+55 31 9 8904-6028

Nós somos Pachamama!

26 de setembro de 2024 Posted by admin In Colunas

Nós somos Pachamama!

A arte que ilustra este texto é de Olivia Marie e trata-se de uma representação de Pachamama. Na cultura Inca, ela era a Mãe Terra, a Grande Deusa, a divindade suprema. Ela está presente em diferentes civilizações andinas, tais como Bolívia, Peru, Chile, Colômbia, Equador e, até mesmo, Argentina. Pachamama não é somente o solo, a terra, ela provê a vida. É a responsável por manter o planeta em harmonia. Pachamama é a vida planetária, está ligada à terra e à fertilidade, aos nascimentos, à maternidade e à proteção de suas crias, que são os animais, as plantas, as águas, os minerais, tudo que vive e respira neste planeta.

O termo, de origem quéchua, refere-se à figura da maternidade que é mamapacha que engloba o tempo, o espaço, a terra, o divino, o sagrado. Ela é a criadora de tudo, é descrita como serena, protetora, generosa e acolhedora, mas Pachamama pode se enfurecer ao ser ferida, se não houver a oferenda, se não houver a gratidão, se ela sofrer agressões proferidas às suas crias. Nesses casos, as consequências são doenças, tempestades, furações, fome, morte e destruição. Gaia, em outras mitologias, representa a Mãe poderosa que pode tanto amamentar e nutrir como destruir e exterminar. Em diferentes panteões existe uma representação da Terra como a Grande Mãe.

Na mitologia indígena brasileira se diz que o “céu vai cair na nossa cabeça”. A profecia é uma metáfora narrada pelo xamã Davi Kopenawa, líder Yanomami, que significa que a destruição das florestas representa a devastação da vida neste planeta. Sem as florestas, a água fica escassa, a biodiversidade se perde e os animais morrem de doenças, fome ou falta de água potável. Inclusive o animal humano, que é o responsável pela terra arrasada.

Neste mês, quero fazer uma reflexão sobre o que temos feito com esta Grande Mãe conhecida como Terra. A pegada humana no planeta é profunda e deixa um rastro de sangue e de destruição. São as mineradoras poluindo rios e transformando tudo ao redor em lama tóxica, são as plantações de grãos transgênicos regados a veneno e a criação de gado os líderes em destruição de nossas reservas naturais. O agronegócio é morte e destruição em massa.

Rachel Carson (1907–1964) foi pioneira na denúncia dos desmembramentos que a Revolução Verde traria e o modo negativo que afetaria o globo terrestre, causando morte e devastação, não somente humana, mas de várias espécies dos reinos animal, vegetal e mineral. Ela pesquisou os efeitos deletérios dos pesticidas sintéticos na natureza e, sobretudo, nos animais humanos e não humanos. Primavera silenciosa foi uma obra retumbante, chamou a atenção de ecologistas, empresários do agronegócio e ganhou grande repercussão por sua característica de denúncia e por sua potência poética. Tanto a escritora quanto a editora foram ameaçadas de morte graças ao tom de protesto de seu livro. Ele foi traduzido para mais de 50 países e, geralmente, é citado como pioneiro nos estudos ecológicos [1].

O Brasil é terra coronelista e está longe de ser um modelo de desenvolvimento. Larissa Mies Bombardi é a autora do livro Agrotóxicos e colonialismo químico [2]. Sua obra rendeu-lhe ameaças de morte e perseguição à sua família. Ela teve que se exilar em função das intimidações criminosas. No Brasil, os criminosos ficam protegidos e as vítimas saem do país com medo da morte que espreita em cada esquina ou mensagem virtual. Seu livro propõe que existe um colonialismo químico. O Sul Global foi transformado em uma máquina de produzir grãos, carne, celulose, cana-de-açúcar e outras commodities para o comércio internacional. Esta máquina funciona com sementes transgênicas, fertilizantes químicos e agrotóxicos vendidos pelo Norte Global, mas seu uso é proibido em grande parte dos países fornecedores.

O modelo químico-dependente imposto pelo agronegócio coloca em risco a segurança, a soberania alimentar e nutricional, a biodiversidade, a justiça social e ambiental no Sul Global. O exílio imposto à autora é a prova viva de que o agronegócio é morte e devastação. Milhares de espécies de plantas e animais não humanos são sacrificados para que o Sul Global continue produzindo lucros para as grandes corporações globais.

Neste mês de setembro, o Brasil está em chamas, em muitos locais o fogo é provocado pelos homens, jagunços, capangas e cupinchas de coronéis, que estão sendo presos, enquanto isso os mandantes seguem impunes. O ano iniciou com a devastação do Rio Grande do Sul. Foi uma das piores enchentes já registradas no país. A imagem era de terra arrasada. Milhares de pessoas ficaram sem suas casas, seus animais, pessoas e plantas morreram levados pelo mar furioso de lama e de lixo.

