Marielle Franco e Tereza de Benguela:
Tão longe, tão perto!
“Não podemos viver sem nossas vidas”
(Barbara Deming)
No Brasil, o dia 25 de julho foi instituído como data comemorativa no calendário nacional como Dia Nacional de Tereza de Benguela e Dia Nacional da Mulher Negra. A incorporação da data ocorreu em 2014, no governo da Presidenta Dilma Rousseff, transformando-se em dia de luta e de sororidade para as mulheres negras.
Naquele momento político do Brasil já havia um longo e exaustivo trabalho dentro da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), órgão federal ligado diretamente à Presidência da República, criado em 2003 e extinto após o Golpe de Estado, em 2016, que favoreceu a ascensão de uma política de extrema direita, com viés fascista e com incitação aos crimes de ódio. Desde a criação da SPM até a sua extinção houve avanço nas discussões sobre as mulheres, favorecendo a regulamentação de leis e de projetos sociais, sobretudo para atender as mulheres mais vulneráveis.
Com o Golpe de Estado e a escalada de violências promovida pelo bolsonarismo, os índices de feminicídio no Brasil, que já eram altos, cresceram assustadoramente, e hoje vemos, por um lado, a violência sexista aumentar, por outro, os nossos parcos direitos sociais serem eliminados um após o outro.
O Brasil tem o maior índice de feminicídio da América Latina. Sabemos que, dentro desse quadro alarmante, existem algumas características que acentuam a vulnerabilidade em alguns grupos, como os fatores étnico-raciais e as diferenças de classe. Nesse sentido, o termo colorismo foi criado, para combater as discriminações motivadas pela cor da pele. O tratamento diferenciado acarreta implicações sociais, como maior dificuldade no acesso à educação, saúde, trabalho e, sobretudo, maior exposição à violência. Segundo o Portal Geledés:
“Em um contexto de tanta violência, mulheres negras são mais vítimas de violência obstétrica, abuso sexual e homicídio – de acordo com o Mapa da Violência 2016, os homicídios de mulheres negras aumentaram 54% em dez anos no Brasil, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013 (enquanto os casos com vítimas brancas caíram 10%).
Barradas dos meios de comunicação, dos cargos de chefia e do governo, elas frequentemente não se veem representadas nem nos movimentos feministas de seus países. Isso porque a desigualdade entre mulheres brancas e negras é grande: no Brasil, mulheres brancas recebem 70% a mais do que negras, segundo a pesquisa Mulheres e Trabalho, do IPEA, publicada em 2016. Há 25 anos, um grupo decidiu que uma solução só poderia surgir da própria união entre mulheres negras.
Em 1992, elas organizaram o primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas, em Santo Domingos, na República Dominicana, em que discutiram sobre machismo, racismo e formas de combatê-los. Daí surgiu uma rede de mulheres que permanece unida até hoje. Do encontro, nasceu também o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha, lembrado todo 25 de julho, data que foi reconhecida pela ONU ainda em 1992” – (Ver matéria completa em: https://www.geledes.org.br/as-origens-do-dia-da-mulher-negra-latina-e-caribenha/).
Com o isolamento social exigido pela pandemia de COVID-19, durante o período de um governo autoritário e machista no Brasil, vimos o agravamento da violência de gênero, o aumento dos crimes de ódio, dos crimes de motivação política, dos assassinatos de pessoas ligadas aos movimentos e às causas sociais. Foi nos anos que antecederam esse contexto que o mundo assistiu estarrecido o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco.
Marielle Franco nasceu no dia 27 de julho de 1979 no Complexo da Maré, bairro localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. O complexo reúne um conjunto de favelas na periferia da capital fluminense. Seu nome de registro de nascimento é Marielle Francisco da Silva, porém ela ficou publicamente conhecida como Marielle Franco. Filha de Marinete da Silva e Antônio Francisco da Silva Neto e irmã de Anielle Franco. Desde cedo Marielle assumiu responsabilidades junto a sua família, tais como os afazeres domésticos e os cuidados de Anielle Franco, sua irmã caçula.
