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A Olimpíada de Paris tem rosto de mulheres pretas

28 de agosto de 2024 Posted by admin In Colunas

A Olimpíada de Paris tem rosto de mulheres pretas

Os Jogos Olímpicos de Paris foram realizados entre os dias 26 de julho a 11 de agosto de 2024. Foram mais de 10 mil atletas distribuídos entre 48 modalidades esportivas. A abertura oficial dos jogos foi realizada pela primeira vez fora de um estádio. A cerimônia aconteceu no Rio Sena, as comissões dos diferentes países desfilaram em barcos. A delegação da Argélia chamou a atenção mundial ao prestar uma homenagem aos manifestantes argelinos mortos nos anos 1960. Naquele contexto, havia uma repressão aos argelinos que viviam na França. No dia 17 de outubro de 1961, durante uma manifestação em Paris contra o toque de recolher imposto aos argelinos pelo governo francês, ocorreu uma repressão violenta. Mais de 100 argelinos foram mortos, com alguns sendo arremessados no rio Sena. Os protestos ocorreram durante a Guerra de Independência da Argélia, que ocorreu entre 1952 e 1962. O país do Norte da África era colônia francesa. Por isso, a delegação de atletas jogou flores no Rio Sena, em memória aos mortos pela repressão policial francesa.

O evento olímpico foi marcado por protestos contra o genocídio cometido por Israel contra o povo palestino e pela denúncia da atleta do Congo. A boxeadora Marcelat Sakobi, da República Democrática do Congo, chamou a atenção com um gesto simbólico após ser derrotada nos Jogos Olímpicos. A lutadora denunciou a violência que está ocorrendo em seu país através de uma expressão: ela colocou a mão na frente da boca e os dois dedos na cabeça simbolizando uma arma. Foram dias de luta dentro e fora dos estádios, ginásios e centros desportivos. Foram dias para mostrar ao mundo as lutas políticas de cada nacionalidade.

No Brasil, as mulheres fizeram história. Pela primeira vez, elas conquistaram mais medalhas do que os homens. Das 20 medalhas brasileiras, 12 foram conquistadas pelas atletas, 7 por homens e 1 de equipe mista. Foram o total de 3 medalhas de ouro, 7 de prata e 10 de bronze [1]. As mulheres pretas mostraram ao mundo que não estão para brincadeira, foram maioria no pódio.

As medalhistas de ouro foram todas mulheres: Beatriz Souza, na categoria +78Kg no judô; Rebeca Andrade, na ginástica artística; e a dupla Ana Patrícia e Duda, no vôlei de praia. A dupla do vôlei foi a escolhida para levar a bandeira do Brasil na festa de encerramento dos jogos. Nos esportes coletivos as atletas brasileiras se destacaram. O futebol feminino conquistou a medalha de prata e o vôlei feminino levou a medalha de bronze. Larissa Pimenta faturou o bronze na categoria até 52Kg no judô. A equipe mista de judô ganhou a primeira medalha olímpica da sua história, levou o bronze após vencer a equipe da Itália. Rebeca Andrade se tornou a maior medalhista da história do Brasil, com seis pódios Olímpicos. Em Paris, ela ganhou ouro na apresentação de solo, prata no individual geral e no salto. E a foto que escolhemos para a matéria é de Rebeca sendo reverenciada no pódio por Simone Biles e Jordan Chiles.

Tatiana Weston-Webb eliminou muitas favoritas do surf e levou a medalha de prata. Aos 16 anos de idade, Raissa Leal tornou-se a atleta mais jovem de todos os tempos a levar medalhas olímpicas. Em Paris, ela garantiu o bronze no street feminino. Bia Ferreira ficou com a medalha de bronze no boxe e tornou-se a maior medalhista na modalidade [2].

As conquistas das mulheres nos Jogos Olímpicos são motivo de orgulho, tendo em vista que nas primeiras edições elas eram proibidas de participar.  A atuação das mulheres nos Jogos Olímpicos Modernos foi emblemática e seguiu uma trajetória de controle e de censura. Em 1896, ocasião da primeira edição dos Jogos Olímpicos, realizados na Grécia, as mulheres não participaram, seguindo as recomendações e os preceitos do Barão Pierre de Coubertin, idealizador do Jogos Olímpicos da era moderna. Para ele, as mulheres não teriam capacidade física para suportar as provas. Mais tarde, na Olimpíada de 1968, a primeira a ser realizada na América Latina, no México, o COI impôs barreiras à participação feminina.