Ao redor do mundo a destruição está anunciada. Brasil e Portugal em chamas, sendo que, no Brasil, grande parte dos incêndios são criminosos e, em muitos casos, cometidos para favorecer a grilagem de terra para o agronegócio (para a “boiada passar”). O Deserto do Saara, uma das regiões mais secas do mundo, está inundada e com chuvas torrenciais. Polônia, Áustria, República Checa, Hungria, Romênia e Eslovaquia estão sofrendo com enchentes devastadoras e já registram mortes. É a resposta de Pachamama ao pacto de destruição causado pelo capitalismo e pelo patriarcado. A sexta extinção em massa coloca em risco a vida humana. Todas as catástrofes são consequência do que temos feito com a vida na Terra, onde as coisas se sobrepõem à vida. Muitas pessoas estudam, trabalham e compartilham propostas para uma existência e trabalhos sustentáveis. Para uma virada de chave necessária.

Ana Primavesi revolucionou a agronomia, sobretudo na área de agroecologia. Para ela, lutar pela terra, pelas plantas, pela agricultura significa lutar pela vida, inclusive a nossa. Ela foi pioneira no estudo do solo como organismo vivo, afirmando que os solos são feitos de matéria viva e, portanto, devem estar em harmonia com o restante do ecossistema. Solos, seres humanos, água, ar, plantas, animais necessitam de equilíbrio e harmonia. Ela afirma: “Se as pessoas não conservarem as características do ambiente que permitem a vida saudável […] se os lixos e dejetos não forem minimizados e reciclados ou convenientemente tratados, nossa vida se tornará um suplício ou mesmo impossível. A escolha é nossa” [3].

Pesquisadoras e ativistas como Maria Mies e Vandana Shiva abordam, desde os anos 1990, as alternativas ao modelo agroindustrial e predatório. Em sua obra Ecofeminismo, elas diferenciam a subsistência e o desenvolvimento. O conceito de subsistência está relacionado ao ato de conservar, de manutenção e de permanência. O segundo parte de um modelo capitalista, patriarcal, competitivo e fundamentado na autorização simbólica que as classes favorecidas possuem para espoliar os povos, realizar grilagem de terras, pilhagem de bens e de matéria-prima, escravização de pessoas para trabalhos degradantes. O conceito de subsistência está, para as autoras, vinculado às práticas ecológicas enquanto o desenvolvimento diz respeito aos interesses econômicos, que colocam o lucro acima da vida. O Sul Global produz a riqueza e a mão de obra barata que sustenta o Norte Global. Nesse sentido, as autoras apresentam algumas soluções através de exemplos de práticas de cuidado com a terra e sustentabilidade. Os povos indígenas e a conservação da biodiversidade, a agroecologia, a forma de produção do Movimento sem Terra são alguns destes exemplos [4].

Acredito que uma proposta ecovegana [5], enquanto modo de vida, seja uma das alternativas para minimizar os danos causados pela industrialização, pelo agronegócio e pelo capitalismo. Não é mais possível pensar as questões ecológicas sem olhar de forma crítica para a produção industrial, para a devastação predatória que causa um grande impacto ambiental. Não é mais possível negar o sofrimento e a dor causada às outras espécies, seja para produção de alimentos e de produtos variados, para diversão humana ou mesmo para exploração dos recursos naturais. Hoje existem vários veganismos. O veganismo popular é aliado da ecologia e da sustentabilidade. É necessário que o veganismo não se dobre ao capitalismo e, em consequência, acabe por deslocar as outras espécies do ecossistema. O veganismo está muito além de um mero debate com relação à alimentação. Sua grande potencialidade revolucionária está em ver, pensar, sentir e agir com as outras espécies de forma integrada à vida planetária. A Terra é a nossa casa maior, somos parte dela. Dependemos dela, não o contrário. Somos um corpo-território que não existe fora desta relação. Nós somos Pachamama!

____________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] CARSON, Rachel. Primavera silenciosa. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1969. p. 12.

[2] BOMBARDI, Larissa Mies. Agrotóxicos e colonialismo químico. São Paulo: Elefante, 2023.

[3] PRIMAVESI, Ana. A convenção dos ventos: agroecologia em contos. São Paulo: Expressão Popular, 2016, p. 10.

[4] MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021.

[5] LESSA, Patrícia. Rumo ao ecoveganismo! Jus Animalis, 3 out. 2023. Disponível em: https://jusanimalis.com.br/artigos/rumo-ao-ecoveganismo. Acesso em: 18 set. 2024.