“Tudo bem ser lésbica, mas não precisa parecer homem!”
A saída do armário não acontece de forma abrupta, em um único momento. Muitas lésbicas passam a vida toda evitando assumir publicamente sua sexualidade graças ao preconceito que atravessou o tempo e as diferentes geografias. Em maior ou menor grau, ele incide sobre alguns corpos.
O termo “entendida” era comum nos anos 1980/1990. Era uma forma de falar em público sobre as preferencias de outras mulheres sem o temor da discriminação social. “Fulana é entendida!”, era uma frase comum entre amigas lésbicas. O uso da palavra “entendida” não tinha uma associação direta com o lesbianismo, por isso ajudava a manutenção de certo anonimato.
O medo da violência e da repulsa social levou toda uma geração a manter um silêncio sobre as suas preferências sexuais, sua forma de viver e de se relacionar, evitando, assim, problemas familiares, no trabalho e nas relações comuns do cotidiano. Por longo tempo, casais de mulheres viviam juntas como “amigas”. Era uma forma de evitar o conflito e garantir um mínimo de liberdade dentro de suas casas. A hipocrisia da família tradicional foi sendo desmascarada graças às críticas feministas, libertárias e, mais adiante, LGBT e queer. Por trás da ideia de “tradição”, há um “contrato sexual” que foi abordado por Carole Pateman [1]. O contrato sexual foi um dos pilares para a manutenção do patriarcado.
Em uma sociedade baseada na violência patriarcal, o lesbianismo representa uma afronta. A ausência de interesse pelos homens é uma pedra no coturno dos machistas de plantão. Daí advém o título desta reflexão: tudo bem ser lésbica, mas não precisa parecer homem! Somente em uma sociedade androcêntrica é possível um pensamento reducionista baseado na falsa crença que a não adoção dos códigos socialmente aceitos de feminilidade representam masculinidade.
O arrimo do androcentrismo é voltado para o movimento de contornar e retornar sempre para o mesmo lugar comum: o mundo soletrado no masculino. Assim é com a linguagem universal, com a ideia de competitividade, de pensamento e de forma de se vestir, para citar alguns exemplos. Embora as coisas estejam mudando, vemos uma turba de trogloditas clamando pelo retorno à barbárie, ao modelo da masculinidade tóxica, dominadora e doutrinária.
Neste movimento de grande retrocesso social, vemos ao redor do mundo o fantasma do fascismo assombrando. Ora, o fascismo é alimentado pela violência, pelo tradicionalismo, pela intolerância, pelo machismo, colonialismo, racismo, especismo, capacitismo e todas as formas de brutal exclusão social.
A lesbofobia significa o medo e a repulsa contra as lesbianas. As mulheres que se relacionam afetiva e/ou sexualmente com outras mulheres geralmente são etiquetadas de invertidas, de mulher-macho, fancha, machorra, butch, sapatão, ou, no pior caso, anuladas da vida pública. As lesbianas foram tornadas invisíveis na vida pública, nos livros de história, excluídas por meio da linguagem, excluídas por meio de ações. Reverter essa exclusão foi possível graças aos movimentos sociais, à divulgação e promoção de ações propositivas.
Aos poucos vimos os insultos sociais serem ressignificados pelas lesbianas. Ser sapatão, lésbica, fancha, butch é uma forma de ser e estar no mundo. Mas, até que ponto o “mundo” respeita essas diferentes formas de ser e estar? Será que as distintas expressões da lesbianidade são aceitas da mesma forma? Quantas vezes ouvimos a frase: “Tudo bem ser lésbica, mas não precisa parecer homem”?
A violência incide sobre os corpos lesbianos em vários momentos e situações, dependendo de um conjunto de fatores ambientais. As diferentes formas de violência previstas na Lei Maria da Penha são: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Todas elas são, em algum momento, usadas para humilhar ou apagar a existência das mulheres que ousam viver apartadas dos homens.
Este foi o caso de Ana Carolina Campelo. Vítima de lesbocídio, Carol, como era carinhosamente conhecida, foi perseguida, torturada e assassinada em dezembro de 2023, em Maranhãozinho no Maranhão. Ela tinha 21 anos e havia se mudado para o local para viver com a sua namorada. Seu rosto foi desfigurado e seu corpo jogado em uma estrada como se fosse lixo. O caso comoveu os grupos lesbianos, que fizeram manifestações em várias regiões do Brasil.
Este, infelizmente, não é um caso isolado. O dossiê sobre lesbocídio no Brasil [2] é um documento fundamental para entendermos o atroz cenário nacional. As autoras iniciam a publicação diferenciando o feminicídio do lesbocídio. As especificidades do segundo levam a uma tipologia definida em lesbocídios declarados – como demonstração de virilidades ultrajadas, cometidos por parentes, por homens conhecidos sem vínculo afetivo-sexual ou consanguíneo, assassinos sem conexão com a vítima, suicídio ou crime de ódio coletivo, múltiplas opressões e tráfico de drogas – e o lesbocídio como expressão de desvalorização das lésbicas.
