+55 31 9 8904-6028

Mulheres fortes e mulheres de força: para não esquecer de Sandwina

7 de abril de 2022 Posted by admin In Colunas

Mulheres fortes e mulheres de força: para não esquecer de Sandwina

Ao longo da história, as mulheres reivindicaram os seus direitos e foram, pouco a pouco, criando espaços, deixando suas marcas e derrubando muros para que outras pudessem avançar. No campo dos esportes não poderia ser diferente. Sou formada em Educação Física e, ainda na graduação, atuei como árbitra na Liga Pelotense de Futsal, depois de realizar o curso e prestar a seleção teórico-prática, em 1990. Foi uma época em que havia poucas mulheres na arbitragem do futebol e, sobretudo, havia muito preconceito. Recordo-me de uma partida em que atuei arbitrando o final de uma competição no ginásio de esportes do Colégio Municipal Pelotense. O jogo estava empatado, havia decidido junto à equipe de arbitragem que seria necessário fazer uma prorrogação. Na prorrogação, um dos times fez o gol que lhe daria a vitória. Foi um estrondo! As torcidas se alvoroçaram e digladiaram-se. Naquele momento, escutei todo tipo de insulto comumente dirigido às mulheres. Um deles foi que “o lugar de mulher é na cozinha”. Buenas! Confesso que sempre gostei de cozinha e não tenho nada contra ser associada ao trabalho neste local, o problema é achar que nosso local ainda está circunscrito ao reduto do lar. Enfim, permaneci mais algum tempo no trabalho de arbitragem e me envolvi em muitos esportes que, historicamente, foram considerados impróprios para as mulheres.

Muitas práticas desportivas foram e ainda são interditadas às mulheres em diferentes geografias. A invenção científica da “vulnerabilidade biológica” e da “fragilidade inata” deixou as mulheres de fora de muitos eventos desportivos. Fragilidade, vulnerabilidade e passividade são características totalmente desfavoráveis às exigências da performance atlética, em que tanto as mulheres quanto os homens devem extrapolar suas capacidades físicas. Os esportes são repletos de hierarquias, de processos longos e nem sempre justos, quando pensamos em esportes competitivos ou em esporte espetáculo, que exige disciplina, mas também, às vezes, alguns requisitos sociais para além da performance.

O futebol feminino no Brasil está repleto de histórias bizarras, como foi o caso do Saad (clube de futebol feminino de São Paulo) que nos anos 1990 exigia beleza e feminilidade das atletas. Em 1996, o Brasil fez sua estreia olímpica no Futebol Feminino, o que repercutiu um jogo de marketing nada coerente com os atributos exigidos pelo esporte. Alguns clubes como Fluminense, Grêmio e Corinthians seguiram as recomendações do projeto de marketing do Saad, o qual dizia que, além de competência técnica, era necessário ter beleza para entrar em campo. O critério era totalmente generizado, pois jamais seria exigido o mesmo dos homens que participavam de equipes de futebol. Deles, espera-se performance, resultado, independentemente de sua beleza ou do seu caráter, haja vista o número de atletas envolvidos em crimes tais como tráfico, estupro, falsidade ideológica e outros, mesmo assim eles seguem sendo ídolos depois de o caso ser “abafado”. Além disso, beleza é um critério totalmente frágil, pois a aparência é julgada de acordo com normas geralmente sexistas, classistas, racistas do senso comum. Uma mulher negra e lésbica passaria no crivo deste julgamento? Pois bem, as mulheres negras e lésbicas levaram o nome da seleção brasileira de futebol para todos os cantos do mundo: Marta, Formiga, Cristiane são alguns deste nomes que não podem cair no esquecimento.

Nos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, as mulheres não podiam competir. Sua inserção nas competições internacionais foi acontecendo de maneira gradativa, e ainda mais lenta naqueles esportes que eram socialmente considerados masculinos, tais como: as lutas, o halterofilismo, o fisiculturismo, o futebol, dentre outros. Em todas essas modalidades, entretanto, o tempo mostrou competência e talentos reconhecidos. Hoje o fisiculturismo feminino escreve sua história através da resistência que as bodybuilders empreendem em nome do esporte, crescendo gradativamente, mesmo sem incentivo financeiro e com alta carga de preconceito em relação aos corpos fortes e à musculatura delineada nas mulheres.

O fisiculturismo é um dos esportes em que as mulheres encontraram forte resistência – também as praticantes de esportes como ciclismo, halterofilismo, futebol e lutas de todo gênero carregaram o estigma de praticarem “esportes masculinos”. Em 14 de abril de 1941, o Conselho Nacional de Desportos (CND), então vigente naquele período, no Brasil, criou o Decreto Lei nº 3.199, o qual, no artigo nº 54, constava que as mulheres não poderiam praticar esportes “incompatíveis com sua natureza”. Em 1965, com a deliberação nº 7, definiram-se regras para a participação das mulheres nos esportes, não sendo permitida a elas a prática do futebol, do futsal, do futebol de praia, do polo, do halterofilismo, do baseball e das lutas de qualquer natureza. Foi somente em 1979, com a deliberação nº 10, que o decreto foi revogado. Apesar disso, é importante ressaltar que, mesmo com a lei vigorando, as mulheres participavam de treinamentos e de competições regionais, muito embora os longos períodos ditatoriais brasileiros tenham imposto regras que fomentavam um ideal de feminilidade baseado na fragilidade, docilidade e submissão das mulheres. As atletas escapavam como podiam e praticavam esportes, apesar de a lei impedir competições nacionais naquelas modalidades supracitadas.