Aos 19 anos ela deu à luz a sua única filha, Luyara Franco, casou-se jovem em função da gravidez, sofreu violência psicológica e física do marido, fruto de um relacionamento abusivo. Em uma das violências cometidas por ele, Marielle sofreu descolamento do maxilar e registrou a ocorrência na delegacia. Ainda jovem, ela conheceu Mônica Benício durante uma viagem. Namoraram por, aproximadamente, 13 anos, até que Marielle e Luyara mudaram-se para o bairro carioca da Tijuca e passaram a viver com Mônica. Elas estabeleceram uma relação estável desde 2004 e planejavam se casar em setembro de 2018, ano de sua morte, e do seu motorista Anderson Gomes, numa emboscada, no centro do Rio de Janeiro.
Marielle ingressou em 2002 no curso de graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio de Janeiro. Ela havia realizado o curso de Pré-Vestibular Comunitário da Maré, que é um projeto social destinado ao apoio a estudantes sem condições de financiarem seus estudos. Depois de graduada, ela ingressou no mestrado em Administração Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua dissertação versou sobre a atuação da polícia nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), analisou a política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro adotada em 2008 e a sua relação com o extermínio de pessoas moradoras das favelas cariocas, sobretudo a população negra. Teve uma forte atuação na militância pelos direitos humanos. Como socióloga, trabalhou em redes de apoio e de informação na Maré e foi crítica aos abusos de poder das forças policiais. Em 2007, entrou para a ONG Brazil Foundation, integrando a equipe de monitoramento de organizações sociais nacionais.
Em 2016 Marielle foi eleita vereadora pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) com 46.502 votos. Foi a quinta vereadora mais votada na cidade do Rio de Janeiro. Durante o seu mandato, presidiu a Comissão da Mulher da Câmara. Coordenou com Marcelo Freixo a Comissão de Defesa de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ao longo do período que atuou como vereadora, apresentou dezesseis projetos de lei, sobretudo, direcionados às políticas públicas para mulheres, à população negra e da periferia e à comunidade LGBTQIA+.
Na noite de sua execução, Marielle foi mediadora de um debate promovido pelo PSOL na Casa das Pretas. O encontro reunia jovens negras e foi sua última atuação pública. Ela citou a poeta feminista norte-americana Audre Lorde. Agradeceu às organizadoras do evento pelo convite e se despediu: “Vamo que vamo. Vamos juntas ocupar tudo” (Instituto Marielle Franco).
O assassinato de Marielle é considerado um crime político. A equipe que investiga o caso foi substituída algumas vezes, alguns homens foram presos e depois constatou-se que não eram os executores do assassinato. Desde a noite do assassinato, jornalistas, amigos e colegas da vereadora constataram irregularidades e divergências nas investigações. O horário de crime foi um deles, pois, segundo um morador de rua que estava dormindo na calçada no dia do assassinato informou, a execução ocorreu às 21h14, de acordo com informações do livro Mataram Marielle: como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca (2020). Além disso, ao longo do período de investigação foi constatado o profissionalismo do atirador.
Houve algumas tentativas de federalizar a investigação, porém os pedidos foram negados. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, tentaram entrar com um pedido de deslocamento de competência sobre o processo para federalizar as investigações, mas o Ministério Público Estadual não recuou. Os pedidos foram rejeitados e o caso continuou circunscrito ao local do crime, no estado do Rio de Janeiro.
Após a morte de Marielle, sua família criou o Instituto Marielle Franco com a “missão de inspirar, conectar e potencializar milhares de jovens, negras, LGBTQIA+ e periféricas a seguirem movendo as estruturas da sociedade”, conforme consta no site do Instituto. O instituto foi criado com o objetivo de buscar resposta e justiça com relação ao caso, além de defender a memória da vereadora e colaborar na articulação e na formação política para mulheres, população negra e favelada. A irmã, Anielle Franco, é a diretora.
