora deixou essa atividade para o último dia de aula. Nesse sentido, Sônia, pergunta: “por que deixar a estória para o final, e durante todo o ano letivo trabalhar conteúdos vazios de significado para a criança?” No fundo a professora sabe que, além da dureza metálica da arma, existe a suave maciez poética do sonho. Então “será justo exigir que as crianças permaneçam na aridez da linguagem-mecânica-instrumento, distanciando-as ao invés de aproximá-las do significado da escrita como arma e sonho?”

Quem sabe isso acontece porque a escola tradicional não consegue acompanhar a vida, o desejo, os sonhos das crianças. Ela é obsoleta! As crianças querem descobrir o mundo agora, e não deixar para depois da aula suas curiosidades, inclusive seus questionamentos. Então o que ocorre é que ela acaba detestando a escola. É importante ressaltar que, para além das escolas tradicionais, existem escolas alternativas que buscam a construção da autonomia, da autogestão e, sobretudo, valorizam o conhecimento das crianças e fomentam a leitura, criatividade e espontaneidade. Mas, são poucas e não atendem o grande contingente de crianças.

As diferenças de classe devem ser analisadas neste ponto de vista. As famílias sem condições de pagar uma escola ficam sem direito de escolha, e há diferenças entre as escolas urbanas e rurais. Existe uma multiplicidade de formas de ver e de atuar na educação infantil, algumas experiências, sobretudo as libertárias, servem de modelo até hoje para pensar em alternativas, como, por exemplo: A Escola de Iasnaia Poliana, criada por Liev Tolstói; A Colméia, proposta por Sébastien Faure; as Escolas Modernas, de Francisco Ferrer y Guadia; e as experiências educativas das anarquistas Louise Michel, Anna Mahé, Émilie Lamotte, na França, e de Maria Lacerda de Moura, na comunidade agrícola libertária em Guararema, no Brasil.

As experiências educacionais alternativas, sejam elas libertárias ou não, surgiram a partir da crítica aos modelos tradicionais. Este foi e continua sendo um dos meus campos de estudo desde a minha monografia em Educação. Eu tinha 24 anos quando realizei a especialização e, de certo modo, foi uma maneira de pensar a minha própria dificuldade durante o meu período de escolarização. Eu só não fiquei de exame no último ano e creio que, por isso, escrevi:

 

Z, X, T…

Z, x, t, r, s, z…

Foi tudo que aprendi a fazê,

A escola foi isso que me ensinô,

O Alfabeto e em Santo Deus crê…

Jogá futebol na educação física,

P’rá algum dia um grande Pelé eu sê…

E hoje, fico aqui pensando… da vida,

eu, por lá, nada pude vê…

 

A literatura para crianças é uma das formas de expandir a imaginação, a criatividade e fazer florescer a ludicidade. Nas últimas décadas é incrível o salto qualitativo no que tange aos livros escritos para crianças. A literatura para bebes é algo extremamente inovador. As pesquisadoras estão estudando os processos cognitivos possibilitados pela interação não somente com os brinquedos, mas também com os livros. As bebetecas estão crescendo e são hoje estratégias pedagógicas para auxiliar o trabalho educacional desde as creches.

Estudiosas como Marisa Lajolo, Sônia Kramer, Regina Zilbermann nos ensinam que a literatura infantil, para além do papel educativo, é uma forma de arte que fomenta a imaginação e a criatividade. Mell Brites diz que “literatura infantil é literatura, se não fosse, não seria assim chamada. E literatura é arte. Como arte, ela tem o direito de não servir propriamente para nada, de não ter uma intencionalidade de antemão. Portanto, ela nos humaniza também porque conversa conosco por vias que não as da lógica, da hierarquia, da razão”.

Com a renovação na literatura para as infâncias, vimos crescer o número de editoras voltadas para este domínio da produção de livros. Além disso, a educação está utilizando a literatura infantil para abordar temas como gênero, sexualidade, etnias, raças, classe social etc. Os livros infantis estão cada vez mais sofisticados e as editoras estão abrindo as portas para um universo repleto de novidades e de beleza.

Foi em 2020 que a Editora Luas criou o selo Lunitas, um selo voltado para o público infantil, afinal em uma editora que promove a literatura escrita por mulheres é importante pensar que as mulheres estão protagonizando novas histórias para as crianças. O selo Lunitas foi inaugurado com o livro Sua primeira casa, de Rafaela Kalaffa, e o segundo, O resgate do Touro Vermelho, de minha autoria, com ilustrações de Nick Carmona. O primeiro aborda o útero e a gestação de uma forma poética e com uma belíssima arte que nos transporta para o momento da gestação. O segundo conta a história de Red Bull, um touro surfista que foi capturado, levado ao abatedouro e, logo depois, foi resgatado. Trata-se de um livro de aventura sobre a libertação animal.

