Chanacomchana: da tese ao livro
O livro Chanacomchana e outras narrativas lesbianas em Pindorama, publicado pela Editora Luas em 2021, nasceu da busca pela voz lesbiana na imprensa alternativa brasileira. Em 2003 ingressei no doutorado em História na Universidade Nacional de Brasília, na área, então recém-criada, de Estudos Feministas. O objetivo central era estudar a formação dos grupos lesbianos no Brasil a partir da construção de sua autonomia com relação aos grupos mistos, nomeados nos anos 1970 de LGBT, e com relação aos grupos feministas.
A ideia de lançar a tese em formato de livro está relacionada à necessidade de fomentar o debate em torno da visibilidade lesbiana e divulgar as suas produções ao longo do período que inicia em final dos anos 1970 e avança qualitativa e quantitativamente nos anos 2000. O livro amplia as possibilidades de diálogo entre quem escreve e o público, sobretudo, as maiores interessadas, as lesbianas participantes ou não de agrupamentos.
O marco inicial em minha pesquisa de doutoramento foi o encontro com o Jornal Chanacomchana, publicado em São Paulo em 1981. O jornal teve uma edição única e foi criado, em 1979, pelo coletivo lésbico-feminista (LF), formado pelas lesbianas integrantes do grupo homossexual (assim denominado na época) estatutário denominado Somos. No início dos anos 1980 formou-se o Grupo de Ação Lésbico-Feminista (GALF) e, em 1982, foi lançado o Boletim Chanacomchana. Foram 12 edições, publicadas até 1987. A criação do GALF era, sobretudo, um projeto de autonomia das lésbicas com relação aos grupos mistos e grupos feministas, muito embora a proposta deixava clara a necessidade de encontros com estes outros grupos para o fortalecimento das lutas sociais e de reconhecimento e avanço nos direitos.
Não foi sem conflitos que as lesbianas avançaram e conseguiram inserir suas pautas nas discussões, reuniões e encontros feministas. Neste contexto, houve proposições interessantes. A lésbica política foi uma proposta importante e nasceu no seio do movimento feminista na década de 1970, quando as mulheres, em sua avalanche de críticas dirigidas à violência do patriarcado, mostravam sua recusa ao sistema de dominação heterossexual, contexto no qual elas reivindicaram os direitos sexuais e reprodutivos, a libertação sexual, a maternidade por livre escolha das mulheres, o direito ao aborto, o combate ao patriarcado e à violência estrutural contra as mulheres. Foram teorias, práticas e poéticas insurgentes na construção de uma nova relação das mulheres com os seus corpos, com o prazer sexual e com o erótico. A lésbica política não tinha, necessariamente, relação sexual com outra mulher, sua identificação era política, era de apoio e de sororidade.
As disputas e as pautas das feministas, em alguns momentos, geraram tensão e rupturas. Um ótimo exemplo foi o grupo Radicalesbians. Criado em 1969, o grupo foi pioneiro no feminismo radical e ficou conhecido pela divulgação de um manifesto feminista intitulado: A mulher que se identifica com mulheres. Tal manifesto foi escrito no contexto de uma reunião organizada pela National Organization for Women (NOW), na qual Betty Friedan declarou que a ligação do grupo com as lésbicas poderia prejudicar suas reivindicações políticas e causar uma repulsa social. Em resposta, Rita Mae Brown e outras feministas lesbianas se afastaram do NOW e distribuíram o manifesto durante o II Congresso para Unir as Mulheres.
Voltando ao livro Chancomchana e outras narrativas lesbianas em Pindorama, um dos tópicos que é importante ressaltar é a base teórica ancorada nos estudos feministas e a apresentação de muitas autoras até então pouco estudadas no Brasil, sobretudo pela carência de traduções, das quais posso elencar: Leila Rupp; Verta Taylor; Adrienne Rich; Tânia Navarro Swain; Teresa de Lauretis; Luce Irigaray; Anick Druelle; Ochy Curiel; Christine Delphy; Judith Brown; Marie-Jo Bonnet; Ti Grace Atkinson; Line Chamberland; Norma Mogrovejo; Audre Lorde; Monique Wittig; Radicalesbians.