No universo dos esportes, como em outras esferas sociais, os avanços são, muitas vezes, intercalados com retrocessos, como é o exemplo das competições femininas de musculação, que, depois de um longo tempo de evolução, as mulheres receberam um boicote: uma importante federação internacional divulgou que atletas de todas as categorias “devem reduzir a sua massa muscular em 20% do estágio individual atual”, com o argumento de perda da feminilidade. A musculação foi um dos esportes em que houve uma grande resistência quanto à participação das mulheres. Só muito tempo depois dos homens que elas puderam ser inseridas em campeonatos de halterofilismo e fisiculturismo. Além disso, a utilização da musculação nos programas de treinamento das atletas também se deu mais tarde, em função da crença de que as mulheres eram incapazes de realizar atividades que exigissem grande força física.

Uma clara distinção entre os gêneros é feita, e, nessa diferença, as mulheres levam a pior: falta de investimentos, de campeonatos e de patrocínios são alguns exemplos da desigualdade de gênero nos esportes. O exemplo do Miss Olímpia de 1987, realizado pela International Federation of Bodybuilding and Fitness (IFBB), nos Estados Unidos, é paradigmático. Cory Everson mais uma vez sagrou-se campeã e levou o prêmio de US$ 25.000. Naquele mesmo ano, Lee Haney ganhou o prêmio de US$ 55.000 pelo primeiro lugar. O prêmio masculino foi mais que o dobro do valor dado à Cory, porém o trabalho, o desgaste, os investimentos não podiam ser computados dessa forma, pois ambos fizeram um esforço heroico para chegarem ao pódio da competição de fisiculturismo mais prestigiada na segunda metade do século XX.

Muito antes de Cory Everson nascer, havia uma mulher que atravessou o oceano e rompeu as barreiras de gênero. Trata-se de Katie Brumbach. Ela nasceu em Viena, na Áustria, no dia 6 de maio de 1884, e faleceu no dia 21 de janeiro de 1952, em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Em Viena, ela era a estrela de um espetáculo no qual desafiava homens e mulheres em um ringue. Ela era filha do casal de artes circenses Johanna e Philippe Brumbach. Desde jovem, Katie atuou com a família, e, em uma de suas exibições, seu pai oferecia um valor em dinheiro para qualquer homem da plateia que fosse capaz de derrotá-la em um combate de força conhecido como wrestling. Nos registros históricos, nota-se que nenhum homem conseguiu derrubar a jovem Katie.

Em 1910, ela media 1,82cm de altura, pesava quase 100 kg e exibia um bíceps de mais de 40 cm de diâmetro. Apresentava-se como a mulher mais forte do mundo e fez exibições em vários países na Europa e no continente americano, local para onde se transferiu, definitivamente, na década de 1920. Foi em 1902, nos Estados Unidos, que vivenciou a experiência que lhe conferiu uma mudança radical: em um pequeno clube atlético de Nova York, ela participou de um desafio de força com Eugene Sandow no qual sagrou-se vencedora ao levantar 130 kg acima de sua cabeça, enquanto o conhecido fisiculturista não conseguiu erguê-la além da altura do peito. O nome Sandwina passou a circular ao redor do mundo desde aquele dia.  Após a vitória, ela adotou o nome artístico Sandwina, tendo em vista a importância de Sandow no cenário internacional dos esportes de força.

Sandwina trabalhou durante anos, nos Estados Unidos, com o Ringling Bros e Barnum & Bailey Circus, até quase os 60 anos de idade. Apresentava-se realizando feitos como: dobrar barras de aço, levantar três ou mais homens com a força dos braços, resistir à tração de cavalos, realizar levantamento de peso com mais de 100 kg acima da cabeça. Seu recorde no levantamento de peso foi de 296 lb (libras), equivalente a 129 kg, e foi superado somente em 1987 por Karyn Marshall. Sobre a Sandwina, é possível ver um filme disponibilizado no YouTube:  https://www.youtube.com/watch?v=NP7m5JQKkMc.

Escrevi sobre a Sandwina em artigos acadêmicos e no meu livro sobre musculação intitulado Mestre Puma e Larissa Cunha: na história da musculação competitiva, publicado pela Appris em 2020. Porém, nas revistas comerciais para as quais eu escrevi, sempre foi retirada a parte do texto em que diz que Sandwina venceu Eugene Sandow. A censura, neste caso, é uma das formas de apagamento de nossas memórias, por isso fiz questão de retomar aqui, na Coluna Pachamama, a história de Sandwina e alguns aspectos da história das mulheres nos esportes. Embora a história seja sempre marcada por indícios do que se passou, sabemos que, quando se trata da história das mulheres, muitas vezes, os acontecimentos são mitificados e transformados em lendas, causos e ficção. 

Independente de você ser contra ou a favor do esporte competitivo ou do esporte espetáculo, é importante observar as marcas de gênero impressas em diferentes modalidades ao longo da história. Portanto, convido você a ler sobre a história das mulheres nos esportes e tenho certeza de que perceberá surpreendente pluralidade e diversidade de lutas que as mulheres enfrentaram em diferentes temporalidades e geografias. Contornando as marcações de gênero, as atletas imprimiram uma marca de força e de resiliência em todas as modalidades desportivas.   

As imagens de Sandwina foram retiradas do livro de Josef Švub, Historie síly, publicado na República Tcheca pela editora Svet Kulturistiky em 1997.

Outras histórias de mulheres nos esportes de força podem ser encontradas em meu artigo, escrito junto com Iasmim Santos, publicado em: http://www.crc.uem.br/departamento-de-pedagogia-dpd/koan-revista-de-educacao-e-complexidade/edicao-n-5-dez-2017/edicao-n-5-dez-2017/as-strongwomen-da-belle-epoque-e-a-quebra-do-mito-da-fragilidade-inata.


Patrícia Lessa Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.