Autoras como Clarice Lispector, Ruth Rocha e Eliane Potiguara são reconhecidas por seus trabalhos voltados ao público infantil. As questões étnico-raciais estão sendo protagonizadas por autoras que vivenciaram na pele a questão do racismo e, portanto, promovem uma literatura em que as crianças encontrem eco de suas vidas nas narrativas. Simone Mota é autora do livro Carolayne, Carolina e as histórias do diário da menina, dentre muitos outros; e Vãngri Kaingáng escreveu Estrela Kaingáng, a lenda do primeiro pajé, entre outras produções.

As biografias para crianças estão em expansão: Rosa Parks, Paulo Freire, Frida Kahlo, Clarice Lispector, Violeta Parra e tantas outras pessoas estão agora, também, nos livros para crianças. Eu, junto com a artista Jéssica Fiorini, estou dando início a Coleção Lute como uma garota, que sairá pela Editora Appris. A biografia de Nise da Silveira irá inaugurar o novo projeto voltado para a literatura infantil.

O Poema do Milho, de Cora Coralina, ilustrado por Lélis, é uma poesia que virou livro para crianças. Diz ela:

“O grão que cai é o direito da terra.

A espiga perdida – pertence às aves

que têm seus ninhos e filhos a cuidar.

Basta para ti, lavrador,

o monte alto e a tulha cheia.

Deixa a respiga para os que não plantam nem colhem.

– O pobrezinho que passa.

– Os bichos da terra e os pássaros do céu.”

A literatura para crianças está cada dia mais criativa, cativante e nos convidando a ler para a gurizada. Basta ativarmos a nossa criança interior, afinal, a imaginação, a criatividade e a ludicidade são a lenha desta fogueira.

Leia para uma criança!

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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Patriotismo e patriarcado

Patriotismo e patriarcado

O assunto abordado em setembro não poderia ser outro. Em meio as comemorações dos 200 anos de independência do Brasil, o evento social nomeado de 28º Grito dos Excluídos questionou: independência para quem? A pergunta é pertinente se pensarmos na relação de miséria que assola o país. Enquanto uma multidão de pessoas passa fome, outras tantas lutam diariamente em busca de emprego; vemos educação e saúde abandonadas pelo poder público, as taxas de feminicídio e violência contra as mulheres nos colocam entre os países mais machistas do mundo; o presidente genocida, novamente, envergonha a nação, em mais um surto machista gritando nas atividades comemorativas ao dia 7 de setembro, em Brasília: “imbrochável”. Vale ressaltar que ele, até o momento, foi o único presidente do Brasil a usar dinheiro público e o espaço de atividades do governo federal para campanha partidária e para uso pessoal.

Nas vésperas da eleição presidencial, vemos o atual presidente reproduzir inverdades sobre a situação caótica brasileira, agravada em sua gestão. As comemorações do 7 de setembro no Brasil estiveram à altura do atual governo: queda de paraquedistas militares em São Paulo, furgão entalado na marquise do Palácio da Alvorada – residência oficial do presidente da República –, propagação de fake news, surto ultramachista do presidente diante das câmeras da imprensa internacional, ameaças à democracia e violação de direitos foram algumas das notícias que nos colocaram no centro das piadas e chacotas internacionais nesta data comemorativa nacional.

O bolsonarismo, baseado na relação de ódio às mulheres, às minorias, sobretudo, às pessoas racializadas e periféricas, ódio aos povos originários, é o baluarte do patriotismo atual. Os mais ardorosos discursos de amor à pátria brasileira destoam nas cenas de culto aos símbolos norte-americanos. Curvado aos pés dos presidentes dos Estados Unidos, do atual e do anterior, o governante do Brasil implora ajuda para se manter no poder e bate continência para a bandeira azul e vermelha dos imperialistas ianques. O “véio da Havan”, como ficou nacionalmente conhecido o proprietário dessa rede de lojas, que vende produtos da China comunista, mas se diz anticomunista, ergueu réplicas da Estátua da Liberdade, que é um dos símbolos dos Estados Unidos. Ele se diz patriota e é um dos fiéis escudeiros e apoiadores do Golpe que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff.

O patriotismo e o patriarcado estão intimamente vinculados, tendo em vista a ideia de propriedade privada e, com ela, as suas pessoas trabalhadoras, incluindo mulheres, filhas e filhos. O patriarca representa a figura do homem que lidera a família, inclusive se beneficiando do trabalho gratuito realizado pelas mulheres para os trabalhos domésticos e de cuidados das crianças, dos animais domésticos e das pessoas idosas. Com base nas relações de poder e de propriedade, o patriarca defende os interesses do Estado garantindo assim os seus privilégios. Pátria, família e propriedade são os pilares que criaram e sustentam o capitalismo.