Desde os Jogos de Berlim, em 1936, na época governada pelo nazista Hitler, as suspeitas de “feminilidade duvidosa” recaíram sobre as mulheres. As ciências, em especial, no final do século XIX e início do século XX, produziram conhecimentos que reafirmavam o ideário da inferioridade feminina em relação aos homens. Para eles: “quando as mulheres começaram a sobressair nos esportes de rendimento, principalmente as soviéticas e alemãs, recrudesceram os questionamentos sobre seu porte, suas ‘características masculinas’, e elas passaram a ser questionadas quanto a sua identidade sexual. Como força, velocidade e agressividade são atributos relacionados ao gênero masculino, cria-se uma confusão quando determinantes sociais são reduzidos ao determinismo biológico. As mulheres seriam fracas por natureza hormonal, e, por conseguinte, as mulheres fortes deveriam ser homens disfarçados de fêmeas” [3].

No Brasil vigorou a legislação desportiva de 1941, quando o então Conselho Nacional de Desportos (CND) criou o Decreto Lei nº 3.199, que no artigo nº 54 dizia que as mulheres não poderiam praticar esportes “incompatíveis com sua natureza”. A participação das mulheres nos esportes estava limitada pela legislação e pelo controle do Estado sobre seus corpos, não sendo permitida às mulheres a prática do futebol, do futsal, do futebol de praia, do polo, do halterofilismo, do baseball e das lutas de qualquer natureza. E somente em 1979, com a deliberação nº 10, a anterior foi revogada.

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 ainda geram repercussão, mesmo depois de terem terminado. Uma das maiores polêmicas envolveu a boxeadora argelina Imane Khelif, que foi violentamente questionada por ter sido desclassificada de um mundial por não passar nos testes de gênero, mas ainda assim foi autorizada a competir na França. A atleta está movendo uma ação judicial após a circulação de notícias falsas sobre o teste de gênero. Elon Musk, a autora de Harry Potter, J.K. Rowling, e outras personalidades neofascistas foram nomeados por promoverem fake news nas redes sociais contra a atleta. Nabil Boudi, o advogado parisiense de Khelif, comunicou que Donald Trump também faria parte da investigação. O processo foi movido contra a rede social X. Muitas personalidades neofascistas do mundo foram citadas na denúncia.

O modelo hegemônico de corpo, representado pela divisão sexuada da sociedade, polarizada em masculino e feminino, reflete uma heteronormatividade apontada pela divisão binária do social e tematizada no quadro conceitual da epistemologia feminista contemporânea, que é a matriz dos estudos de gênero e dos estudos das mulheres, criados na década de 1980, como estratégia metodológica. As representações de corpo feminino estão ancoradas em modelos de identidade generizados que, nem sempre, são condizentes com os atributos exigidos pelo esporte de rendimento. Embora a história as mulheres atletas demonstre a conquista de um lugar de destaque na instituição desportiva, quando falamos das mulheres praticantes de lutas, de futebol, de fisiculturismo ou de halterofilismo, ainda hoje existe preconceito. Cada dia é um dia a mais para estas atletas buscarem seu lugar no mundo e, consequentemente, no universo dos esportes. Nos Jogos Olímpicos de Paris, as atletas brasileiras mostraram que, mesmo com a inserção tardia das mulheres nas competições, as mulheres estão avançando a cada nova edição. A massiva repercussão de medalhistas brasileiras pretas foi emblemática e mostra que elas estão dispostas a vencer a barreira do preconceito de gênero e etnorracial.

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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.

 

 

Referências

[1] ZALCMAN, Fernanda Lucki. Jogos Olímpicos de Paris 2024: reveja todas as medalhas do Brasil. Olimpics.com, 11 ago. 2024. Disponível em: https://olympics.com/pt/noticias/jogos-olimpicos-paris-2024-reveja-todas-medalhas-brasil. Acesso em: 13 ago. 2024.

[2]. PARIS 2024. Olympics. Disponível em: https://olympics.com/pt/paris-2024. Acesso em: 13 ago. 2024.

[3] LESSA, Patrícia. O sexo a quem compete? Revista de História. Rio de Janeiro, v. 10, p. 52-55, 2014.