Os números são aterradores e nos levam a inferir que há uma política de extermínio camuflada de “casos isolados”. A violência machista no Brasil é um caso de patologia social. São mais de 10 estupros coletivos por dia no país. Ao ver os números, ficamos pensando: quantos homens a nossa volta participam ativamente ou como cumplices nesses crimes? O caso de Ana Carolina Campelo ainda está sendo investigado. Somente em 2024 houve a identificação de um possível assassino.
Para além da violação física e sexual, existe a violência psicológica, moral e patrimonial. Muitos casais de lésbicas são instigadas a providenciar a união estável para garantir que as suas famílias não se achem no direito de roubarem os bens em caso de óbito de uma delas. Tive o desprazer de acompanhar um caso em que o irmão mais velho queria saber com quem ficaria o imóvel do casal de lésbicas diante do leito de morte da sua irmã. Ele simplesmente ignorou o fato de as duas terem construído juntas o patrimônio durante mais de 20 anos de união. Com certeza, cientes da ganância de alguns familiares, elas já haviam providenciado a união estável e um testamento.
Como teria ficado a viúva caso não houvesse a documentação? Sabemos que a justiça, feita em sua maior parte por homens, os acoberta. Ao falar sobre o caso em um grupo de pessoas, um homem cis, esquerdo-macho, branco, hétero e privilegiado vomitou a seguinte frase: “Para vocês tudo é preconceito, preconceito seria se a família espancasse e jogasse na rua”. A frase diz muito sobre as crenças machistas. Muitos homens acreditam que violência é somente “espancamento”. Violação sexual, psicológica, moral e patrimonial são, para muitos homens, “coisa de feminista” querendo direitos iguais. A luta lesbiana é longa e cotidiana!
Nos anos 1970, o amor entre mulheres ficou conhecido como um ato político. O feminismo lesbiano, representado por nomes como Monique Wittig, Ti-Grace Atkinson e Adrienne Rich, pensou e propôs a desconstrução dos corpos naturais, ou seja, a ideia de que existe algo natural na heterossexualidade e, em consequência disso, de contranatural na lesbianidade. Ser lesbiana, para essas autoras, era opor-se à hierarquia sexual, que divide o mundo em masculino e feminino. Ser lesbiana era, então, uma política contra a divisão assimétrica dos gêneros [3].
Estima-se que a cada ano cresce o número de vítimas da violência lesbofóbica, transfóbica e homofóbica. São muitos exemplos de situações que vão do insulto verbal até violências físicas e assassinatos covardes. Cabe aos grupos e ativistas a árdua tarefa de pressionar para a consolidação de leis, exigindo justiça e criando as contranarrativas e imagens propositivas. Como disse no início desta reflexão, o preconceito incide em maior ou menor grau sobre alguns corpos. As mulheres desfem, como são nomeadas as lésbicas desfeminilizadas, são acusadas de “parecer homem”. A ideia de uma masculinidade hegemônica, natural e legítima é uma das bandeiras do machismo. É graças a essa crença que é possível imaginar que as lésbicas desejam “imitar os homens”.
Para Luce Irigaray, o corpo feminino apresenta uma sexualidade plural e é imprescindível inventarmos uma linguagem do nosso corpo para além das palavras criadas pelos homens e consolidadas nos saberes hegemônicos, sejam os biomédicos ou os psicossociais. Os encontros de mulheres marcam nos corpos novas conexões e linguagens para além das marcas impostas pelo patriarcado [4].
Uma lésbica desfem assume uma postura social contra-hegemônica. Ser sapatão, caminhoneira, fancha é motivo de orgulho para muitas lésbicas. A sexualidade calcada nos polos ativo-passivo é uma invenção baseada na visão masculinista. O corpo feminino é múltiplo! Combater a tirania machista é uma árdua tarefa que começa pela construção de modos de vida mais críticos e criativos para além dos tentáculos do patriarcado.
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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.
Referências
[1] PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4403853/mod_resource/content/1/O%20Contrato%20Sexual%20-%20Carole%20Pateman.pdf. Acesso em: 19 fev. 2024.
[2] PERES, Milena Cristina Carneiro; SOARES, Suane Felippe; DIAS, Maria Clara. Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2018. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/fontes-e-pesquisas/wp-content/uploads/sites/3/2018/04/Dossi%C3%AA-sobre-lesboc%C3%ADdio-no-Brasil.pdf. Acesso em: 19 fev. 2024.
[3] LESSA, Patrícia. Chanacomchana e outras narrativas lesbianas em Pindorama. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021.
[4 ] IRIGARAY, Luce. Ce sexe qui n’em est pás un. Paris: Éditions de Minuit, 1977.