Na obra Siwapajti (Medicina de mujer) – Memoria y teoría de mujeres, de Patricia Karina Vergara Sánchez, que terá tradução no Brasil pela Editora Luas ainda este ano, a crítica ao patriarcado está conectada na formação da família moderna, pautada na monogamia e centrada no casamento indissolúvel, que é um dos legados cristãos. Uma das formas de consolidar a sociedade patriarcal foi a ruptura dos vínculos das mulheres, de suas tradições e de seus conhecimentos ancestrais compartilhados, que foram aos poucos sendo criminalizados e apropriados pelos homens das ciências, pela tradição religiosa hegemônica e pelo pátrio poder do Estado e do Direito.

As anarcofeministas foram, sem dívida, críticas ferrenhas ao patriarcado e ao patriotismo. Maria Lacerda de Moura vislumbrava transformações amplas visando não à mera conquista de certos direitos, mas a libertação total das mulheres, por isso investiu duramente contra as formas de autoritarismo expressas na família, na igreja e, sobretudo, no Estado fascista que se instalou, com suas ideologias nacionalistas e patrióticas. Sobre a questão declarou: “a minha pátria é o Universo”. Ela percebeu o patriotismo e o nacionalismo como práticas políticas militarizadas criadas para aliciar o magote humano posto a serviço do Estado.

Ela era uma pacifista e via no patriotismo uma forma de aliciar jovens para as guerras, de promover a venda de armamentos e alavancar a indústria bélica. Ela usava, em consonância com sua época, o termo “carne de canhão” para designar quem servia ao exército. Sobre isso questionou: “qual é a função do Estado senão aliciar escravos para as guerras, através do ídolo do patriotismo” (Maria Lacerda de Moura, Amai e… não vos multipliqueis, 1932, p. 135). Para ela, as mães, por amor aos seus filhos, deveriam tentar impedir o alistamento no exército.

A autora viveu entre as duas grandes guerras e fez guerra à guerra através de sua escrita corajosa e pontual. Ao final da Segunda Guerra Mundial, não existia um número exato de mortos, mas foram aproximadamente 85 milhões de pessoas, sendo que mais de 51 milhões eram civis. Dentre estes figuraram pessoas idosas, deficientes, crianças, mulheres, jovens, homens e um número incontável – pois, até o momento, invisibilizado pela historiografia – de pessoas não humanas. Além disso, sabemos que o estupro é uma das violências comuns em tempos de guerra.

Outras libertárias como Luce Fabbri e Emma Goldman também escreveram sobre o patriotismo. Para Luce Fabbri (O Caminho até o socialismo sem Estado, 2004, p. 64): “Toda nacionalização é, no fundo, uma militarização”. Emma concorda: “O patriotismo é um princípio que justifica a instrução de indivíduos que cometerão massacres em massa”, e continua: “Segundo a teoria do patriotismo, nosso globo seria dividido em pequenos territórios […]. Aqueles que têm a oportunidade de ter nascido em um território particular consideram-se mais virtuosos, mais nobres, maiores, mais inteligentes do que os que povoam os outros países. É, pois, o dever de todo o habitante desse território lutar, matar ou morrer para tentar impor sua superioridade a todos os outros” (Emma Goldman, O indivíduo, a sociedade e o Estado e outros ensaios, 2011, p. 60).

Se no início do século XX Maria Lacerda, Emma e Luce já anunciavam a relação perversa entre o patriotismo e a indústria bélica, hoje, com a militarização voltada à cena internacional, podemos ver o mundo em ruínas com a possibilidade de mais uma grande guerra financiada pela indústria bélica que hoje possui um arsenal físico e químico de destruição em massa. Um massacre perpetrado por séculos em nome da pátria, da família e da propriedade do patriarca.

É tempo de relembrarmos as vozes das anarcofeministas!

Escutemos Maria Lacerda de Moura:

[…] Gloria à Liberdade!

Não mais nos sirvamos de capatazes e escravos, lacaios do dominismo ou do servilismo da covardia do rebanho social.

A minha pátria é o meu coração.

A minha pátria é a minha Razão.

A minha pátria é o Universo.

(Maria Lacerda de Moura, Oração, 1932).

 

Após os versos e vozes do início do século XX, voltamos a pergunta inicial: independência para quem? A independência está intimamente ligada aos processos de libertação. Um país onde a educação, a alimentação, a saúde, a moradia, a terra e a dignidade são para poucas pessoas não pode se vangloriar com a independência. Que nestas eleições de 2022 o povo brasileiro consiga se desvencilhar da trupe de milicianos, golpistas e narcogovernantes que tomaram o poder à força em 2016 e, aos poucos, se reerguer da lama que afundou e continua afundando o Brasil.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

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