Algumas autoras como Monique Wittig, Luce Irigaray, Audre Lorde e Tânia Navarro Swain nos ajudam a pensar a multiplicidade inscrita nos corpos lesbianos. É importante retomar as obras dessas autoras para pensar/escrever sobre a corporeidade lesbiana como uma forma de amar outra mulher e amar a si mesma para além do esquema patriarcal e do sistema heterossexista.
Partindo dessas referências feministas, o livro aborda o surgimento da imprensa lesbiana no Brasil e avança na direção do estudo de outras fontes, tais como os Boletins Iamaricumá e Um Outro Olhar, a Revista Um Outro Olhar e a lista de discussão do Senale (Seminário Nacional de Lésbicas). Nesta avalanche de materiais trazidos à baila neste estudo, é possível entender que a história das lésbicas no Brasil ganha novos contornos e gera muita movimentação.
Tendo em vista a multiplicidade do movimento lesbiano no Brasil é que existem duas datas importantes. A primeira, 19 de agosto, dia Nacional do Orgulho Lésbico, é a data da ocupação, em São Paulo, de um local denominado Ferro’s Bar, onde seus proprietários haviam proibido a venda do Boletim Chanacomchana. Com o apoio de feministas, gays, intelectuais e advogados, e por intermédio da pressão política, as militantes do Galf entraram no local e obtiveram a permissão para vender o material. A segunda data é o dia 29 de agosto, Dia da Visibilidade Lésbica, escolhida em função da realização do I Senale, realizado em 1996, mediante uma ação conjunta do Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro (COLERJ) e do Centro de Documentação e Informação Coisa de Mulher (CEDOICOM).
O Boletim Chanacomchana divulgou o ato do dia 19 de agosto em matéria de capa como podemos ver a seguir:
Fonte: jornal O Globo, 2019.
A foto seguinte é de autoria de marian pessah, feita para o grupo lésbico-feminista Mulheres Rebeldes, de Porto Alegre (RGS). A foto monocromática apresenta uma tatuagem carregada da simbologia lésbico-feminista: o desenho de duas meninas de mãos dadas, os dois símbolos do feminino entrelaçados e a cor lilás dão o tom da simbologia lesbiana aqui retratada para anunciar o dia da visibilidade lésbica, ou seja, o dia 29 de agosto. Em sua matriz de definição, a imagem simboliza a luta inscrita nos corpos lesbianos como uma marca de sua historicidade incontornável.
Fonte: NUANCES, Porto Alegre, s/d.
Assim podemos pensar no encontro com os movimentos coloridos, com a força contestatória das suas precursoras, das suas inspiradoras, tal como Rosely Roth, todo ano lembrada por suas companheiras do GALF. Um movimento que é múltiplo, comemorado em duas datas, que simbolizam não um conflito, mas a diversidade, a liberdade, a ânsia por voz e representação social positiva e propositiva. Tendo este marco temporal, é possível dizermos que o mês de agosto é marcado pelo mês de lutas e de comemoração para as lesbianas.
Neste mês, importante para o movimento lesbiano, o livro Chanacomchana e outras narrativas lesbianas em Pindorama está sendo levado para discussão com vários grupos no Brasil e, ainda sem completar um ano de publicação, está esgotado na Editora Luas e aguarda a reimpressão em breve. Quem sabe seja este um indício de novos tempos para as teorias lesbianas e, sobretudo, para a escrita a partir de uma história feminista das lesbianas.
Sugestões de leitura:
LESSA, Patrícia. Chanacomchana e outras narrativas lesbianas em Pindorama. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021.
RADICALESBIANS [1970]. A mulher que se identifica com mulheres. Tradução: Natália Corbelo. Disponível em: http://editoraluas.com.br/wp-content/uploads/2021/07/MANIFESTO-3.pdf.
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Patrícia Lessa – Feminista ecovegana, agricultora, mãe de pessoas não humanas, pesquisadora, educadora e escritora.