Dentre as ações do Instituto Marielle Franco, destaco: a construção de um arquivo sobre as atividades de Marielle e os materiais produzidos sobre ela; a atividade Março por Marielle, que são manifestações espontâneas e coletivas, já são mais de 270 atividades cadastradas, dentre elas a parceria com a Anistia Internacional; o espaço Casa Marielle, um espaço para formação política e atividades culturais criado por meio de financiamento coletivo e está localizado no Largo de São Francisco da Prainha, região portuária do Rio de Janeiro.
No site do Instituto Marielle Franco lê-se a frase: “Quem mandou matar Marielle mal podia imaginar que ela era semente e que milhões de Marielles em todo mundo se levantariam no dia seguinte”. Uma de suas frases mais conhecidas foi proferida em um pronunciamento na Câmara Municipal do Rio de Janeiro no dia 8 de março de 2018, no qual ela disse: “As rosas da resistência nascem do asfalto. A gente recebe rosas, mas estaremos de punho cerrado, falando do nosso lugar de existência contra os mandos e desmandos que afetam nossas vidas”.
Tão longe e tão perto de Tereza de Benguela, podemos inferir que as duas mulheres distanciadas pelo tempo e próximas em suas lutas sociais nos fazem pensar quantos séculos ainda serão necessários para que as mulheres negras sejam devidamente respeitadas no Brasil? Até quando vamos assistir aos assassinos serem blindados por outros homens e seus crimes passarem impunes?
Tereza de Benguela, entre tantas outras mulheres negras brasileiras, marcou a história da resistência negra fortalecendo a luta que atravessa os tempos. Ela foi uma importante líder do Quilombo de Quariterê, no Mato Grosso. Lutou contra a escravização negra e indígena que era usada para trabalhar na exploração das riquezas minerais na região do Rio Guaporé, localidade invadida pelos colonizadores portugueses. Ela liderou o Quilombo até 1770, quando foi capturada e assassinada junto a outras pessoas em uma emboscada planejada pelos colonizadores europeus.
Tão longe e tão perto Marielle Franco e Tereza de Benguela ajudam a compor a narrativa das mulheres que há muito tempo marcham em busca de direitos e de possibilidades de vida. “Nossos passos vêm de longe”, como diria Jurema Werneck, referindo-se à ancestralidade de mulheres negras, mulheres que como Marielle e Tereza foram líderes e protagonistas em várias frentes de lutas.
Concluo a reflexão concordando com bell hooks: “Precisamos de um mapa para nos guiar em nossa jornada até o amor – partindo de um lugar em que sabemos a que nos referimos quando falamos de amor”. Diante de uma política movida pelo ódio, precisamos construir novos espaços de sororidade.
Abaixo indico alguns sites sobre Marielle Franco:
Perfil VQQ/Marielle Franco – Psol, Mídia Ninja.
https://www.youtube.com/watch?v=IKSWfgZLKMA
Marielle, 8 de março. Discurso de Marielle Franco na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro no dia 8 de março de 2018, Página Plínio Melo, 19 de março de 2018.
https://www.youtube.com/watch?v=G5sjJvK_Txs
Falas Negras: Marielle Franco por Taís Araújo, Instituto Marielle Franco, Rede Globo.
https://www.youtube.com/watch?v=YJE6ayEsnxY
Especial de aniversário Marielle Franco. Participação especial Elza Soares. Instituto Marielle Franco, 27 de julho de 2020.
https://www.youtube.com/watch?v=CQHhSdRLZ74
Livros sobre Marielle Franco:
Mulherio das Letras. Um girassol nos teus cabelos: poemas para Marielle Franco. Belo Horizonte: Quintal Edições, 2018.
Otavio, Chico; Araújo, Vera. Mataram Marielle: como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Ramos, Leuvis Manoel Oliveiro. Memória viva. Rio de Janeiro: Câmara Brasileira do Livro, 2020.
Ramos, Leuvis Manoel Olivero. Enquanto o ódio governava a rua falava. Rio de Janeiro: Câmara Basileira do Livro, 2020.
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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.